Depois que Glória extraíu o molar, tornou-se praticamente uma outra pessoa.
Calou-se e minguou, de repente. Implora-me pra digitar os bilhetes espalhados pela casa, que escreve e não guarda. Registra o tempo, os minutos da dor latejante e olha o céu como se ele fosse uma coisa nova, como se nunca o tivesse visto - ou
reconhecido.
E evita usar o computador. Teme não resistir aos apelos da internet. Está encapsulada em uma redoma de aço.
O buraco em sua boca, essa costura, criou um descompassao entre ela e a fala.
Quando a palavra salta, dói.
Assim, subtrai as frases, edita e redige na ação mesmo, economizando os pronomes e os advérbios, e aí é que está; consegue a proeza de dizer apenas o essencial. Isso, quando resolve pôr em movimento os maxilares... Nas outras vezes, passa fome. Seus bilhetes acompanham a transfiguração. São frases que parecem nascidas de um curto-circuito, palavras vagas, à espreita, latejantes, raspando insones nessa ausência de dente.
Suas palavras brotam ressentidas, gastas, oriundas de não sei quê espectro familiar. Ressentem-se com a falta; com a memória do dente morto, com essa decadência precoce e irreversível. Com os olhos assustados, e febril em urgência, Glória desce do sonho, sua imagem agora é real e ela não deseja mais o outro mundo, a vinte léguas, ou à dez passos daqui. Está presa por um fio de arame farpado, esse fio está esticado, verticalmente esticado, do alto até embaixo, preso em suas costas e cintura, como se Deus a segurasse no momento presente. Bamba, bamba, um pé após o outro, ela se equilibra na corda com os dedos dos pés trincados de medo e segue em frente, livre de bagagens, os olhos presos na linha do horizonte, concentrados, como a águia na hora exata do vôo. Glória aceita a corda, o fio que a liga do céu à terra e o medo. Não desperdiça uma folha da paisagem. Como um fantoche, segue o roteiro de um improviso silencioso. É como se Deus a ensinasse a andar dentro dessa nova vida e manipulasse seus passos com um indisfárçavel sorriso nos lábios. Desbravando essa estrada nova, Glória está se apresentando à ele; ao momento presente; e babulciando as primeiras palavras, antes de lhe entregar nome, cep e endereço. Ela esbarra no real, como a língua esbarra na gengiva costurada, buraco inchado, e a vida parece finalmente tê-la alcançado. O que a espera depois disso? O que existe além do buraco?
Mais buraco?
Morrer. Reagindo à esse noivo tão concreto, Glória espia a morte no quarto ao lado. E de boca aberta, a contorna, sem grandes alaridos. Como o recém-nascido inacessível ao leite materno.
Glória olha em volta parecendo não enxergar nada, só pára a vista ao esbarrar os olhos nos pés da mesa. Interessa-lhe mais os pés de mesa do que os quadros ou retratos espalhados pela casa.
E os telefonemas são evitados.
E eis que descobriu a parte baixa da casa.
Pode-se mesmo dizer, que Glória migrou para Itabira, ou outra cidade-gruta de Minas. E como um tatu-bola, está a desencavar mais buracos.
O buraco do dente trouxe todos os outros buracos imprevisíveis da carne e da alma.
Ela está assim há dias, de estação em estação, de compasso em compasso, há espera do grande desembarque.
Ouve os discos antigos e esquece as tarefas domésticas como se estas lhe fossem desnecessárias.
E regrediu. Depois de caminhar com Deus e experimentar o improviso dos passos - tão acostumados à uma rigida programação - Glória cuspiu em Deus e voltou à mamadeira.
Após a extração dentária, passou por todas as fases do crescimento. Agora, por exemplo, nada de cinema francês, autores russos ou ensaios literários. Agora Glória só vê Snoopy. Mais precisamente: "Você é o maioral, Charlie Brown". E ri. Fica às gargalhadas e olha pra mim, instigando a cumplicidade suícida. Eu estou muito preocupada. Glória não é muito de rir e nem de calar.
E muito menos de ver desenho animado, coisa que detestava.
Fico ali, ao longe, observando a fera prestes a explodir. E é isso que temo.
Essa fera enjaulada e regressa. O que vai acontecer amanhã? Vou acordar e dar de cara com uma Glória de oitenta anos? Dando um tapa na pantera?
Porque Glória...
Hã... Glória não é de brincadeira, não. Não é de marmelada. Nem de sorrisos fácis, nem de alardeantes carinhos, chamegos. Normalmente ela grita e muge.
Sim, uma vaca. Glória sempre foi meio vaca.
Como todas as mulheres são. E escondem. E passam perfume nas axilas, pra diminuir o cheiro bovino;
E os homens, tourada manca.
Esse é o cruzamento. Vacas perfumadas e touros afeminados.
E agora ao invés de uma vaca, eis um gatinho manso.
É esse buraco, esse maldito buraco que deixou ela assim. Outro dia vi a costura. Quando ela estava dormindo, fui lá e vi. Abri sua boca como se abrem bocas de vacas ou cadelas dopadas. Hoje em dia, as vacas são dopadas por Rivotril.
Lá estava a costura da operação. Uma costura enorme, um buraco gigante, do tamanho do mundo. Ali, entendi melhor seu estado psicológico atual. Glória se tornou um sapo.
Um sapo de macumba.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
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1 comentário:
Cara, eu tinha feito um super comentário, mas deletei sem querer...
odeio qnd isso acontece...
mas eu discussava sobre a tua teoria que arrancar dentes humaniza o homem, e dava alguns argumentos a favor... depois eu exponho novamente.
e não entendi o lance da vaca...perdoe a minha "iguinoramça"
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