terça-feira, 28 de abril de 2009

SINFRÔNIO

Sinfrônio. Arrancara de súbito, essa carta da manga. Sinfrônio. Ao arrancar, assim um nome do meio das lágrimas de incenso, restituiu o caráter humano e possível.
Sinfrônio era o encanador. Que maravilha! Um mundo que possuía, lírios, lágrimas e um Sinfrônio encanador. Lembrara ao ouvir o nome nascido de dentro do animal – era Jeremias quem cantava um nome – que um dia tinha desejado se transformar numa pianista clássica.
Sim, oito anos e as mãos trêmulas sobre o piano da avó. Seu Leopoldo, um vetusto negro de crânio nu, era de uma rigorosa didática musical. Batia-lhe com os caroços das mãos nos dedos hesitantes da menina magrela e estrábica. Ela ria, pois via em sua braveza uma zanga interpretativa.
Era fácil discernir, naquela época, a braveza real da ilusória. Só depois, mais tarde, pareceu-lhe ter ficado difícil e mesmo torturante, adivinhar a real intenção dos diálogos. Aos poucos foi perdendo o jeito, a ginga da convivência. E em tudo falhava. E em tudo, respingava o mal entendido das circunstâncias. Com os hematomas nas mãos, não sentia em Seu Leopoldo – cabeça grande, arrendondada, brilhava em sua calvície negra o deboche à qualquer tipo de afetação, era o próprio homem da terra, da luta inicial, resistente como o tronco antigo aos ataques da natureza – não sentia nele um mal-querer, nem a aridez de um desprezo. Seu Leopoldo a tinha em boa conta, a garota branca e zarolha, finíssima em sua constituição contrastante, e apenas forçava – na sua dureza laboriosamente enraizada – a abertura de um lírio atrasado.
E eis que lembra-se de novo de Sinfrônio, o encanador era a própria antítese para este instante nebuloso. Nada mais cru, nada mais trânsito, sol sobre a sacada, do que um encanador. A infância lhe tragava para o redemoinho das sensações. Não podia enveredar-se, impotente que estava, para esse emaranhado de luzes e sombras. O que precisava era de um encanador brutal, oleoso, nada gago e até um pouco vulgar.
Sim, ater-se em Sinfrônio, sua figura plástica e tangível a ajudava a nunca perder o fio, a enrascada era perder o único fio que a ligava ao tijolo diário e que nem sob as lágrimas que desciam do sofá para o assoalho banhado em fossa, poderia perder. Até as lágrimas precisavam reconhecer-se em algo, no caso, a fossa. E agora, Glória reconhecia-se em Sinfrônio, o velho bajulador, apenas um nome a mais no maremoto de rochas locatárias.
Um prédio estancara-se em sua mente. E rodopiava com seus quatro blocos ornamentais sobre sua imaginação. Via debruçadas nas pequenas janelas toda uma fauna de moradores.
Do vigésimo andar algo se desintegrava. Os ossos de Seu Leopoldo – pois que já morrera certamente, sendo um velho desde aquela época – sua caveira devia possuir uma ossatura larga, tão impávida quanto colossal dentro de sua solidez africana.
Viu como estou com medo? E como tremo! Uma pirraça, teimosia insone dentro do vestido vermelho. E o correio? Ainda sou a antiga destinatária de mim mesma? Se não me falha a memória, tinha chegado ao vértice da história, quando me vi parada e absorta dentro de um correio. Porque se parei nesse ponto, poderia escrever agora uma carta a Leopoldo. Da altura de um vigésimo andar e na aquiescência da obscuridade, só poderia clamar aos mortos.
Lembrara que antes de se ver paralisada, tinha-se prometido assistir a uma exumação. Iria assim, de gaiata, assistir a exumação de um desconhecido. Foi Vadim, o dentista, quem recomendara, já que na época, ela escrevia um texto sobre o retorno do homem morto. E agora já nem se lembrara que rosto possuía esse morto.
Que dias contavam? A vida não se conta em dias e sim em anos, alguém cochichou. Então lhe restara um correio, apenas? Cartas aos mortos? Sim, era a resposta.
E a tempestade formou o seu bote.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

CRISÁLIDA

Primeiro, foi a lágrima aliatória e involuntária que pingou de sua face sobre os bigodes espectrais de Jeremias. Depois dela, começaram a brotar as outras. Grossos pingos, estouraram no rosto lívido, como bolhas de queimaduras de sol. Ela não fazia nenhum esforço, eram lágrimas de outro mundo. Quem chorava por ela? Como a flor que murcha, sem conseguir impedir a transfiguração, ela aceitava impassível as lágrimas que escorriam livremente, desordenadas, nascidas não sei de que lamento longíquo. Quem olhasse de fora, imaginaria se tratar de uma imagem santa. O contorno de mármore e o ar imóvel e complacente, destilando fluidos de misericórdia. E no alto do altar, o canto dos círios num frêmito de desolação envocado pela voz monocórdia do padre albino.
Tinha dormido um pouco – ela achara. E acordara no meio da palavra: Crisálida. Assim, vinda desse jeito, tão oferecida, como um título: “A crisálida”. Agora, ainda teria que inserir a palavra nova em seu vocabulário de gato. Não, de gato, não. Não fora Jeremias quem sonhara. Ou fora? E essa confusão de destinatário, lhe causara certo enjôo febril que somava-se às lágrimas em flor. Gostaria de possuir lírios. Precisava deles, como uma formiga precisa de sua rainha para viver em devoção. Um jarro com lírios bem ao alcance da vista a observar incrédula, as pétalas se abrindo sem esforço algum. Mas, isso na verdade, não seria possível, visto que se houvesse mesmo essa jarra, acrescentaria-se novo crime à sua lista já imensa. Ela forçaria com os dedos turvos, a abertura das pétalas brancas, só para espiar gratuitamente o rosado do interior. Felizmente, que não possuía tal jarro. Felizmente, que nada podia fazer a não ser esperar.
De novo anoitecera. Sim. Poderia dizer: nova noite?
A fraqueza impossibilitava a exigência e a força da palavra. E calar era seu novo projeto. As lágrimas continuavam transbordando como numa torrente. A enchente humana e imprevisível. Assim, como a jarra de lírios existia londe de seus olhos e de suas mãos, amanhecidas em uma floricultura qualquer, as lágrimas também lhe eram desconhecidas. Talvez Jeremias chorasse por ela e na falta de uma expressão mais adequada àquele momento, pedia-lhe o rosto emprestado. Lírios obsoletos.
Obscura. Ela tornara-se obscura aos olhos da noite. A escuridão a relegara ao papel de espectadora. E a tempestade novamente formava-se no céu. Sempre uma promessa não cumprida. Novas promessas se sobrepunham umas sobre as outras. Como o dia sobrepunha-se sobre si-mesmo. Folhas selvagens. O coração estava indo embora, tão longe, como os lírios que não descansavam dentro do botão e evitavam abrir-se.
Cansara de esperar. O coração a beira da guilhotina. O coração era o sonho que não chegava. Sonho que se esvaía, no seu coito, interrompido. Amor interrompido. Crisálida.
Seria possível, retornar? E onde estava agora, poderia enfim, impor o grito? Não, rosnou rancoroso, o último ronco do céu. A palavra lúgubre que um dia amara, se interpunha entre ela e a jarra de lírios imaginária. Viver, era enfim uma ação.
A ação era enfim, a inação.
A inação não se interpunha entre ela e o grito.
Mas, faltou-lhe fôlego no momento exato.

quinta-feira, 23 de abril de 2009



terça-feira, 21 de abril de 2009

OUTRO DIA_ O MESMO

21/04/09

Toda quebrada, Glória levou um susto ao dar de cara com Jeremias lambendo-lhe a cara. Nunca dormiram juntos. Ele armava mil artimanhas, escondia-se atrás da cortina, dentro do armário e corria para o quarto, assim que percebia Glória apagando as luzes da casa. Agora, podia comemorar. Dormiram a noite inteira juntos e abraçados.
A multidão vociferava. Era o jogo. Glória tentou erguer a coluna do sofá e não conseguiu. Dormiu de mal jeito e estava realmente quebrada. Precisava saber se algo tinha mudado. O sol entrava furioso pela janela envidraçada. Preparou-se para levantar-se dali. Ainda bem que ainda tinha um pouco de água no copo e seu calmante estava bem ao seu lado, ao alcance das mãos. Jeremias roçou a cabecinha em seu braço. Glória tentou levantá-lo para retribuir o gesto. Foi então que percebeu que seus braços não se mexiam. Deve ser uma espécie de dormência momentânea, concluiu. Daqui a pouco com certeza passa.
Os fogos de artifícios pipocavam. Glória repetiu a mesma tentativa. E nada. Será que tinha dormido em cima dos braços? O hino da vitória recomeçou. Jeremias assustou-se, mas não saiu do sofá. A multidão parecia tão unida, tão feliz! Ela ouvia toda a vibração sonora do estádio. Jeremias lambia agora as suas mãos. Estranho. Ele nunca fez isso... Será que ele sabe? Glória agora respirava fundo. Tentou manter a calma. Isso não estava acontecendo. Realmente, não estava. De novo, e com toda a concentração possível, tentou erguer os braços, as mãos, os dedos das mãos.
Nada. Movimentou a cabeça. Perfeita! A cabeça movimentava-se perfeitamente. Girou a cabeça para a esquerda. Depois para a direita. Sua cabeça estava ótima e movia-se tranquilamente pra lá e pra cá. Aproveitou para dar um giro de trezentos e sessenta graus, pra relaxar. Mas... Peraí! A cabeça está perfeita por fora, mas e por dentro?
Fez um teste: Quem foi a última pessoa a entrar na casa?
Resposta: Doda – O Gago. Bom, como poderia saber se estava certa, se não tinha ninguém para confirmar? Há! Que idiota! Bem, bastava que sentisse uma certeza e estava tudo certo. De mais a mais, se tivesse sofrido alguma espécie de amnésia, não saberia nem quem era Doda – O Gago.
O sol esquentava todo o apartamento e Glória suava, embaixo do casaco de lã. Se ao menos pudesse tirar o casaco... Ou tomar o calmante. Não, o que é isso agora? Você não vai
começar a chorar que nem uma criancinha, vai? Se abrir o berreiro o clima vai ficar realmente insuportável, pense no Jeremias... Ou sei lá, apele para o senso-estético das obras teatrais. Vamos à Shakespeare, à Harold Pinter ou até mesmo à Sófocles. Já imaginou a Jocasta abrindo o berreiro? Sófocles não seria Sófocles e sim um chato de galocha.
Foi castigo. Deixei de tomar as vitaminas e fazer os exercícios físicos e olha no que deu! Essa deve ser a matemática do universo. Como eu negligenciei meu corpo, eles o tomaram. E agora, o cérebro. O cérebro funciona perfeitamente e até a cabeça se move. E isso é bom? Não seria melhor estar incosciente?
Alguma hora, em algum momento, e isto é realmente óbvio alguém baterá nesta porta. Doda – O Gago não apareceu ontem? Então... Ele disse que iria falar com o Sinfrônio para desentupir o ralo do banheiro. Foi quando Glória olhou pro chão e viu a água que inundava a sala, formando pequenas pocinhas de água. E sentiu o odor de fossa.
Claro que este cheiro vai exalar pra fora e Dona Miriam aparecerá aqui com sua pochete e por sinal, muito brava. Nunca imaginei sentir tanto a falta de Dona Miriam como agora. Por que brigamos, mesmo? Eu ofendi o César, foi isso. E ela tomou as dores. Tá bom, não foram ofensas banais, eu lati feito um pit-bull, pra ele. Xinguei, xinguei muito. Conhecia até então, os gafanhotos e as cascavéis que moravam dentro de mim, mas ainda não tinha sido apresentada aos escorpiões.
Ele me deixou esperando por mais de duas horas. Deixei de ir ao banco, de almoçar e ainda cheguei atrasada na reunião. Quando interfonei, ele respondeu que não viria. Não tinha horário em sua agenda. Se ao menos tivesse me avisado não teria me feito esperar o dia todo. E ainda por cima, gritou comigo, no interfone. Foi então que deu aquele curto-circuito, no prédio todo. Quatro blocos. Era eu, batendo com o interfone contra o bloco de concreto da parede – Quando eu era pequena e me sentia contrariada, batia com a cabeça na parede até formar um galo. Na época, era meu fiel companheiro, Haroldo, o galo. – Eu bati tanto com o interfone – era como se esmurrasse ao vivo a cabeça de César – que deu um curto geral nos prédios. Até hoje, os interfones dos quatro blocos não funcionam. Será que é por isso que Dona Míriam anda virando a cara pra mim?
Foi a raiva que me fez ser devorada pelo sofá?
Nunca imaginei sentir tanto a falta de Dona Miriam. Em muitos momentos, ela foi a única pessoa presente. Era ela quem colocava a comida do Jeremias quando eu viajava a trabalho, e ainda, trocava a areia dele pra mim. Segurou a barra das multas do condomínio, as queixas dos vizinhos contra os gritos orgiásticos – hoje tão antigos e tão remotos. Foi até Aricanduva ver a peça dos meninos e ainda voltou toda emocionada, quando eles me agradeceram, no palco. Uma verdadeira mãe. E tudo isso, para terminar assim, duas caras viradas para lados opostos. No mesmo dia da briga a chamei para conversar. Ela estava na salinha de vidro da portaria, conversando com César e mal me olhou, dizendo: “Hoje, não dá.” Logo depois, houve a extração dentária e eu não conseguia articular uma palavra. E junto com a dicção prejudicada, um sério desânimo para as justificações. E assim, nos resignamos à inércia da indiferença, como se fôssemos duas estranhas uma pra outra. Quando tive cálculo renal, foi ela quem me levou ao hospital, quando ela teve uma crise de artrite, fomos eu e o Antônio – o namorado antiquíssimo – levá-la ao Pronto-Socorro. E assim, as histórias terminam. Hoje, já não existe nem Antônio e nem Dona Miriam. São como dois estranhos. Dois vultos que a memória insiste em apagar.
Mais fogos de artíficios. Quem ganha? Quem perde?
Glória estica o pescoço e tenta espiar a vista, consegue ver os últimos andares dos prédios, a árvore amiga, tão próxima, ali, do lado direito e aqui, mais próxima ainda de Glória, todas as nuvens do céu. Elas agora estavam quietinhas, paralisadas, como que em solidariedade à Glória. Como o céu é bonito daqui! E somente agora parecia ter descoberto a sua vista. Nuvens rosadas espalhavam-se languidamente sob um azul pálido, que caia como um véu de noiva em cima delas, dando-lhes um colo, protegendo-as. Um fraternal abraço de Pai.
Que bom ter deixado aberta as janelas da sala! Graças a Deus! Posso ao menos assistir o despertar e o cair do dia. E ficar assim como o azul do céu, em volta do Jeremias que aconchega-se em meu colo.
Ainda o céu é possível, pensava Glória, enquanto via Jeremias iniciar um despreocupado bocejo. Estou tão calma! E isso é o mais estranho... E ainda dentro de suas divagações – pois que nunca perdia o fio, ainda mais agora, sendo esta, a única coisa que lhe restara – ela argumentava para si-própria que mesmo com todo o rancor e ressentimento que ainda nutria por Glória, Dona Miriam não poderá deixar de dar-lhe por sua falta e muito provavelmente, pedirá com aquele seu jeito ranzinza, para alguém subir e ver o que está acontecendo. Sim, era assim que Glória pensava e isso de certa forma, a apaziguava. Jeremias parecia de repente, um pouco aflito. O que seria? E por que também ele, não saia do lugar? Acho que deve ter acabado a sua comida. Deus! Por que não pedi ontem para o Doda, colocar a ração dele?
De repente, Glória parou. Uma espécie de corvo passou como um fantasma pelo seu pensamento e agitou como um apito de trem, os dois olhos grandes, de um castanho nublado pelo fástio da própria cor. Inquiriu a paisagem, meneou a cabeça levemente e franziu as sombrancelhas grossas, numa espécie de grave meditação. Sentiu o mesmo aperto no peito do dia anterior, agora sem ter o regalo de tocá-lo com as mãos. Seus olhos já escuros adquiriram um negro esfumaçado, pictórico, como são os olhos escuros das pessoas velhas, que se desbotam, derrisórios e ganham uma nova membrana, quase invisível, mas que oculta a verdadeira cor. E ali, Glória, vinte e nove anos, envelheceu. Ainda sem saber pra que faixa etária pulara, ela continuou concatenando os fios de pensamentos que se cruzavam, só queria pensar melhor antes de esticar os olhos sobre a trama. Meticulosa. Era desde sempre uma mulher muito meticulosa. Não tira conclusões precipitadas, diria alguém, nom tom pomposo. Há momentos na vida em que envelhecemos de uma só vez. Por nossos olhos, passam dez, vinte, ou até, trinta anos. Assim, velozes, roubando nossos anos e arrancando o brilho de nossos olhos como quem chupa o caroço de uma jabuticaba e joga-o fora, sem nem ao menos dar-lhe uma última conferida. Isso pode acontecer em qualquer fase da vida. Aos vinte, quarenta ou aos dois anos de idade. Um dia, Glória conheceu uma menina de uns quatro anos e o seu olhar tinha a agudeza de uma velha de sessenta. Era grave, quase austero e firme. Pode-se mesmo dizer que ela possuía um olhar sábio, de velha dama. Glória por três noites, não esqueceu aquele olhar e muitas vezes, o tateou no escuro do quarto. Na sua investigação imaginativa, tentava encontrar um enredo para aquela insólita transformação. Precipício.
Envelhecemos diante do precipício e ao confirmamos nossas suspeitas de infância, que hermeticamente postas de lado durante a vida adulta, nos esquecemos de lembrar.
E como aquela menina, quatro anos, poderia já ter tido contato com a grave constatação da existência?
Não se sabe, ninguém sabe. Nem ela.
Glória esticou de novo o pescoço, tentando reagir aos corvos e aos pensamentos que grudavam em seu cérebro, como algas marinhas que se colam aos cascos dos navios afundados. Só queria ver os prédios do outro lado da janela. Ainda bem que deixou as janelas abertas, assim podia entrar essa brisa, que por si só, já era uma bondade divina. E Glória começou a agradecer. Por tudo. Pela brisa, pelo céu, pela janela aberta, pela cabeça que ainda funcionava, pelo sol, pelas nuvens, pelo rumor dos pássaros e a graça da mariposa que se pendurava na parede, como um quadro. O único quadro da casa de Glória. Agradeceu a Yemanjá, Mamãe Oxum, Papai Oxóssi, Nossa Senhora de Fátima, São Longuinho, os Três Reis Magos, Deus, Lackshimí, Chrisna, Ganesha e São Jorge. Santo Antônio, não, ora essa. Aí já seria hipocrisia. Tá bom, a Santo Antônio também. Obrigada.
E o pensamento voltou. Ele era assim: Ela estava muito confiante de que alguém viria lhe socorrer, afinal, morava num prédio com quatro blocos e tinha feito algumas amizades nesse tempo todo. Além disso, havia Dona Míriam e os funcionários, que sentiriam a sua falta e não poderiam deixar de perguntar sobre o seu sumiço. Como boa síndica, Dona Míriam era ligadíssima em todos os moradores e queria o bem-estar geral, acima de tudo. Apesar do quê, sua raiva pelo ataque de Glória, depois do fatídico episódio com o porteiro, poderia ter ganho proporções maiores do que imaginava. E, havia ainda, uma questão mais profunda e mais terrível do que tudo isso. Se Glória estava presa num único dia que retornava, sempre retornava pra ser ainda o mesmo dia, como alguém sentiria a sua falta? E ouvindo os fogos de artifícios e as comemorações que insistiam em ecoar pelo apartamento, Glória confirmava aterrada que os dias não estavam passando, mesmo.
E então começou a crise nervosa.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O GAGO_DONA ILHA

Logo agora que o sol reflete seus últimos raios nas janelas do edifício da frente e brilha no horizonte o vermelho radioso, veemente, já sumindo, despedindo-se dos prédios – assombrava até este instante, três andares integrais com seu vermeho alaranjado - e agora, diante de seu movimento de queda, só restam dois andares, retornando o olhar somente um e, enfim, sumiu. Acabou. Com muito otimismo e algum esforço, assim, comprimindo um pouco os olhos, Glória poderia até enxergar os resquíscios de sua despedida, na lateral do prédio acima, ainda em construção, iluminando – mas muito sutilmente – seus andaimes. Junto com a chegada da noite, nuvens espessas, pesadas, vestindo trajes de gala cinza-escuro, se aproximam portentosas e solenes, anunciando a chuva. Entre as variações de cinza, alguns mais claros e mais amenos, invadem o conjunto alguns clarões, que esparsos, iluminam essa condensação de nuvens. E era ali, que Glória fixava o olhar, como se vislumbrasse uma trégua. As nuvens deslizavam com a imponência das passarelas, o mesmo ar distante e inatingível da manequim, exibindo seus diferentes tons e formatos, e num vagar cauteloso, lúgubre, como que reverenciando a implacável Onisciência do infinito. Devagarzinho, elas chegam até Glória, que continua concentrada no único clarão visível, uma bolinha semi-aberta e já partindo. Entre as nuvens mais ásperas e duras em seu cinza lúgubre, um leve tom de rosa claro desabrochava no meio delas, dentro da fenda. Glória segurou-se nessa fenda o quanto pode, como se esse risco luminoso fosse a corda em que o equilibrista se move e que seguindo adiante some, engolido pelo mistério do circo. Ou como se fisgasse o único peixe vivo de uma lagoa infectada.
E agora isso, as nuvens negras estão devorando a nesga do céu. Nada de tréguas. O soluço irrompe, quinze para as sete e ele é pontual. Glória sente uma estranha pontada e aperta contra o peito as mãos exangues. Logo agora, Doda – O Gago, aperta a campainha. Glória faz pose de sensata e segura um livro. Sim, assim que ele for embora, tudo voltará ao normal. E pensando bem, talvez não seja má idéia pedir-lhe para retirar-me daqui de dentro. Não. Isso iria lhe parecer por demais espantoso, uma piada de mau-gosto e poderia até, no pior dos casos, insinuar um vaticínio fatal. “Glória teve um acesso de insanidade mental, insanidade mental, pois sim.” E logo depois, eis a síndica aqui dentro, no meio da sala, com aquele humor imprevisível e a costumeira disposição dionísiaca em arrancar paredes. Não, nada disso, isso beiraria o limite do suportável. Era melhor ficar quieta, bem quieta. Fingir naturalidade. Estou afundada neste sofá, mas é por pouco tempo, claro. Óbvio. É Ó-b-v-i-o!

– P-p-p-osso e-entrar? – murmurou a voz do outro lado da porta.
– Claro Doda, estou com uma dor de coluna terrível e preciso ficar sentada, mas entre.
– É-é-é q-que a p-porta e-estava a-aberta e- e-e-eu...
– Sim, sim, eu deixei a porta aberta, claro, você não vinha?
– É-é-é v-v-verdade.

Meu Deus, isso demoraria horas, o pior era a vontade que Glória sentia de rir toda vez que ele se esforçava para engatar a primeira e prosseguir. Era a luta quase inglória pela comunicação. A palavra que não vinha, o sufoco em caçá-la, correr muito, o fôlego já no limite, enlaçá-la à força, para só depois desferir-lhe o golpe final. Lembrou-se ali naquele instante de Dona Edith José e seu embate com a carne, o sacrifício diante da tremedeira toda – resultado da cirurgia do coração, erro médico, ela repetia – e o caminho tortuoso do prato até a boca, para finalmente ser vencida pela avidez dos dentes – não tão ávidos assim – e cair direto no estômago de Dona Edith.
Doda e Dona Edith José Fernandes Coelho: a luta constante, exposta aos olhares alheios, às piscadelas e tapinhas nas costas e que atravancava o apetite e a fala, impossibilitando assim, os momentos triviais da facilidade, do repouso. Meu Deus, isso era torturante demais, mesmo para Glória e ela queria mostrar-se solidária, queria inclusive, ajudá-lo a desferir as palavras. Estava agora, como uma professora de primário, falando junto com o homem. Sem som, apenas seus lábios se mexiam enquanto ele tentava deslanchar as frases. Doda fingiu que não percebia. Mas percebeu tudo. Não queria constrangê-la e olhou pra baixo.

– Doda, é só ir ao banheiro retirar o chuveiro antigo e colocar o novo, que está dentro da estante, à direita. A escada está no quarto dos fundos. Tudo bem? Estou sentindo-me mal, não posso sair daqui. Recomendações médicas.
– C-c-claro G-g-glória. E-e-eu vou pegar a-a-a e-escada.
– Faça isso Doda. Está atrás das malas.
– T-t-t-tá bom.

Sentia-se ainda mais sufocada diante da presença de Doda. Ele parecia uma criança, tinha o
ar vago e cansado, seus olhos não pareciam com os de um adulto. Parecia assustado e pequenino diante de sua própria aflição. Será que Glória enganava-se? Seria ele um verdadeiro canalha dentro de suas quatro paredes ordinárias? Enganava a mulher, batia nos filhos e ainda assediava a filha de doze anos do cunhado? Prefiro seguir acreditando que ele é a única pessoa pura do planeta Terra. E vencida pela poltrona movediça, Glória tentava concentrar-se no livro que tinha em suas mãos: “Saúde Persecutória”.

– Ô-ô-ô G-glória! Você tem uma c-c-chave de f-f-fenda?
– Sim, está na caixa de ferramentas perto da escada.
– Já p-p-procurei ali d-d-dentro e não a-a-achei.
– Então... Bom, a única chance é que esteja dentro da gaveta, aqui Doda, na mesa do corredor.

Que coisa lastimável, ficar berrando feito uma galicha choca e ainda por cima sem nenhum motivo plausível para legitimar a imobilidade. Realmente eu consegui ultrapassar os limites permitidos do ridículo. Ele deve estar pensando: que mulherzinha mais folgada, nem pra levantar do sofá e ainda queixando-se de dor na coluna! Por que eu não lhe contei a verdade? Que fui abduzida pelo sofá? Seria mais honesto e mais crível. Preciso me acalmar e o pior é que meu floral de Bach está no quarto e os calmantes na cozinha.

– Doda, você poderia fazer um favor pra mim? Pegar meu floral de Bach...

Assim que ela falou percebeu a gafe, mas já era tarde. Lá vinha ele em passos apopléticos com uma cara verde-musgo. Por favor, Glória, volte pra terra imediatamente, é uma ordem!

– O-o-o q-q-eu foi s-s-senhora?
– Não... É q-q-que e--eu...

Pronto. Agora o círculo dos horrores completou-se. Estou encarcerada em um dia que retorna invariavelmente, fui abduzida por um sofá idiota e ainda estou gaga. É uma conjuntura realmente maravilhosa. Serão os astros? Algum retorno de algum Saturno? Eu só espero que não entre nessa casa, nenhum cego pelos próximos quinze anos.

– O-o-o q-que a s-s-senhora p-perguntou?
– N-n-nada. Nada. Está t-t-tudo bem.
– Eu n-n-não achei a cha-a-a-a-ve de fenda.
– T-t-tá bom, ótimo. Você não está achando a chave de fenda e eu não vou sair daqui n-n-nunca mais e a-a-ainda...
– N-n-nossa, está tão s-s-sério a-a-assim, s-senhora Gló...
– Doda, por favor, você p-p-pode buscar um remédio pra mim? Está na cozinha em cima da p-pia.
– P-p-p-osso s-s-sim.
– O-o-obrigada.
– É-é-é esse a-a-aqui?
– É. M-m-muito obrigada, Doda. Ai meu Deus c-c-como é que eu v-v-vou tomar?
– E-e-eu b-b-busco um c-c-copo d’agua.
– B-b-brilhante Doda.

Glória toma o remédio e tenta levantar-se do sofá, como se nada tivesse acontecido. Doda fica parado de frente pra ela e de boca aberta, sem compreender. Ao tentar se equilibrar, ela tomba e cai de volta.

– N-n-não quer que eu c-c-chame....
– N-n-não. Está t-t-tudo bem. O remédio demora mesmo a f-f-fazer efeito.
– P-p-posso te a-a-judar a levantar d-d-de n-n-novo.
– Não. Você já me a-a-ajudou muito trazendo o remédio. Doda, e-e-eu lembrei onde está a-a-a chave de f-f-fenda. Ela está no e-e-escritório. Esqueci lá, o-o-ntem.
– A-a-ah, t-t-á bom.

Por que isso está acontecendo? Esse homem tem que ir embora imediatamente daqui e ninguém poderá entrar nessa casa, nunca mais. Deve ser algum distúrbio sei lá, meu organismo está tão vulnerável que qualquer coisa me contamina. Será que pensamentos pegam? Quais serão os pensamentos de Doda? O pensamento dele também é gago?
Ninguém poderá entrar. Nunca mais. Entendi, tudo. A c-c-c-onspiração. Sempre achei isso, que eu somava os defeitos dos outros. P-p-p-principalmente os dos meus p-pais. M-mas agora também já é-é-é demais. Ele precisa colocar logo esse chu-u-u-veiro e cair fora, antes que uma desgraça maior aconteça.

– E-e-está aqui mesmo D-d-ona G-glória!
– Ó-ó-ó-timo, Doda. M-m-mãos à obra!

Enquanto Doda está no banheiro, Glória tenta levantar-se do sofá mais uma vez. E tomba. E tomba. E tomba. O que aconteceu? Teria ficado paraplégica sem nenhum acidente? Foi porque desejou a doença? Mas a doença era uma coisa boba, febre, apendicite, algo assim que possibilitasse uma parada. Um olhar-paredes inofensivo. Sem exigências de maestrias ou virtuosismos. Nem aperfeiçoamento de enredo ou vocabulário. O descanso só permitido pela licença médica. Mãe! Pai! Por que eu fiquei assim?

– Já t-t-roquei dona G-glória. E-e-está funcionando que é uma b-beleza.
– Q-que bom. Fico m-muito c-c-ontente.
– E-e-estou p-p-preocupado com a senhora d-dona Glória.
– Não f-fique. O remédio já está f-fazendo efeito e l-logo mais e-e-estarei ó-ótima. Pode ir Doda e t-toma aqui.
– N-não p-precisa, n-não. A s-senhora me d-d-eu um s-som.
– Ah, alías ele e-e-está f-funcionando?
– Ôo! Uma m-maravilha!
– Q-que bom! E-estava com ele parado a-a-anos aqui em c-casa.
– E-e-era só um fiozinho d-d-de nada.
– F-f-ico feliz. M-mas toma aqui pra a-a-ajudar.
– Não p-p-precisa. Então t--tá bom, eu a-a-ceito.

O telefone toca. Doda, vendo Glória imobilizada, corre para atender, agaixa-se diante do telefone.

– N-n-não atenda!
– T-tá bom – ele levanta.
– Não. Pode atender.
– T-t-tá bom. – retorna a agaixar.
– N-n-não!
– T-tudo b-bem – levanta
– É melhor a-a-atender sim.
– P-p-p-parou.
– T-tudo bem.
– J-j-já vou indo, e-então.
– Tchau, Doda. O-o-brigada.

A porta da sala bate. Que alívio. Agora eu já posso voltar a f-f-falar normalmente. Eu j-j-já sei o que foi isso. E-e-eu quis ser solidária. Ajudá-lo a fisgar as palavras e f-f-fui eu quem acabou sendo f-f-fisgada. Olha pra você, G-g-glória! Sentada nesse sofá e de vestido vermelho, apodrecendo nesse sofá. Esfarelando j-j-junto com ele. U-uma coisa só. E eu procurando as outras rochas. A-a-as rochas de L’Estanque, quadro do Cé-é-ézanne. E quando as encontro, elas são gagas.
Escurece cada vez mais profundamente. O soluço intensifica-se. Glória está afundada no sofá e com um soluço violento. Jeremias retorna do quarto ao perceber que o homem saíra. Fiquei tão abismada em seu processo doloroso de atrair as palavras que lhes viravam a face, que também eu lhes virei a face. E agora o maldito soluço! Jeremais sobe no sofá e olha para Glória. Não me olhe assim, seu pequeno Nada. Ele continua olhando-a fixamente e ela se vê refletida em seus olhos amendoados. Isso lhe causa uma dor terrível e uma cólica renal. Ele insiste ainda por algum tempo e ela permanece sobre seus cuidados.
Meu Deus, eu sou esse gato.
Compreendo esse olhar mais do que essas nuvens no céu e essa cólica. Eu sei o que ele quer dizer, o que ele está dizendo, é tão possível nosso diálogo! É tão natural. Por que com os outros não é assim? E por que eu, Glória, do alto dos meus vinte e nove anos – ou serão mais? – permaneço aqui em cima, no vigésimo andar, há anos?
Sim, há anos estou aqui, gaga e míope, olhando de cima, recusando convites e quando os aceito é para ficar esquecida no fundo da festa, espremida num sorriso amargo, nada reconfortante. Ah, chegar em casa depois de uma dessas festas! Tanta gente inteligente, tantos brindes, tantos cachecóis e os olhares murchos, desintegrando-se, ou animados quem sabe, por uma dessas químicas revitalizantes.
É abominável como venho me falsificando há tanto tempo. Tenho vontade de vomitar. Eu chego em casa, olho a casa, enfim sós. Enfim. Retornam as sólidas cólicas, essas sim, reconfortantes, quase mineirais. E os movimentos simulados repetindo-se, arrastando-se pela casa atrás de mim, cauda de dragão, espessa sombra. Um cavalheirismo oco, sombrio, repousado, o desses movimentos. A glória da casa vazia. Um brinde! Clap,clap,clap – são palmas. Obrigada. Não tem de quê. Merci beacoup. Au revoir. Os movimentos movediços tão adequados – frequentemente adequados, até nobres, pode-se dizer assim? – só que agora entre quatro paredes ordinárias. Muito compensadoras, diga-se de passagem. Um bloco de concreto admirável. Poderia foder com este bloco de concreto tranquilamente, gozar em cima dele, esmagá-lo no meu amor. Tanto amor eu tenho. E guardei pra ti, paredes infinitas, intransitáveis. O que há por trás de tantas paredes? Mais paredes? Outras gargalhadas? Vinhos melhores? Novas músicas? E então, retiro a maquiagem.
E sufoco, ao relembrar as gargalhadas falsas, a sedução barata, os ataques de intelligentzia. É terrível. Ver passar a vida e esforçando-se por agradar intermitantemente. Sem um único intervalo. Como se quando fechassem a cortina, o espetáculo continuasse ainda com mais vigor. Mais pungência. Como se isso fosse verdadeiro e até viril. Ou mesmo necessário.
Como é cansativo. Como é barato. Não se dar a chance de um mísero suspiro sem pingar-lhe junto um punhado de virtude. Nunca desfazendo-se da pose. Nunca deixando-se entrever a queda. Puro perfume. Puro artifício. Uma guerra vencida.
Derrota absoluta. Perda total. Nenhuma lesão, escoriações leves e perda.
Total.
Nem na doença. Nem na morte. Talvez, só no nascimento tenha existido um gesto verdadeiro. Único e logo esquecido. E em alguma parte remota da infância. Madrugadas acesas entre os quatro irmãos. Confissões leves, medo de elevador. Alguma coisa nasceu em determinado momento. Alguma coisa que reluzia e não valia um tostão.
E garrafas de vinho são esvasiadas na noite que brilha, casais se formam, brigas esquentam e mais nada. A festa logo mais acaba, é só clarear o dia. Foi tudo em vão? E por que voltar e voltar a sair? Há sempre uma esperança. A esperança utópica do encontro.
Chego em casa e relembro, estou relembrando e retirando a maquiagem, tudo junto assim, é possível fazer duas coisas tão complexas ao mesmo tempo? Relembrar e retirar a maquiagem? Não, não é. Olha que porcaria, sujei todo o box. Relembro cada detalhe irremovível da noite, as frases feitas, algumas máximas, lâmpejos sagazes e até alguma espirituosidade e mais adiante, agressiva depois do terceiro copo, estilhaço no meio da sala uma palavra ferina, olhar de garça ultrajada, medidas provisórias. Escureço aos poucos, conforme os olhares vão fugindo e começo a me tornar definitivamente mordaz.
E mato. E roubo. E incendeio. Firo com a ponta da lâmina, fazendo pequenos furinhos em volta do glóbulo ócular. Até desmaiar. Sou o cão da noite, esmagando os cacos de vidro e agitando o espelho em uma das mãos, até enlaçar uma vítima e jogar nela todas as minhas frustrações irremediáveis.
É uma violência, sair de casa. Sim, eu admito. Para mim, para os outros, e para os Deuses. E é por isso que estou sendo engolida, devorada por esse sofá. Uma morta viva. Sanguessuga existencial. Vomitando palavras.
Do outro lado do espelho, e não menos terrível está a bondade humana. Eu quis ajudar Doda, achando-me superior, como se eu estivesse acima dele, só porque consigo – conseguia – murmurar cinco ou seis palavras sem parar. Castigo dos Deuses, sempre implacáveis. Tornar-se-á gaga também.
E Doda nem adivinhava o quão afundada, Glória estava.

domingo, 19 de abril de 2009

O MESMO DIA _ DONA ILHA

Glória acordou assustada ao ouvir o estrondo forte dos fogos de artifício. Depois de uma noite exaustiva de trabalho, foi dormir já de manhã e com a cabeça imersa na peça que terminava. Acordava ainda sem saber se o estrondo fazia parte do sonho ou se realmente existia. A última imagem: uma mulher nua perdida no quintal da própria casa, encaixava-se devagar ao turbulento começo do dia que já gritava a sua presença. Como dormira já de manhã, não parecia de jeito nenhum que adentraria agora em alguma coisa semelhante a um início e sim que continuaria a existir de um modo vago, esgueirando-se pelas paredes e entremeada pelos sonhos. Entre a narração - marcada pela cadência vigorosa do sonhador - e as palavras afobadas pela respiração desestruturada da mulher perdida no quintal, sobravam ainda restos de palavras sem qualquer elo, aquele final tímido das confissões quase inaudíveis, faíscas soltas, lâmpejos que misturavam-se com trechos de livros e frases que escrevera já com o dia amanhecendo. Sentia que não dormira, apesar do peso das marteladas que como um bate-estacas, furava a sua cabeça com símbolos, sílabas novas que não formavam nem sequer uma palavra e tudo isso fazia parte de seu sonho que era, este sim, prova inconteste de seu descanso. Ela erguia vacilante os olhos para os dois focos de luz sobre o quarto, o sol que por pequenas brechas se adiantava sobre a cortina: um dos focos abrilhantava a moldura do porta-retrato vazio e o outro iluminava uma foto do mural: o cachorro Gaffe de sua mãe.
Mas os fogos de artifício obrigaram-na a levantar-se de vez. Jeremais miava do outro lado da porta. Era preciso levantar e voltar ao trabalho, faltava pouco para finalizar a peça. Queria ainda permanecer um pouco na cama, imersa na armadilha do sonho, com essa mulher perdida e nua e tentar convencê-la a achar a saída e a casa, e isso quem sabe salvasse o seu dia. Ou a sua vida. Os fogos inviabilizavam a proximidade entre as duas mulheres. Será ela a outra rocha? A que silencia, a que aguarda? Ela pode ter alguma coisa importante para me dizer e se eu levantar daqui, nunca vou saber. Mas Glória levantou-se exaltada ao ouvir o chamado do telefone, e ao ganhar a sala ouviu os gritos de comemoração. O telefone já não tocava mais e foi então que teve a impressão assustadora: de que o tempo não passara. Era ainda o mesmo dia.
E o mesmo.
Será então que Glória desde a extração dentária não havia percorrido novos dias? Será que simplesmente os dias deixaram de a seguir quando parou de dar corda no relógio da sala? Seria uma catástrofe absoluta se acontera justamente o que sempre desejou: a doença de infância.
Sim, a doença que a libertaria da sobreposição frenética dos dias, a doença da infância, o retorno ao útero, o dia repetindo-se, alargando-se e sempre o mesmo como se fosse uma justaposição. Tudo retornaria como que por um milagre. Todas as memórias, todos os cheiros, as minúsculas intuições, os velhos desencadeamentos. Um dia que retornava sempre ao começo dele próprio abarcando assim todas as oscilações vindouras, pois ele se consagraria ali num movimento único e elástico e Glória poderia relembrar-se e relembrar-se e relembrar-se, como a boneca russa, retirando-se de dentro dela mesma a cada dia e diminuindo cada vez mais de tamanho até chegar à Origem, ao começo de tudo. Como quando colocamos uma camisa em cima da outra em dias de frio. As várias camadas em volta de um único meridiano, a própria Via-láctea. Um dia que recomeçava sempre no mesmo ponto e que novamente se desmanchava para continuar o mesmo. Seu sonho se realizava? Mas como seria isso? Ficar agora presa no mesmo dia? Tanto ela quis chegar ao xis da questão, na raiz das coisas que acabou chegando. Raiz quadrada, raiz cúbica? Tanto ela quis ser uma linha reta que acabou sendo. Tanto desejou deixar de circular em volta dos dias como se circulasse em volta do próprio rabo, que parece ter atingido o rabo. Chegou ao ponto.
– Ei Glória! É esse o ponto, você chegou. Mais rápido do que imaginava, hein? Sim, é aqui. Parece muito com um correio, você não acha?
Por vinte e nove anos recebi cartas que nunca abri e que agora sou obrigada a ler. E até vislumbro, veja só, planejo um álbum de cartas. Cartas antigas, novas e até as que ainda não foram escritas. O correio, esse ponto onde estou agora pode ser chamado assim: Correspondência, sim, é assim que o vejo, é o título do xis da questão, não, um título seria como colar uma etiqueta e engoliria todas as cartas, mascarando-as. Não é um título, é apenas um nome transitório, sim um nome que muda conforme o dia cresce, morre e recomeça. E aqui, neste correio onde estou, remetente e destinatária, encontrei sem saber a raiz que procurei para reafirmar esse buraco do dente. Um buraco que instalou-se em mim após a extração. Trabalho, almoços no restaurante à quilo, inundações no banheiro por causa do ralo entupido e jogos de futebol com os mesmos gritos e apelos. É sempre o mesmo time que vence. Fui tragada pelo dia que passava, como uma nuvem é tragada pela tempestade que desaba. Condensei-me. Estou agora aqui, bem dentro dele, como numa bolha. É a mesma mariposa que passa minutos antes do alvorecer, o céu tingido pelas mesmas cores de ontem ao se despedir do dia e nessa mesma ordem: carmim, laranja, amarelo, cinza e azul. Acho que nunca mais verei o lílas do crepúsculo outonal. Vou permanecer aqui, um eterno verão. Agora entendi o soluço pontual das quinze para as sete da noite. E os rochedos. Estou exatamente ali, junto aos outros e para sempre paralisada na pintura.
– Glória, não se engane. Mexa as pernas, os braços, estique-se e saia desse sonho!
– Não adianta mais, todas as vozes são a mesma e o que escuto nasce perpetuamente dentro dessas paredes, atravessando-as para estilhaçar no apartamento vizinho, até parece que janto com eles, que mastigo na mesma velocidade, muita couve e pouco talher, enquanto entreolham-se e dão suas gargalhadas cúmplices. E é neste prédio onde todos os blocos são iguais, que me restringi à meia dúzia de pessoas, são elas as outras rochas, habitantes do mesmo quadro. Aportei neste ponto único, irremovível. Foi um apelo, uma oração desde sempre ansiada e o eco tardiamente cedido. E eis-me para sempre no último prédio da rua Tavares Bastos como em L’Estanque.
– Rocha Glória. Lembre-se dessa meia-dúzia de pessoas e interfone. Alguém deve te render sem mais demora desse pesadelo.
– Pedi tanto a doença, coisa boba, febre ou apendicite, sonhei durante muito tempo com a tuberculose, a peste branca como se chamava na época. Não me atrevi a interromper a maquinaria da vida com minhas indagações ou sugestões. Estaria ali no alto da montanha e liberta da culpa pela licença médica. Continuam os fogos de artifícios, é um jogo sobrenatural. O que isso quer dizer? Estanquei em um ponto onde a multidão tem um único grito e esse grito é o nome de um time de futebol.
– Não sair mais daqui, chamar as pessoas que são as outras possíveis rochas. Meus vizinhos. O edifício eterno e compacto: Edifício Margarida, em sua transfiguração de moradia para prisão.
– A doença, não posso perder o fio, ainda mais agora, presa em L’estanque. Foi de tanto observar as rochas, eu sei, está claríssimo. Ou talvez não, talvez tenha sido o Rivotril. Tomei muito ontem à noite? Além da conta?
– Preciso sair agora desse sofá em que de novo me ancorei de vestido vermelho para me certificar sobre as gotas. Teria tomado mais do que o necessário para uma boa noite de sono?
– Desde menina pedindo, implorando uma parada. Para ficar ali entre uma sinfonia de tosses e apenas ouvindo, sem julgamentos ou análises críticas, sem me preocupar com a excelência dos enredos e liberada por mim mesma de fazer anotações. Como se a enfermidade me libertasse finalmente das exigências que me esmagavam diariamente, o culto do aperfeiçoamento, como se houvesse desde o nascimento, um piano em cima da menina. Lá, nesse sanatório seria como no quadro. Rochas ainda não geometrizadas radicalmente, rochas que são a transição para o pintor, um anúncio que ele ainda não sabia do quê. Estou aqui, sou Glória, vinte e nove anos e presa, encarcerada dentro de uma quitchinete, cheia de palavras na boca, mas muda. Uma contusão dentária, posso dizer assim? Contusão? Parada e muda cheia de palavras na boca e muda, esperando no sofá esfarelado da sala, um sofá que se desintegra parcialmente e eu em cima dele vestido vermelho, tentando uma organização interior. E exterior também. Prefiro a exterior, olho agora meu rosto no reflexo do vidro da janela, a noite toda iluminada e percebo aliviada a ausência de contração na face. Estou encarcerada e sóbria. Nova. Reinaugurada dentro dessa repetição. Perpetrando um gesto. Apesar de ser apenas o anúncio de um gesto. Preciso aceitar. Preciso aceitar. Preciso aceitar. O correio. Recebo constantemente várias cartas de um remetente desconhecido. Seria eu mesma? E tem também as cartas antigas, essas devidamente registradas, categoricamente registradas. E escrevo também, no momento escrevo para um desconhecido, alguém que disse que vinha e não veio. Se houvesse esse alguém, existiria A História, mas como já disse, não podemos conversar com as paredes.
– Glória fica assim, imóvel e olho fixo no relógio da sala, aquele que parou de dar cordas, que idéia de jerico essa de ter calado os ponteiros, agora mesmo poderia conferir o horário e isso seria tão consolador, visto que está visivelmente abatida diante desse silêncio.
– Mas não é imobilidade, Glória. O dia passa sim, ele não está parado. Só que retorna. E fingindo naturalidade todos na rua sabem e estão fingindo naturalidade. Ou seria alguma espécie de Conspiração só autorizada aos cargos de diretoria? E os outros, reles mortais, estarão anestesiados? Outro dia Glória viu no jornal uma entrevista com um professor de psicologia e ele dizia que as indústrias farmacêuticas não tinham interesse em descobrir a cura do câncer porque mercadológicamente falando, isso não interessa, e dizia isso assim num tom algo muito natural e o entrevistador também reagia muito tranquilo, como se aquilo já fosse uma verdade compreendida e aceita.
– Não adiantava descer agora e achar alguém para lhe responder algumas perguntinhas, até porque se isso fosse verdade, a maioria das pessoas não saberia de nada ou se soubessem, esconderiam para não correrem risco de vida.
– Glória pegou a bolsa ao seu lado no sofá e ficou ali, procurando. O que? Não sabia, quer dizer, sabia ao pegar a bolsa, mas o gesto a distraíra, pode-se mesmo dizer que a corrompera, sim o gesto a corrompera, pois havia algumas horas em que não movia um músculo. Anoitecera. Ela estava a procura de um papel. É isso. Um papel com nomes. Mas nomes de quem? Continuou procurando dentro da bolsa.
– Isso só pode ser efeito da noite mal dormida e também não devia ter tomado tanto café de manhã.
– Sim, Glória tomou duas enormes xícaras de café para poder sobreviver ao dia e aos fogos de artifícios e depois sentou-se no sofá destruído pelo gato para não retornar mais dali. E agora essas conjecturas abomináveis e irracionais repercutiam em seu cérebro ainda em construção, todo o seu desenho de corpo e rosto, quadriculado. “A gente nunca chega no que se é realmente.”
Foi uma escavação. Tudo isso, o dia retornado, foi consequência de uma laboriosa escavação. Ela queria o mistério da Esfinge e acabou sendo sugada por ela. Deveria ter adivinhado, não iria ser fácil. Era justo. Uma retaliação divina. Arrumou o vestido, ajeitou os cabelos, passando os dedos entre eles e deu um tapinha de leve na cara. Precisava acordar desse sonho. Era apenas um esgotamento nervoso, sim devia ser isso e não o Rivotril. Efeito ainda da extração dentária, provavelmente. Efeito de tantas anestesias nos nove dentes (faltavam oito) do recente tratamento. E também tinha a sinusite crônica, a insônia e a pneumonia recém-curada. Essas noites mal dormidas, essa peça que não ata nem desata em sua cabeça, durante a vida inteira circulando de lá pra cá, daqui pra lá como uma batata no meio de tantas outras e dentro de um saco, rolando de acordo com a demanda. E agora deixava de ser batata. Depois da extração deixou a antiga identidade para se converter em ... Rochas? Rochas em L’Estanque. Um quadro. O anúncio de uma alvorada, dali surgiria o Impressionismo, o Cubismo e todos os Ismos. Glória estava nua no quintal da própria casa a procurar a saída ou a casa, antecipando nas rochas o que só mais tarde se concretizaria. Esperaria até o fim da vida a alvorada proclamar-se? Será que vivemos sempre assim a construir e destruir alvoradas? Esperando sentados por elas? E quando não estamos sentados, estamos trabalhando e fazendo e construindo casas, somando novos tijolos aos antigos e os dias interpondo-se uns sobre os outros como os recém-nascidos que se amontoam nas maternidades? Sim, Glória tomara algumas gotas de Rivotril e mais tarde, depois de revirar-se na cama por algumas horas, decidiu tomar mais uma dose para finalmente relaxar do dia exaustivo e mergulhar no sono. Quantas gotas teria tomado a mais?
Com muito esforço, tentou levantar-se do sofá. Não conseguia. O fato desse sofá estar todo esfarelado, faz com que o indivíduo que ali senta, afunde cada vez mais pra baixo e sem conseguir retornar. Glória seria tragada por um sofá? Era esse seu fim? Consertou com algumas caretas as feições do rosto que se estilhaçavam, não conseguindo mais manter o auto-controle da expressão inicial, derramando os cacos pelo chão da sala. Ajeitou esse rosto como se fosse o próprio Doutor Ignácio da Conceição - era esse o nome do cirurgião plástico de Dona Edith José Fernandes Coelho, não era?
A campainha tocou. Agora era obrigada a levantar-se rapidamente. Não. Poderia ser uma ilusão sonora. E novo toque, agora mais forte. Ela precisava reunir todas as forças que tinha para sair desse sofá. Jeremias ignorava esse esforço. A campainha insistia. Quem será? Com um único fôlego reuniu todas as forças que possuía para sair do sofá e quando conseguia um equilibrio para erguer-se, tombou de vez ao início de tudo. Então começaram a bater na porta. E ao baterem com mais força, a porta se abriu. Glória lembrou que esquecera de trancá-la. Ouviu um murmúrio de homem.
“Quem é?”
“Vim ver o chuveiro.”
Era Doda - O Gago.

sábado, 18 de abril de 2009

Dona Edith José Fernades Coelho

Injustamente, que sei eu. Ou justamente agora o soluço recomeçou. Pontual, todo sábado quinze pras sete da noite ele vêm lhe visitar.
Glória senta-se de pernas cruzadas e categórica sobre o sofá esmaecido, que se esfarela aos poucos, esmagado pela assiduidade calculada, a rotina inalterável de um gato, sede onde Jeremias afia as garras, pronto para esmiuçar a noite. A mulher em cima do sofá, ela própria tão contrária a esse aspecto vacilante, senta-se finalmente muito organizada, tentando uma reconciliação consigo mesma, depois da manhã caótica, uma manhã de sábado que faliu completamente e levou consigo o início da tarde, agora restando pouquíssimo tempo para reconstruir o dia, o único dia da semana em que poderia ficar assim, boca meio aberta a olhar paredes e não ter idéia nenhuma sobre absolutamente nada ou qualquer obrigação doméstica. Isso de não haver nada com que se preocupar e toda a potência de um dia inteiro pela frente tão ensolarado e possível, era por demais irritante, qualquer desvio seria fatal e ela já sentia-se próxima da explosão. Ajeita a saia sobre os joelhos, quer ser feminina e ordeira, ou nem isso, ao menos justicável perante a existência. Se soubesse, se tivesse aprendido naquela época, faria tricô, algo que a colocaria numa dimensão mais serena e ao mesmo tempo estaria ocupada, absorvida em uma tarefa, como alguém que senta e espera sem aflições o dia passar em branco. Glória não deixa o dia passar em branco, nunca. Nem sabe o que é isso, mesmo convalescente, ela trabalha. Esse recente intervalo, tão obrigatoriamente instaurado – e só por isso possível – pelo buraco do dente e a dor da extração – só aconteceu por um feliz acaso e que mesmo assim, não foi total, pois ela é desde criança ensinada a não parar. Direita-sentido-volver. Muitas vezes no escuro da noite, Glória desejou secretamente a doença, coisa boba, uma febre ou apendicite e que poderia lhe reservar um tempo neutro, fora da rotina, e ainda por cima liberada da culpa pela licença médica. Não seria vagabundagem ou fuga, seria apenas uma distenção no tempo, uma necessária suspensão, momento curral ansiado por longos anos. Poderia ficar enfim meio tola, olhando para a parede e fazendo contas imaginárias. Gostaria de ter esse tempo para por exemplo, estudar astronomia, saber o nome de cada estrela da Via-láctea, a sequência dos planetas, reorganizar o céu em sua cabeça. Mas sempre quando a gripe ou a febre aparecia era por um tempo tão escasso e ficava tão ocupada com a doença e a culpa pela doença e a pressa para os sintomas desaparecerem logo, pelo amor de Deus, ninguém pode ficar doente nessa casa, quem procura acha, quem se entrega a doença acaba para todo o sempre enfermo, que tudo isso extinguia por completo qualquer ameaça de apaziguamento. Assim, nunca visitou seus escombros, tamanha a pressa em afastar-se do perigo, a areia movediça que a sugaria para toda a Eternidade. O medo de enfrentar o silêncio e de repente Ser o silêncio, entregar-se a ele, volupizar-se dentro dele. Não, viam nisso algo de proibido, quase criminoso. Sempre ocupada, era uma criança cheia de deveres e obrigações, vivendo sob um velado pacto familiar que exigia a excelência em tudo. Seus pais num entra-e-sai desenfreado, mãe viajando para fazer as matérias jornalísticas, pai trancando no escritório. Ela no círculo constante das atividades diárias ininterruptas, enlaçada pelo rigor minucioso da agenda, preparação para um futuro ainda distante.
E agora o sábado. Ela se encolhia toda ao primeiro prenúncio do raio solar que não pedia licença e entrava, meio folgado, meio esnobe, se derramando sobre a janela e tão pequena ela estava diante desse raio, que se tornara uma formiguinha, uma formiga com remelas e sinusite, uma formiga baixa, vulgar quase, diante do raio implacável do sábado majestoso. Sim, amanhecia já serva, já submissa e o resto do dia era tentar sobreviver a essa tirania invisível.
Um medo enorme desse sábado.
Criança independente que era, arrumava-se sozinha, estudava piano sem ninguém precisar pedir, lia, estudava as matérias escolares, tudo com a exigência da maestria. Com oito anos já fazia parte das audições musicais dos adultos, a única criança incluída no repertório e também foi a primeira a andar de ônibus sozinha para a escola. O cobrador intrigado quase foi grosso: “Onde está sua mãe, menina?” Tão miudinha era a garota. E na rua, todos comentavam e a davam como exemplo: “Viu, Sofia? Glória já faz tudo sozinha sem precisar da ajuda de ninguém.” Deus sabe a que custo. De noite, esmagada em pesadelos, tinha calafrios diante da casa vazia. Os pais sempre ausentes a liberaram da obrigação de ter horários regrados pra comer ou dormir. E a menina já não dormia ou comia. Glória não sabia onde segurar-se diante de tanta independência. Poderia desde já sair, ir à bailecos e voltar a hora que quisesse, ninguém interferia. Na adolescência viajou para Campos do Jordão e ficou lá seis meses. Ninguém questionou. A única coisa era que fosse exemplar nas atividades exercidas - e ela era. O resto, não existia. Tamanha independência originou um medo enorme, de tudo. Até hoje não sabe o que fazer da liberdade. A liberdade é o abismo que espreita o mínimo gesto, já perdido pelo medo de se perpetuar no espaço.
O sábado. Boca desarmada, sem tampouco tentar um sorriso, não havia platéia. Ela tentava simplesmente uma organização interior. E clareou-se toda, ao confirmar através do vidro da janela, agora iluminado pela noite, a ausência de contração na face. Abriu a vidraça e espiou a vista. Estava mais escuro do que a própria noite exigia. Uma noite tão fechada como essa requeria confissões não aprumadas e sim certo improviso de encadeamentos e Glória ainda tentava se encaixar e assumir um ar reservado, com frequência, com muita frequência, um ar com princípio meio e fim, uma história ao menos, a mesma cadência dos dias da semana. Por que o sábado bagunçava essas pernas cruzadas que tentavam em vão apoiar-se no sofá para somente permanecer? Queria só permanecer diante de si mesma como alguém conhecida, amigável e não uma vizinha estranha de si-mesma, esvaziada de sentidos e mal esboçada. Temia a sequência dessa noite, insegura que estava dentro do vestido vermelho que colocara apenas como trêmula garantia e que não disfarçava o esfarelamento interior. Não somente o sofá se desfazia, muito pior era a desintegração da mulher por trás do sofá. Enquanto isso, o silêncio soturno de Jeremias fazia sombras pela casa. A vela acesa para o anjo da guarda ainda reluzia no quarto. A sala roncava, desdenhando dessa presença tão desigual, quase quadriculada. Se fosse uma pintura Glória integraria a fase cubista dos pintores, ou antes até, aquela em que Cézanne ainda anunciava o caminho que seguiria mais tarde. Glória era fisicamente esse antes, um anúncio hesitante e nada concreto, a transição entre o antigo e o novo. Um conjunto repleto de linhas diagonais e verticais que se cruzam e se misturam numa disposição aparentemente arbitrária. Um daqueles rochedos de L’Estanque que mal podemos vislumbrar como rochedos. Entre eles, aos sussurros, trocando ofensas e injúrias, passam algumas nuvens desavisadas e eles adivinham os segredos das incrédulas nuvenzinhas, tão melindrosas na sua diplomacia branca. Os rochedos continuam a explanação, desafiam-se, sem atreverem-se no entanto a perpetuar qualquer exaltação. O pintor ainda não geometrizou o espaço em toda a sua radicalidade. São rochedos íntimos, incolores, cor de casa antiga embaçada pela reconstituição esparsa. Como o cheiro de erva doce presa no fundo da xícara e trazido pela brisa distraída, que evoca uma tarde com os amigos, uma tarde gratuita, presa por não sei que capricho da memória e já se desfazendo pelo tempo e pouco uso, uma lembrança não lustrada, pouco alimentada pelo exercício meditativo da recriação. Mais reluzente é o peso de um olhar durante ou depois de uma confidência boa, declaração desajeitada e mesmo feita sem querer, saída assim como que por distração e por isso mesmo tão verdadeira, tão incontestavelmente isenta de dúvidas. Segredada ali no último momento, aquele ato-falho delicioso, imensamente esperado, será relembrado e saboreado até o último bagaço da fruta, pelo resto dos anos que virão.
E o soluço de Glória encontraria uma via de acesso dentro desse rochedo.
Outro feriado, exclama Glória para a outra rocha. Nenhuma resposta. Espera um pouco, talvez essa outra pedra esteja atrasada, aguça então os ouvidos com alegre esperança em busca da possível interlocutora e olha para Jeremias na ansiedade ilógica pelo segundo rochedo. Seria essa A História se houvesse um outro rochedo para complementar. Mas após longo silêncio, voltemos ao sábado de uma pedra escassa de pedregulhos.
Decerto que conversara bastante hoje, descontraíra-se e até dera algumas risadas com Dona Edith.
Dona Edith José Fernandes - com s ou com z? Provavelmente com z - Coelho. Noventa e dois anos. Toda de vinho. Um poluver vinho em cima de uma blusa de renda inglesa, calça preta, brincos de pedra tom vermelho-rubi ornados por um dourado vivo. Devia ser de ouro. Colar que fazia conjunto com os brincos e uns óculos maravilhosos com armação prateada.
“Preciso engordar.” Queixava-se ela, frente-a frente à carne seca e as lingüiças que esfriavam diante de sua inapetência. Meu marido era muito ciumento, repetia vaidosa, também ele tinha motivos para ser ciumento. Agora não, agora não teria motivos. Você olhando pra mim assim, não diz, mas eu fui muito bonita durante muito tempo, depois do erro médico é que definhei. Depois da cirurgia do coração, a pele grudou no osso e enrugou tudo. Enrugou tudo! Agora estou tentando engordar mas não consigo, meu cirurgião plástico, é ótimo meu cirurgião plástico, fez maravilhas comigo. Vou te mostrar as fotos. Antes da cirurgia - meu marido ainda estava vivo - ele pediu pra secretária: “Trás as fotos de Dona Edith”. E eu vi o antes e o depois, ele disse assim: “A senhora vai voltar a ficar com esse rosto, exatamente assim.” Ele fez um trabalho extraordinário. Me deixou igualzinha. Igual ao que eu era antes. D. Edith suspira e afunda sem forças e nenhum ânimo o garfo na carne seca e com muito vagar trás o garfo até a boca, um longo caminho, uma via crucis que termina com metade da carne caída sobre a cadeira e a outra metade milagrosamente alcançando o interior da boca. Glória pensou no milagre da vida, na condição heróica do espermatozóide que fecunda o óvulo. Uma digressão besta no meio do almoço de sábado do prosaico restaurante à quilo. Vó Landinha, era o nome do restaurante. Enquanto mastigava rançosamente a carne que se transformava pouco a pouco em uma espécie de inimigo domesticado, ela continuava a reconstituição mental da plástica. Conforme os dentes tentavam vencer a guerra, já quase esquecida estava Dona Edith daquele pedaço de carne que circulava perdido dentro da boca e odiado pelo maxilar cansado. Com a impotência dos que comem por obrigação, o inimigo ia vagarosamente sendo vencido, através de muita pertinácia e determinação. Com uma golada de suco de uva, a massa pastosa conseguia enfim descer e tomar seu rumo até o estômago, uma peregrinação solitária. A garganta seca, o coração vazio e um amor imenso pelos dedos turvos que orientavam o martirizante trajeto do prato até a boca. Dona Edith era dona de mãos compridas e alvas, dedos finos, unhas bem desenhadas e agora ornadas pelo esmalte vermelho. Toda ela combinava. Glória invejou essa combinação plástica. Ela que não combinava nada consigo mesma, desintegrada que estava por fora e por dentro, uma rocha no meio de tantos rochedos estéreis. Dona Edith era um possível rochedo habitado em sua ilha, que brilhava, um rochedo úmido pela garoa que não molhava, só umedecia as pedras que se expunham mais pra fora dos arbustos. Dona Edith José reluzia entre os outros pedregulhos com original saciedade e angariava para si olhares de simpatia e desprezo. Quando reclamou da carne – “Muita seca, ouviu minha filha? Avisa pra elas, está dura, difícil de engolir.” E disse isso no tom mais polido e ameno, educadíssima, comentando a brutalidade da carne. A garçonete Miriam sorriu e olhou para Glória numa piscadela cúmplice em que logo emendou: “Ah, tá bom Dona Edith, vou dizer sim’. Glória não retribuiu a piscadela e claro que sabia que Miriam não diria nada. Por que aquele sorriso de deboche e a piscadinha marota? Pensava obviamente que se tratava de uma velha quase senil e que do alto dos seus noventa anos não deveria reclamar de nada e sim agradecer misericordiosa e de joelhos à Providência Divina por ainda estar viva. Quem tem noventa anos não exige, não se exalta, não censura. É na verdade o próprio censurado, quase um criminoso por ter sobrevivido por tanto tempo e ainda por cima dando-se ao luxo de comer carnes-secas nos restaurantes à quilo. Dona Edith José Fernandes Coelho continuou, sentindo de forma obscura, meio íntima, essa piscadela pelas costas, algo que não se vê, mas pressente-se, apenas adivinhando essa sutil frequência entre os seres, os sinais velados e tão presentes, quase nos esmagando dentro de seu código silencioso. Passando por cima dessa invisível zombaria da velhice, ela continuou como quem continua mesmo, pois não há como parar diante da carne-seca e dura. Tremia na sua tentaiva de avançar com o garfo, dizia que depois da cirurgia passou a tremer, erro médico, antes não era assim, tão osso e pele, vagarosa e trêmula. Lembrava ainda maravilhada a cirurgia bem-sucedida, a carne do rosto - diferente da outra, tão fria, tão distante, a interrogando do prato - a carne do rosto adaptava-se novamente a ela, tão amada essa pele que voltava para seu devido lugar. O tempo rigoroso em sua pintura não desleixava de nenhum traço de Dona Edith com ou sem plástica, não havia remendo ou remédio, impondo na tela os anos vividos pelo encadeamento dos dias, dos anos, laborioso em cada detalhe e com sua implacável impressão digital deixava na senhora miúda seu registro, um a um. O marido e suas reclamações, seu amor por ele e depois sua doença e morte, os trinta anos de magistério e depois como professora particular de português, as noites mal dormidas e embaladas pelos livros de Zibia Gasparetto e Danielle Still, o filho que nunca a visitava e que casara-se com uma mulher loura oxigenada que um dia respondeu assim a sua pergunta: “Que faculdade você fez minha filha? E a outra, armada dentro de seu rancor mais profundo e ainda mais seca do que a carne: “A faculdade da vida.” Tudo isso e todo o resto, o que escondia e ainda as memórias de infância e juventude, a mãe muito exigente e ocupada, comandando-a através de uma educação rigorosa e impecável, o pai muito trabalhador e do alto de sua pose de homem digno e respeitável, tudo desabrochava nesse rosto, escancarando alegrias e tristezas, o aspecto que abominamos por ser tão revelador, ali, no rosto de Dona Edith: todas as páginas amarelecidas e já esfareladas pelo uso contínuo, perpetrando em cada gesto seu, um esgar de sombra, um anúncio de noite, um sentido maior para qualquer palavra solta. Ela ainda falava de seu rosto reformado, quando Glória sentiu o peso do rochedo que era. Aquele não geometrizado, que no final das contas, era o lhe valia. E distraída, olhando aquela lingüiça que sobrava no prato de Dona Edith, pensava no dia que tinha pela frente, todo ele uma glória como era essa carne no prato esfriando, todo ele um martírio como era essa lingüiça e seu caminho remoto entre o prato e o estômago. Pensou que seus dias passavam-se como essa lingüiça rejeitada, pois que um rochedo não geometrizado precisava ao menos de um mísero olhar do pintor, ou o escândalo da forma. Mais não quis pensar, o sábado estava aí prestes a explodir e a espiava de fora, abrindo suas imensas arcadas cheias de dentes.
Foi quando Dona Edith falou a meia voz, fazendo-a acordar de seu sonho: “Li uma peça de teatro e me lembrei muito de você. Era sobre uma menina que ficava sempre sozinha porque os pais estavam muito ocupados. E no final ela dizia: “Imagina como deve ser a vida lá fora, pessoas que andam sempre muito ocupadas e nem se olham.”
E a carne de seu rosto pareceu a Glória ainda mais viva e mais fatal.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A palavra que falta

Novos fogos de artifício. Outro jogo de futebol e hoje ainda é quarta-feira. Na verdade os dias não passam. Nós é que circulamos em volta deles.
Por puro medo de ir, deixei que os dias me seguissem, sem lembrar que era eu quem circulava esbaforida em volta de mim mesma, como se houvesse alguma glória em atingir esse ponto do outro lado.
Procurei em torno, abri gavetas e ainda as abro. E me parece estranho que sigamos os dias sem nenhuma manifestação de queda.
A queda. Se os jogos de futebol e as arquibancadas silenciassem e os professores reagissem contra as velhas fórmulas e as pessoas largassem seus carros no meio do caminho, provavelmente tudo isso configuraria em alguma espécie de queda e poderíamos, talvez, enxergar o contorno vago do fim. Escuto o grito sobrenatural da multidão, sobrenatural porque tão distante e ao mesmo tempo imperiosamente audível. Compacta em seu círculo vicioso de existir. Quando os homens se juntam e evocam o mesmo grito, sou sugada imediatamente para um redemoinho de lembranças e sensações.
Mas tranquei a gaveta da memória e joguei a chave fora, para cair no terror do presente. Estou aqui, nessa cidade que não é a minha e paralisada internamente por um buraco de uma extração dentária.
Uma palavra que tem me intrigado muito ultimamente: raiz. A multidão, está eufórica, fogos de artifícios explodem por todos os lados e o mistério da palavra raiz abocanha o momento com maestria sombria. Ainda mais sombria sobre a casa e o gato acordados. A multidão continua, ela é o tijolo.
Raiz versus multidão. Assim, juntando esses dois cacos poderei formar um espelho inteiro? Comecei a escrever aqui por ansiar algum tipo de comunicação, a esperança utópica do diálogo. Não, não foi bem isso. O gatilho foi outro, eu precisava chegar em um ponto. O esboço que seja de um ponto. Alguma espécie de xis da questão, objetivar esse ponto, me despedir das curvas para finalmente adotar a linha reta. Preciso de algo que não seja vago. É isso. Que não seja o meu rosto turvo e envelhecendo condenado ao vidro embaçado.
E não vejo nada além da neblina. Mesmo o trabalho doméstico, a roupa estirada no varal, minha privada sem a tampa. Nada me parece sólido, tangível. Depois da extração, o dia e a noite adquiriram traços tão concretos de realidade, que ainda não percebo o desenho do todo. Então os detalhes sofrem uma ruptura e se deslocam das circuntâncias para ganharem uma dimensão nova. Por exemplo, as minhas botas. Vejo-as agora, estão aqui pousadas no chão de tacos e me parecem absolutamente distantes de mim. Eram minhas e deixaram, nesse instante de o ser. Se desligaram. Parecem inclusive como sendo de uma outra pessoa. Não. Na realidade, não parecem com botas que sejam de outra pessoa. Não. São apenas duas irmãs, sozinhas e independentes e sem nenhuma utilidade fora a de simplesmente existirem. Ufa! Que delícia deve ser nascer bota! Olhando-as, me parecem tão autônomas, quase cruéis dentro dessa autonomia toda.
Depois do dente extraído parei de dar cordas no relógio da sala. É preciso trabalhar, retocar a máscara e buscar Glória que tira uma sesta, mas o relógio já não existe mais. Como continuar sem o conselho de seus ponteiros? Glória dorme.
É preciso vestir-me e buscar o material de limpeza no supermercado, comprar comida pro gato e limpar a areia dele. É ainda preciso comprar uma nova tampa para a privada, desemtupir o ralo e aprender francês. Enquanto isso a palavra raiz faz acrobacias em meus pensamentos e o dente parou de doer. Preciso de pensamentos novos para pensar.
Oh, se ele doesse, se ao menos voltasse aquele incômodo latejante e ininterrupto, eu poderia até quem sabe juntar as duas coisas e chegar em algum xis de alguma questão.
Tenho vinte e nove anos e ainda não consegui chegar em nenhum xis de questão alguma. Aluguei Glória numa loja de conveniências e ainda não conseguimos fazer a junção de nossos corpos.
É preciso viver muito ainda, longos anos para dizer no papel tudo o que desejo viver.

O que me amedronta é não ter todo esse tempo - pois não tenho - para esperar, além de uma febre que não me deixa, tem Glória, que na falta de uma máscara tem me acompanhado.
Em algum momento de minha vida, algo aconteceu. Algo como uma paixão, um amor verdadeiro, coisas assim que gostaria de contar. Um dia. Depois vim para essa cidade cinza e começou a minha via crucis por um rosto.
Desde pequena sou falha nisso, não me habituei a nenhuma máscara. Não que não as use. Uso e uso muito, Glória é um exemplo, mas elas não grudam direito e caem. Desde pequena sofro dessa enfermidade. Estou em carne viva.
ÀS vezes compro roupas que tentam substituir o rosto, mas nunca são suficientes.
Depois que extraí o dente, uma revolução se operou em mim, como se a máscara fosse o dente que partira. E hoje ainda não sei o que fazer dessa descoberta tão recente.
Prefiro ouvir os gritos da multidão, daqui do meu vigésimo andar. E com muita paciência, resistir sem medo. Não. Resistir com medo. Não. Não resistir. Me deixar levar pelos gritos da multidão. Ser a multidão. Dentro de mim, sem arquibancadas para me amparar. Por um momento abro os braços e atinjo o grito conjunto. É indescritível não estar só. Ser um geral, um hino, uma vibração sonora. Sou agora uma vibração sonora e onisciente. Dura pouco. O êxtase dura pouco. Minhas botas autônomas mandam recados para meus olhos e a língua que encosta na raiz do dente, reivindica uma explicação. Não tenho nenhuma para dar. A não ser a de que precisava me jogar agora sobre o Estádio do Palmeiras e esquecer que preciso fazer algo. Preciso descobrir o essencial e não apenas ir seguindo, o círculo vicioso atrás do próprio rabo, preciso dar um basta nisso, alguém tem que dar, que seja Glória. Não quero apenas seguir o círculo como quem vai e sem medo. Não. É o medo que me aponta o caminho, é ele o mais fiel companheiro do escuro da noite, quando não resta mais nada o que fazer ou ninguém para auxiliar.
Preciso ir sozinha, sem as botas e sozinha. E deixar crescer a raiz que vai absorver um dente artificial. E então poderei ser esse dente artificial, frouxo, desqualificado, um mero substituto. Um objeto postiço e tão inferior. Serei esse dente inferior, que nem dente é, é um pseudo-dente. Será brevemente uma peça de aço. Invencível peça de aço. E nesse dia, as palavras não chegarão mais até mim. E nem eu precisarei ir até elas. Serei o próprio intervalo. E esse intervalo desaguará em queda e a queda desaguará em silêncio duro de multidão e a multidão se dissolverá em cinzas e essas cinzas cairão do último andar sobre o mar e a nossa queda será a própria glória. E um fio, reconectado em mim e na substância infernal que me guia, me alçará até a palavra inicial, ao xis da questão, a palavra que perdi quando deixei de amar. E só essa palavra existirá, como esse único dente tão inferior e mestiço e eu finalmente deixarei de ser eu mesma para ser um país e como um peixe cego tatearei a porta por onde entrei nessa história para dizer a única palavra que eu precisava dizer nessa única vida. E que me faz escrever trezentas páginas só para achá-la. Só para espiá-la. Hoje, sou só raiz. E a raiz me olha, transida de dúvidas. E eu sou a mais pura dúvida dentária. Que ninguém quer ouvir.
E mesmo assim, permaneço sentada, aqui no meu banquinho, esperando.
A Glória.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Cora

Boca mole. Pedra dura. Glória sai do dentista surpreendida mais uma vez. Sim, continuo a falar sobre obturações. Sim, só possuo esse assunto. Sim, essa boca mole me assombra violentamente. Sim, talvez crie um romance sobre a dor de dente. Sim, serão trezentas páginas de extração dentária e ainda será pouco, terá um segundo volume, ou melhor, será uma trilogia.
1)o protagonista vivencia a ida ao dentista, apresentamos sua vida antes, com todos os dentes ativos e perfilados, convivendo harmoniosos, até que a dor-de-dente começa a incomodá-lo terrivelmente.
2) Matheus - João ou Paulo, deve ser um nome Bíblico - Paulo vai ao dentista e descobre o dente condenado. Agora veremos sua preparação para o sacrifício dentário, todas as suas reflexões antes e depois da operação. A influência de amigos e familiares, alguns amigos se distanciam, a namorada foge com o cachorro Getúlio. A sua transfiguração começa, como a Transfiguração de Cristo.
3) A cirurgia é bem sucedida e agora veremos o personagem pela primeira vez, sem o dente. De súbito, logo após a extração, ele redescobre a cidade como um banguela que circula e não como um homo sapiens totalmente equilibrado dentro da cadeia alimentar. De caçador, ele vira caça. Iluminado pela visão de um mundo que não percebia - escondido que estava, atrás dessa arcada dentária inacessível em sua perfeição - Paulo se redescobre integrado à cidade e passa a conviver e redescobrir um mundo que ignorava do alto de sua ex-perfeição maxilar. Falhado, está preso por uma raiz. Violado, ele vivencia em cada detalhe, uma verdade de ouro.
Será assim uma espécie de "Divina Comédia" com seu inferno, purgatório e paraíso, não exatamente nessa ordem. Sim, a enfermidade é a única prece possível hoje. Não, não consigo descobrir em nenhum outro assunto, algo de mais relevante do que a cárie mal curada. O buraco é o coelho que sai de dentro da cartola.
A camada de ozônio é capa de todos os periódicos. Tem uma cobertura bem abrangente na guerra de assuntos sobre a banca de jornais. Hoje, descobrimos - eu e Glória - uma solução. É só enterrar carbonos e transformar o lixo das plantações em carvão. Por que eles não fazem isso? Na sala de espera, Glória via o noticiário e refletia sobre as palavras do ambientalista americano.
Depois de muita injeção, motorzinhos e moldes, Glória sentiu uma alegria infinita ao sair do consultório. A noite descia sobre a cidade e ela olhou para o céu. Obviamente, não viu nenhum céu e sim a ponta final dos edifícios, recheados por tantas janelas acesas. A boca mole e a altura dos prédios ganhavam uma aura sobrenatural contornados pelo azul-violeta de fim de tarde. Olhando para o alto, vivia uma espécie de vertigem ao encarar as pontas dos prédios que prenunciavam um início de azul e só a possibilidade desse início, de um infinito logo ali, do outro lado da escuridão, já a desnorteava completamente. O rosto anestesiado intensificava-se junto da chegada da noite. Isso tudo trouxe para Glória uma espécie de esperança engraçada. O fato de estar imobilizada nessa semi-paralisia facial - o dentista Vadim, o médico dos médicos dos implantes dentários, fez três dentes hoje, de uma só vez - e de não poder falar nada - ao enunciar uma palavra, como o adeus para o dentista, parecia que não era ela quem falava e sim um orangotango - tudo isso libertou Glória de qualquer ação vital. Até a mais banal mastigação teria de ser evitada. E olhando para o alto dos arranhas céus, ela decidiu que ao chegar em casa iniciaria a leitura de um romance. Mas qual? E essa conjectura, tão prozaica, tão frouxa, tão liberada de camadas de ozônio e preocupações domésticas, fê-la sentir de repente uma enorme alegria de viver. E de repente pensou em tudo o que lhe dava prazer e que não fazia: o capucchino da Cafeteria Adamastor, domingo de manhã e o cheiro de jornal, olhar para Jeremias durante horas e vê-lo carregar a borboleta orgulhoso até o quarto dos fundos, dormir com barulho de chuva, ir ao cinema num dia de semana e no meio da tarde, sebo do Largo da Glória, a Lapa do Rio e não a de São Paulo, a Barata Ribeiro de São Paulo e não a do Rio, comer Danoninho, rir sozinha das próprias gafes e chegar em casa e ver Jeremias na porta, sentado, esperando. Percebeu que o que a fazia feliz eram os acontecimentos da vida minúscula, o sotão da vida, o quarto de entulhos. E isso tudo recém-descoberto assim... por causa das benditas obturações: a boca mole, o início de um livro, a liberdade de poder escolher esse livro aleatoriamente, sem nenhum professor de grandes bigodes e grandes saberes palestrando listas de qualificação. Só isso já despertou em Glória uma sensação que não sentia há muito tempo: a potência da liberdade.
Que incrível essa boca mole, então! Graças a magia dessa boca paraplégica eu posso não pensar em nada importante, até porque se eu pensar, não vou ter a prontidão do fazer, do realizar. Um tijolo em cima do outro e eis uma casa. Que bom está sendo dormir ao relento! Um pouco de relento e de cigarras. Um pouco de viaduto e lagartixas. Um cheirinho de mijo aqui, um cheirinho de esgoto acolá e viramos a esquina nos sentindo vivos. Sem todos esses dentes para nos distrair! Sem tantas provisões. Um rosto imobilizado e eu não retorno ligações, nem passo no supermercado. Posso simplesmente chegar em casa e olhar o céu - da minha janela tenho acesso a uma nesga. Sempre odiei dentistas, não foi à toa que perdi um dente, mas hoje pressinto que o dentista é a salvação do mundo. E não do dente.
Ainda sinto a extração dentária, os pontos se foram com seu desenho de aranha negra, mas a sensação de manca, ficou. Falta alguma coisa nobre na minha carcaça agora. Quando a gente morre, sobram os ossos e a arcada. Os meus ossos possuirão para todo o sempre a extração dentária. Esse acontecimento é um troço que vou levar para a Eternidade.
Às vezes penso que Deus tem algo de Glória, investiga os acontecimentos do sotão e não Lhe interessa os crimes bárbaros. Ao chegar na porta do Céu, Deus perguntará: "Por que deixou apodrecer um dente, Glória?" E Glória em sua timidez incurável: "O pior não foi o dente, Senhor, foram as mentiras e omissões. E todos aqueles à quem virei as costas." Ao que Ele retrucará muito calmo: "Continuo sem entender. Por que foi perder justamente o molar? Um dente tão precioso, o primeiro da hierarquia dos dentes. Por que, Glória?" E ela cairá fatigada aos pés do Senhor, implorando o perdão. Sempre imagino que Deus tem a obsessão do pintor. Se nasce uma manca, é porque Ele quis assim, se existem grandes catástrofes, isso faz parte de Sua pintura, exatamente assim. E não gosta de intromissões humanas em Suas obras. Como um Leonardo Da Vinci ou um Michelangelo. E eis que deixei cair uma uva da taça de ouro.
Aqui embaixo, ninguém vê, ninguém sabe da existência desse buraco, só Glória. É o seu segredo. Só ela sente essa ausência eloqüente, alçando vôos em sua corrente sanguínea. Seu paladar mudou e até o olfato, já não mastiga do lado direito.
Sou definitivamente a Senhora Gauche. E entre mim e a ausência de dente, os milhões de brasileiros. Não me sinto mais tão só, uma mulher distante do mundo, não, hoje eu faço parte, sou mais uma entre as milhões de trabalhadoras desdentadas desse meu Brasil!
Meu país.
Falo isso de boca cheia.
De buracos.
Vou até torcer para algum time. Pronto, decidi. Chega de brigar com os fogos e os donos dos fogos e morteiros no domingo, chega de reclamar das torcidas escandalosas e pornográficas. Não. Estarei na arquibancada das Brasilândias, desse país recém-descoberto, se abrindo, se alargando com sua enorme arcada manca. Sou manca.
Hoje, andando no Centro da Cidade, em pleno metrô do Anhangabaú, me senti mais Mangue do que nunca. Bom Sucesso, Belford Roxo, Grajaú. Quase bati no peito, me insuflei toda, falei com os camelôs, dei um alô, eles responderam, eu faço parte, ora bolas, perdi um dente, eu tenho direito de andar familiarizada com o chão de pedrinhas sobre o Viaduto do Chá. Depois que extraí o dente, logo no dia seguinte, resolvi partir pro centro antes do trabalho. Era bem de manhãzinha, o céu ainda estava escuro e eu andava pra lá e pra cá em pleno comício de mim mesma. O orgulho brotava como hortaliças de um ex-quintal árido de glórias. Eu, sem o dente, era o próprio Jeremias depois de abocanhar a borboleta e saltar esfuziante até o quarto dos fundos. Nunca amei tanto o Viaduto do Chá. Queria me dar um banho de chuva, comprar Alfazema, ler a mão com a cigana Rosa, comprar uma camiseta do Corinthias... Não, aí não. Aí também já seria demais. Eu sou flamengo, sempre fui flamengo, só que o hino do Fluminense, cá entre nós, é muito melhor. Agora sem o dente é o momento de repensar. Pelo hino eu vestiria a camisa do Fluminense, só que justamente a melodia rubro-negra diz: "Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer." Não sei como resolver essa questão, mas preciso me entregar aos desvarios de uma torcida organizada, aos cuspes e xingamentos, às bandeiradas, aos choros de decepção. Quero fazer parte de um movimento nem que seja só para celebrar a minha entrada no clube dos banguelas.
E lá foi Glória, descer a escada rolante do Metrô Anhangabaú, empurrada pelo povo, mais brasileira do que nunca, mais trabalhadora do que jamais imaginou ser e ainda sem o seu dente principal, sem a eficiência imperiosa da mordida.
Feliz e realizada trabalhou o dia inteiro satisfeita, sorrindo por dentro, no fim de tarde ainda teria a cereja do bolo: iria ao dentista, consertar outro dente, ao todo são dezessete dentes negligenciados ao longo dos anos. Graças à meu Bom Jesus, muitas anestesias complementarão as recentes descobertas e criarão novas pausas dentro dos meus dias. E mais tarde, já de noite, de boca mole e vestido verde, saiu do consultório dentário como a mais realizada das mulheres e libertada de qualquer impulso de dever cívico. Ela poderia chegar em sua casa, parar em frente à estante e escolher o livro que mais a aprazesse. Um livro sem qualquer tijolo, sem qualquer cimento, um livro-buraco.
No telefone celular, viu a chamada não atendida, não poderia falar agora, não tinha boca pra isso, mas preocupada abriu sua caixa de e-mails receosa de ser algo urgente. Não era.
Lá estava o recado de Antônio, seu irmão que nunca escreveu.
No recado, um anexo.
Abriu e viu.
Cora.
Olhos azuis e sorriso de uma alegria sem medo, leve, recém-nascida.
A folha em branco na carne e na alma. Todos os domingos de manhã. Todos os cheiros frescos de café e jornal. A mãe, que tinha perfil de bailarina, segurava a filha no quintal da casa e um gatinho preto enrodilhava-se no canto da mesa. Bem vestida, a mãe tinha aquele rosto sem manchas, tão limpo e quase etéreo. A filha, Cora, também era o ser mais higienizado do mundo. A casa, os gatos e os vasos de plantas, completavam harmoniosamente o quadro, só faltava uma joaninha saltar da fotografia. Tudo em tons pastéis e jarros com plantas tão desabrochadas, espirrava da foto o rosa sobrenatural das flores. Plantadas em outro mundo: a rosa, a filha e a mãe. O pai era quem tirava as fotos e sua presença repousava entre os quatro cantos da casa. E havia entre eles a calma de um curral.
Glória teve vergonha do buraco. A extração doeu, como se arrancassem o seu molar agora e sem anestesia.
O orgulho rubro-negro converteu-se em desânimo e Jeremias não era mais, o gato da borboleta.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

I-dente-dade

Soluços interrompidos. No dia-a-dia agitado, Glória observa o intervalo que se inicia, não sem um certo temor.
Como se o domingo estivesse presente dentro de todos os outros dias.
Úteis.
Como se a segunda-feira ampliasse toda a potência da folha em branco.
Ou fosse a própria palavra engasgada. Aquela que queremos dizer e esquecemos no minuto seguinte.
Que só a proximidade da morte poderá libertar. O último olhar. Aquele onde veremos tudo o que evitamos durante a vida. Por puro medo. Por puro tédio.
A vaga é o dia útil. O trânsito, a poluição, o metrô lotado. Quem poderá retrucar com precisão que a vida útil não é um sonho? O sonho tateia o rosto do real por manter um contato indireto com a eternidade.
E aqui na segunda-feira apressada conquistamos com suor emblemático a máscara da imortalidade. E nos distanciamos iludidos do engasgo anunciado e contido, tão cheios de pastas e projetos gráficos, planilhas que contém o orçamento planetário.
Tesoureiros do tempo. Armada de guarda-chuva, remédios e apostilas, Glória desembarca na estação Paraíso. Agora uma recém-brasileira.
Jeremias salta do sonho, afundado na almofada amarela.
Pressente um ato. O barulho da chave e a porta sendo aberta. Não há nenhum entusiasmo em vê-lo, assim tão receptivo e atento. Ele finge não perceber essa distração. E nem se amola de um dia preceder o outro assim vagamente.
Glória move-se pelo apartamento em silêncio. Sem o futebol de domingo e com a praticidade de uma segunda-feira, ela é o tijolo.
Um tijolo por cima do outro e a casa está pronta.
A aritmética da existência, a lógica da construção. É preciso expandir pontes, criar novas estações de metrô, despoluir o rio Tietê, a guerra de ser a primeira cidade em qualidade de vida do mundo. Os engenheiros é que são felizes, pensa Glória, ao retirar o miojo da sacola plástica.
E o dente extraído? Onde entra ele nessa lógica da construção diária?
Ele não entra. É um desvio na rotina, o inesperado, uma inglória travestida de acontecimento.
Precisamos de um enredo, cochicha um anjo rouco e abatido.
Precisamos ter um começo meio e fim. Não exatamente nessa ordem.
E a não praticidade de uma perplexidade?
Um esquecimento, a distração, o olhar que se desvia da multidão e do relógio para as ruínas de um prédio.
Sem utilidade. Nada disso é útil.
E transitamos atônitos e frenéticos numa escala desmedida de dias que se interpõem misteriosamente uns sobre os outros, presos por arames farpados entre as folhinhas do calendário pregado na geladeira. Sem nada que nos conecte, sem um único fio. A não ser o do caminho até o trabalho. E depois, o do trabalho até em casa. Paradas estratégicas para pôr gasolina, exercitar o corpo e comer um sanduíche vegetariano, já que o mundo moderno insiste em nos domesticar. O objetivo é que tenhamos todos o mesmo corpo e o mesmo rosto. Assim, uma unidade perfeita e harmoniosa.
E a extração dentária?
Não tem começo meio ou fim essa extração. E o incidente vaga silencioso sobre a cidade que constrói um tijolo após o outro.
Glória está agora esmagada pelo prédio da direita na Avenida Paulista, que alçado até o infinito a olha como se visse uma formiga perdida das outras, carregada de folhas.
No ônibus, vários televisores nos magnetizam com as últimas notícias do dia e maxilares enérgicos movimentam-se tentando acompanhar o ritmo da música de seus i-pods ou celulares. Carregamos a trilha sonora que melhor nos convém para a inevitável convivência diária. E não escutamos o ronco da velha desdentada que dorme no banco frente, logo atrás do motorista, com suas duzentas sacolas plásticas e vazias. E não vemos sua boca aberta, todas aquelas obturações mal conduzidas. A baba escorre grossa e atravessa sob a catraca até o fim do ônibus. Não vemos e não ouvimos nada. Graças a Deus louvado seja o Senhor, amém.
Glória olha para os rostos inchados de cerveja e macarrão e tenta adivinhar o som que cada cara tem.
Do outro lado do ônibus, no banco solitário, uma menina compenetrada escreve compulsivamente num caderninho. Glória chega mais perto. Ela continua o movimento de deslizar o lápis sem interrupção do início ao fim da linha até encher as páginas. Carrega uma mochila e tem uma tatuagem colorida exposta num lugar do corpo um tanto inusitado. Na saboneteira? É isso? Sim, ela tem uma espécie de arco que vai da saboneteira até o peito. Arco? É um mistério essa tatuagem pra mim, pensa Glória já nas pontas dos pés, quase caindo sobre a menina para compreender melhor. Cabelo preso, um fio escorre negligentemente sobre os olhos castanhos, ela não se preocupa em ajeitar nada. Escreve. Continua. Será que dava pra trocar de papel, só um minutinho Deus? Não vai estragar as suas construções, nem seus tijolos fabricados e distribuídos dentro de tão alto padrão de qualidade. Se eu me transformar nessa menina só por alguns instantes e continuar o que ela está escrevendo, talvez descubra a peça que falta, talvez reconecte a minha existência a de um outro. E me sentir assim, tão possuídora de tatuagem, talvez me reabilite de certa gravidade. Quero também, que seja só por alguns instantes, deixar cair um fio solto sobre o olho esquerdo, sem me preocupar em consertar...
O ponto em que Glória vai descer está chegando, é uma pena, uma pena mesmo deixar esse retrato tão bonito e toda essa possibilidade de suave transcendência, e sair assim, tão mãos abanando, sem nenhuma pista do que seja o desenho, o texto ou eu mesma.
Um menino de barba entra no ônibus, o coração de Glória salta disparado, parece muito com Ele, o antigo namorado. O menino atravessa a catraca e agora coloca-se lado a lado com Glória, que precisa descer. Antes, observa o rosto do homem no reflexo da janela, não, não é Ele, seu semblante é de um saxofonista. Sim, ele é saxofonista e gosta de ler T. S. Elliot e os romances policiais de Raymond Chandler. Quando criança lia Asterix. Sua mãe toma Lexotan com uísque, era bailarina, mas sofreu uma fratura no joelho depois de um acidente de carro. O pai mora no interior, numa chácara, mas conseguiu se reabilitar do alcoolismo. Hoje cria galinhas. A menina é mais difícil dizer, ela não dá nenhuma pista e a tatuagem obscurece ainda mais sua gênese. Ela não tem história. Escritores não tem história. Tão bonito um quadro assim, eu entre a menina que escreve e possuidora de tatuagem e o saxofonista de barba, viciado em Chat Baker, menino que eu poderia beijar e me entregar sem medo. Quem sabe? O pai cria galinhas e a mãe é inofensiva, tão afogada em barbitúricos e nas fotos da mocidade. Como era linda! Virou uma bruxa de cabelos espetados e ruivos.
Glória desce. E todos vão embora para nunca mais retornar.
Nunca mais. E o dia precede o outro e os tijolos se formando e as construções crescendo, novas estações rodoviárias, novos clubes e aeroportos, pontes e toda uma tecnologia para facilitar e promover a caminhada, a ciência moderna desafiando os homens, inventando os clones, a revolução genética nos arremessando pra frente, sempre pra frente, sentido-direita-volver, a medicina tão aparelhada e entre nossos corpos que se esbarram, aqui e acolá, nenhum aceno, novos rostos se intercalam sobre os antigos e já nos esquecemos, mesmo com as pílulas, mesmo com as anfetaminas, gritamos nossos nomes sem encontrarmos o eco, e a fila anda, não alcanço mais seu pânico e ainda mais agora que se esqueceu como me abraçar, um braço aqui e outro ali e eis um abraço perfeitamente possível, você não está conseguindo, nem adianta gritar, sempre chegando e indo embora, as pessoas transitórias, depois te ligo, vamos combinar um almoço, os navios ancorando e partindo, novos embarques e desembarques, nenhum carinho ou promessa, nem um leve indício de continuidade, uma fadiga de encontro, mesmo que seja um leve toque com as pontas dos dedos nos cabelos que já começam a esbranquiçar e caem.
A impossível pausa, o papel em branco renegado, a presença do domingo em todos os dias.
Úteis. A falência dessa presença.
Entre mim e o fato, vários retratos se amontoam. E entre eles, nenhum começo meio ou fim que os religuem.
E eu nem me reconheço mais em tantos fios de cabelo, um chumaço inteiro entupindo o ralo do banheiro.
Uma construção de fios.
Que se vai.

domingo, 12 de abril de 2009

Miar, verbo que se pressente

Jeremias se prepara.
Da janela, ele observa o movimento dos gatos noturnos e festivos. Quer sair e ao mesmo tempo não pode.
Está compenetrado no assovio das coisas, naquele som ínfimo que precede o grande acontecimento, o prenúncio fatal, bote necessário. Os gatos também escondem seus segredos.
Há em sua vida a suspensão e o silêncio para uma pausa.
O Abacateiro cresce em silêncio, ao seu redor, resta a desconfiança.
Quando existe o silêncio e a pausa as pessoas logo pensam em estagnação.
Ou em desistência.
Dentro da escuta submissa também pode morar a ação disfarçada.
Que não se suspeita, nem o próprio ser que se move numa inércia programada.
Intuitivamente programada.
Jeremias sente no ar o sorriso interno e maligno de Glória.
Que arma tudo com a maior das veleidades. Toda meticulosa e de unhas vermelhas.
Pra que tudo dê certo.
Pra que ele prove o artefato de um lirismo.
Domingo denso e lírico,
Sobre o guarda-sol.
Jeremias espera com a integridade do gato.
Está dormindo e sonhando com a espera da espera que Glória prepara tão minuciosamente com mãos de Santa. E não de Fada.
Estica o blanquet de Peru pra ele, melíflua e orgulhosa, como se este fosse a hóstia consagrada.
Só falta passar o fraque de Jeremias. E escolher a gravata.
No andar de baixo, uma gata estrábica esconde-se no último andar do armário.
Nada embutido.
Ela porém, nada sabe e resiste perplexa ao movimento da casa sempre animada.
Jeremias, no andar de cima, ignora o plano traçado pela dona, ignora sem ignorar totalmente, farejando entre os passos de donzela, uma predisposição nova. Ele então ensaia sua entrada dentro da arapuca preparada. Gatos são médiuns.
E por que Líria não sabe?
Porque está morando atrás e por detrás do sonho e o estrabismo provoca uma intuspecção amolentadora.
Glória foi estrábica. E cresceu atônita dentro dessa visão perpendicular.
De uma colcha enrolada, por cima do cobertor xadrez e no último andar do armário de uma gaveta minúscula, saltam dois olhos oblíquos.
Lá de dentro, nem os médiuns dos médiuns captam os sinais.
Mas pressinto que ela já sente o cheiro de mudança.
Por isso enrodilha-se ainda mais gravemente sob o cobertor xadrez.
Jeremias na sua inviolável compreensão destemida e fastidiosa da vida, finge nem desconfiar de nada.
Dentro de sua descrença atônita e ausência de expectativas, mora um amante ardente e virtuoso. Seus bigodes trepidam involuntariamente diante da prova que se inicia.
Ainda sementes do pensamento de Glória.
Ele sabe que algo está traçado.
Entre os olhos abertos e atentos de Jeremias e os estrábicos e timidamente sensuais de Líria, um corredor e dois lances de escada, os separam.
Em cada porta um número que ameaça.
35 ou 43
Quem baterá na porta de quem?
35 gata
43 gato
E assim termina um verso
ou um espaço.
Entre a espera e o fato.

sábado, 11 de abril de 2009

Violência Comemorativa

O gato estava na janela. Mirava curioso a rolinha que se preparava para um vôo suicida, quando um dos fogos estourou bem na hora; do vôo e da mordida. Sem hesitação, o gato saltou da janela e correu com o rabo entre as patas, até o esconderijo mais seguro. Fui espiar sua aflição. Procurei-o embaixo da cama, não estava. Entre os lençóis, também não. E eis que o encontrei encolhido entre os vestidos, dentro do armário. Tremia. Seus olhos eram os de alguém que sofrera um estupro. Ele nem me encarava mais. Os olhos procuravam um ponto para retroceder. Para distrair-se dessa violência gratuita, que nem instintiva era. A violência da comemoração. Voltei à janela e gritei, também violentada: Vou chamar a polícia!
Mas foi em vão, o torcedor fanático, encerrado em sua obsessão, só via o seu time sobre o horizonte. A sua paisagem resumia-se numa euforia de gols, gramados e arquibancadas. E aquilo que via, não era o que via. Ele gritava o nome do time do coração e seria capaz de soltar um rojão em cima de uma criancinha, tão enamorado estava consigo mesmo e com o seu time. Entre os dois, não havia nada, nem ninguém.
Jeremias empedrou-se. Nem miava, nem rangia. Sentia ainda o barulho entorpecente da explosão. Estava surdo. Atirado de repente à violência dos homens, parecia-lhe que o melhor a fazer era simplesmente, retroceder ao início de tudo. O útero-armário. Dali não saiu e talvez não sairá jamais.
Invejei essa certeza objetiva. Uma aceitação que não era covardia, era um auto-respeito. Era sua manifestação de silêncio. De amor ao homem, até. O contrário do silêncio seria a arrogância das palavras, das comemorações frenéticas e os gritos que tentam interpretar o espanto; nossa inorgânica forma de convivência. Um atropelar-se amestrado e artificial.
Na minha impotência, repetia baixo, quase sem conseguir disfarçar os meus sons atropeladores, não queria que saltasse de mim, nenhum vestígio humano. Sussurrei, com uma cautela homicida: "Não fui eu, Jeremias. Juro que eu não fiz nada."
Perplexa, dentro da minha dúvida passiva, queria tirar-lhe qualquer suspeita de que aquele estrondo inverossímel poderia ter sido causado por mim ou por alguém que eu conhecesse. Ele continuava sozinho dentro do seu susto, não estava no momento de compartilhar ou entender nada. Isso seria outra violência, sugerida por mim, mãos tão limpas. O gato ainda sentia aquele zumbido invisível que sentimos após a grande explosão. Na sua imobilidade compreensível, me vi envergonhada por não compartilhar dessa franqueza implícita, natural. Concentrado na supremacia de existir, o gato estava como uma criança quando brinca. Ou um velho quando morre.
Senti-me cínica por transitar entre tantos ruídos, sem nenhuma estranheza. Seus olhos tão ativos normalmente, agora eram duas poças alargadas pelo susto.
Susto.
A única palavra que realmente existe. Que ainda mantém uma ligação com a vida.
Um papel em branco; susto.
Levantar e sentir uma dor nova, entre o fêmur e a coxa; susto.
Esticar a mão e não alcançar o alvo; um grave e implacável espanto.
Jeremias, retorna aos poucos de seu sonho, como se após a morte houvesse finalmente, a vida.
Ele sai aos poucos do armário. Estou aqui ao lado. Páro e observo.
Nunca vi uma coisa viva, movimentar-se tão devagar. Seria quase impossível imitá-lo. No minuto seguinte ao primeiro passo, cairíamos exaustos com a própria lentidão minuciosamente calculada, compenetradíssima em cada barulho novo, em cada ameaça de gestos. Fico imóvel o máximo de tempo que posso, tento não respirar, não carregar muito a atmosfera com a minha presença, que por si só, já seria fatal. Procuro ser solidária na única coisa que posso oferecer agora: movimentar-me o menos possível. Ajudá-lo nessa transição, seria talvez, a ingrata tarefa de sumir, desaparecer por uns instantes.
Se algo cair agora, ele desconcentra e perde o único elo que lhe é possível atingir para sair do armário, a segurança do chão. Ele não pisa, ele tateia o assoalho como se fosse possível quebrá-lo com seu peso. Um chão de gelo. Seu rabo continua pra dentro, ele se esgueira até a cadeira onde estou sentada, está quase se arrastando sobre o chão e nesse momento tenho a ilusão visual de um soldado de guerra, perto da linha do inimigo. Qualquer movimento brusco e o inimigo ataca. A carapuça serve e me sinto a inimiga mais próxima. Quero demonstrar-lhe gratidão, simpatia, mas quanto mais tento ser acolhedora, mais me sinto uma imitadora barata de mim mesma.
O morteiro, ou que outro nome tenha, atingiu-lhe profundamente, desviou-lhe de seu dia, que já tem um plano traçado: de manhã, durmo no sofá da sala em cima da almofada amarela, à tarde estou na janela do escritório e cuido do estacionamento do Hospital São Camilo e à noite a dona da casa chega e ficamos na sala ou no quarto enquanto ela escreve umas coisas num papel; outras vezes quando ela está de bom-humor, posso sair até o jardim pra ver o gato Urano, isso sim é uma bela madrugada. Um banho de água fria no meu sábado, um banho de água fria num roteiro bem elaborado.
Um bicho não esquece assim tão rápido como os homens querem fazer crer. Não. Um dia inteiro já se passou, anoiteceu, a Rolinha provavelmente já jantou e está preparando-se pro sono dos justos e o Jeremias ainda se arrasta pela casa e está sofrendo por não alcançar o corredor que o ligaria até a cozinha. Tento acompanhá-lo, como a mãe que acompanha os primeiros passos do bebê. Só que isso parece retardá-lo ainda mais. Vendo-me ao lado, ele enrodilha-se todo em minhas pernas e praticamente pede colo. Não posso dar.
Minhas obtusas boas intenções estão cheias de vícios e germinam nelas o dilacerante poder do dominador. Não posso colocar a mão em sua cabeça. Seria me falsificar demais. E pior, seria falsificar um gato. Volto ao quarto, enquanto tensa, procuro forças para continuar passiva diante da inquietação crispada de Jeremias, que me cerca. Que tem sede.
Mas eu não posso ensiná-lo a andar. Reeducá-lo agora, seria na verdade, uma segunda castração. Ele precisa continuar sem mim e esgueirando-se como um soldado raso chegar até a cozinha. Morto ou vivo. O que é mais terrível, minha tentativa plácida de assistência ou o som estrondoso do morteiro?
Em ambas moram a mão brutal do homem, que consciente ou não, tenta dominar o mundo.
Às vezes, ajudar é um crime.