sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

HEXAGRAMA 33 A RETIRADA

O problema de gripar e passar o Natal em uma cidade como São Paulo, sozinha, é que você corre o sério risco de ligar a televisão - mesmo não tendo o hábito - e assistir por exemplo, por acaso, ao Especial do Roberto Carlos.
Pronto. Aí você já foi escalado para uma nova aventura em sua vida. E inesquecível.
Você estava quieto. Parado. Aninhado em sua poltrona, lendo aquele romance que há muito tempo queria ler, tem um suco de laranja nas mãos e ele não possui um único pingo de álcool, você sente aquela amável brisa que entra, sente o alívio do ano que se vai, está usufruindo até de certa serenidade interna, quase uma paz, quase a tão sonhada tarde em Itapuã, mas aí em algum momento de reflexão entre uma página e outra, você avista a família vizinha, reunida, abrindo os presentes em seu apartamento glorioso e embrulhado em decoração de Natal. Eu contei. Eles possuem cento e quarenta e três luzinhas coloridas em sua varanda, que nem é varanda é um terraço de tão ampla. Eu estava justamente aqui, a contar todas essas maravilhosas e tão animadoras luzinhas! Os dedos coçam.
O que esses serzinhos de outro planeta e que por um infeliz acaso do destino moram em minhas mãos, querem?
Uma tarde em Itapuã?
Não. Claro que não.
Cozer, dormir, fritar?
Não. Eles estão ardendo em brasas, coçando minhas pernas, coçando minha cabeça, aflitos e desesperados por animação! Eles querem agitar. Se eu não tivesse essas mãos eu seria outra pessoa. Eu, aqui em cima, sou calma, introspectiva, gosto de silêncio, mas meus dedos? Eles falam, eles coçam, se jogam em cima de outros dedos desconhecidos, se entrelaçam, se juntam em prece, apontam, batem palmas em momentos errados, socam, investigam, furtam e denigrem a minha imagem, ainda assim eles continuam cutucando as pessoas na curiosidade de entender tudo, são fuxiqueiros esses dedos, são incansáveis.
Glória senta em cima das mãos. Jeremias finge certa discrição. Ele tenta não rir da atitude de Glória, mas seus bigodes longínquos não disfarçam um sutil movimento de deboche. Os dedos dela se agitam embaixo de seu corpo.
Glória levanta, vai fazer chá, vai fazer compressa de água quente, vai fazer alguma coisa com esses dedos. "O que vocês querem de mim agora?"
Ela sabia o que eles queriam, ela sempre soube, ainda mais depois de assitirem a família da varanda-terraço debruçada em presentes e cento e quarenta e três luzinhas de Natal enfeitando a ceia da véspera. Eles querem enviar um e-mail para um ex, um manifesto para o patrão, uma declaração de amor bem xula para um pseudo-pretendente que na verdade é um amigo, um desabafo para a amiga distante e tão querida. E como não poderia faltar, uma ofensa para um colega de trabalho insuportável e do qual ela engoliu sapo o ano inteiro. Mas como os dedinhos de Glória, esses seres diabolicamente misteriosos e corrompidos já tinham feito todo o servicinho sujo deles, não restava mais nada a fazer, a não ser ligar a televisão. Ela precisava urgentemente se distrair de si mesma. Já que não conseguia nem viajar para passar o fim de ano fora, sua vontade era ver o filme "O Anjo Exterminador".
"No ano passado assisti 'Laranja Mecânica'. Foi o meu melhor Natal."
Eu e Glória ensaiamos uma ida a locadora quando lembramos, juntas, que hoje estaria fechada.
Glória está na sala. Senta em sua poltrona e fica instalada comodamente neste dia: o dia 25 de Dezembro de 2008, aquele dia que seria o dos presentes, em sua emocionante, remota e claustrofóbica infância.
Glória olha Jeremias que está dentro de uma euforia absoluta, perseguindo um pássaro pela casa. É comum algumas Rolinhas se confundirem e entrarem janela adentro até acharem o caminho de volta. Se tiver volta.
Glória salva a Rolinha ou não salva a Rolinha, salva a Rolinha ou não salva a Rolinha?
Não. Glória não vai jogar I Ching pra responder essa pergunta. Ela é forte e saberá tomar a mais sábia decisão diante desse frágil destino. Salvar ou não salvar? Dizia Padre Antônio Vieira que essa era a questão mais importante, salvar ou não salvar sua alma? Eis a questão maior e acima de todas.
Quando finalmente Glória decide salvar a Rolinha e assim limpar a sua consciência de uma vez por todas; redimindo-se assim dessa culpa e aproveitando a feliz ocasião para se libertar de outras mais; é que percebe que ao abrir a janela a Rolinha já havia fugido por entre uma estreitíssima fresta. Como ela conseguiu passar por ali, permanece um mistério.
Glória não pôde assim, fazer a faxina tão adiada em sua implacável consciência.
O telefone toca.
Ela resolve não atender.
Está escuro e paira no ar um resquício ínfimo, porém perigoso de Natal.
Glória respira e resolve fazer inalação. Ao se levantar para ir até a cozinha buscar o kit gripe, eis que suas mãos trêmulas e apreensivas apertam o botão da televisão. E lá está ele. O Rei.
No início ela ri de si mesma, ainda possui um lâmpejo de bom senso em seu olhar. Aos poucos, depois de inalar tantas vezes a água quente e ter os olhos mareados por... essa água quente, Glória começa a se entregar... a ele, o Rei Roberto.
O telefone toca de novo. Glória não atende, porém dessa vez vai até o telefone ver de quem é a chamada. Pronto. Nada será como antes. O músico, o tal do músico está lhe telefonando.
Mas, escuta Glória: você resolveu ficar quietinha. Está fazendo inalação e cuidando de sua saúde. Amanhã viajará para sua terra Natal.
O Rei está cantando você foi o melhor dos meus casos de todos os abraços o que eu nunca esqueci o telefone toca de novo Glória não atende vai fazer xixi o mais complicado e o mais simples pra mim das lembranças que eu trago na vida você é a saudade que eu gosto de ter está escovando os dentes para não pensar ligou a internet ao mesmo tempo deu um abraço no Jeremias que saltou incomodado só assim sinto você bem perto de mim outra vez o telefone toca Glória chuta uma bolinha de papel que está na sala olha em volta vê de novo o Rei esqueci de tentar te esquecer resolvi te querer por querer Glória não sabe o que fazer olha o I Ching agora não dá tempo de jogar atravessa na área chuta pra pênalte dribla o zagueiro passa pra Ronaldinho que lhe devolve a bola e Glória finalmente atende o telefone.
GOL!!!
Sua voz muda. É outra voz, outra pesssoa, outro ser e tão... doce, tão enigmático. Ela está calma, envolvente, tem um sorriso maroto nos lábios e ninguém diria pela sua voz aveludada que uma gota de suor escorre de sua tempôra. Ela está dizendo que vai viajar hoje, ela está falando sem parar, ele diz que a leva até a rodoviária, ela diz que tudo bem e desliga o telefone.
Como assim tudo bem, Glória? Você não vai viajar hoje, que história é essa?
Ela está de pijama, estava vendo o Rei Roberto Carlos, indo dormir, faltava só colocar a bolsa de palha e o filtro solar na mala. Ela tem que sarar pra ir à praia. Glória! Você precisa ir à praia! Andar de bicicleta na Lagoa, tomar água de côco no calçadão. É vida ou morte, Glória. Você TEM que ficar corada. Um minuto de tranquilidade... dá pra ser?
Glória arranca o pijama da alma e entra no banho. Eu não estou acreditando, mas ela está lavando o cabelo!!! Isso vai demorar horas, porque quando Glória lava o cabelo a noite, precisa secar, precisa escovar, fazer bobs... Ela está depilando as pernas? É isso o que estou vendo? E as axilas também! É hoje que ninguém dorme nessa casa.
JEREMIAS fica olhando esse banho demorado e resolve desistir de demovê-la dessa idéia. Glória sai do banho e vai fazer escova, passar hidratante, esfoliante, óleo de amêndoas. E uma hora e meia depois coloca um vestido beeem casa, como quem não quer nada. Vai até o escritório e antes de abrir o I CHING pequenininho, ela reza três Aves Marias, um Pai Nosso e a Oração pro Anjo da Guarda e o Menino Bom Jesus, depois pede licença pra mamãe Oxum e papai Oxóssi e se ajoelha no chão fazendo a tão desesperada pergunta:
"Eu devo me encontrar com o José?"
Abre o I CHING. Lê.
A RETIRADA
O movimento sugerido por este Hexagrama é o do poder obscuro que vem chegando e o do poder luminoso que vai-se retirando para uma posição segura. Deste modo impede que a escuridão possa alcançá-lo. O momento é de preucação, evitando o esgotamento. A retirada é uma atitude correta e nobre. Você deve procurar um lugar seguro onde possa proteger-se. Com isso estará dificultando o avanço e crescimento das circunstâncias desfavoráveis.

Pronto. Mais claro impossível, não é Glória? Deixa o José pro ano que vem, vamos dormir.
O problema é que Glória estava toda perfumada, toda tratada, toda esfoliada, ia gastar a escova dormindo? E estava um tanto quanto excitada com a idéia de José, violão, serenata, enfim, flamenco, tudo aquilo na sua conturbada cabecinha e ainda meio tonta com o Rei, o que não saia de sua cabeça era você foi a mais linda história que eu nunca esqueci só assim sinto você bem perto de mim outra vez. O I Ching estava perdendo pro Rei, ai meu Deus, perigo! Sinal vermelho. Hora de gastar os últimos créditos do celular para ligar para Veridiana. Conversa vai, conversa vem, Veridiana diz que é dificil opinar assim, de longe, mas que ela é sempre a favor de viver a vida. Glória diz:
"Mas e o I Ching? Você não ouviu suas palavras? Eu posso me esgotar! Olha a minha saúde."
VERIDIANA é categórica:
"Por que se esgotar? Você TEM que vir pro Rio? Você não está de férias? Então. Esquece um pouco o I Ching e viva."
Glória anda de um lado pro outro da casa, está numa indecisão absoluta, o Especial do Roberto Carlos acabou e agora ela está sozinha, sem o Rei pra testemunhar a favor. Ela come umas pipocas velhas, umas uvas passas, olha pra Jeremias, Jeremias olha pra ela. Nada. Ele não dá nenhuma dica, gato desgraçado.
Jeremias pressente que o pesadelo vai começar. Glória olha o I Chig grandão na estante, aquele que só pode jogar uma vez por mês, o Sagrado. Começa a defumar a casa. Desfaz a bagunça da mesa de centro. Acende o incenso, pega a Lavanda de Alfazema, passa no corpo todo, vai lavar as moedinhas, perfuma as moedinhas. Pega o I Ching coloca na mesa de centro, defuma o I Ching, reza, pede licença, corre até a cozinha pega um copo de água, coloca na mesa ao lado do Oráculo. "A macumba começou!" pensa Jeremias e se afasta vagaroso até o quarto.
Glória pede desculpas, muitas desculpas pro I Ching, sabe que não devia estar se consultando assim, dias seguidos, mas a pergunta de ontem era de outra área de sua vida, não tinha nada a ver e essa era importante. Sua saúde estava em risco. O menino tinha ligado eram umas onze e meia da noite, agora já eram uma e meia, mas tudo bem, antes tarde do que nunca, o importante é decidir certo, Glória pensava.
Depois do prólogo com suas satisfações e pedidos de desculpas pro I Ching, ela faz a pergunta. Tem que repetir cinco vezes a mesma pergunta, pede pro I Ching ser objetivo, a resposta tem que ser clara! Faz tudo com fé, está cheia de Alfazema, a casa tem incenso, defumador e óleos essencias, Glória toma umas gotinhas de floral de Bach. Sai o Resultado. Ela lê:
50. TING/ O CALDEIRÃO
"As linhas que compõem este hexagrama formam a imagem do caldeirão; abaixo estão as pernas sobre as quais está o bojo, em seguida as alças e acima as argolas usadas para carregá-lo. Esta imagem sugere a idéia de alimentação. O caldeirão de bronze era o utensílio que continha os alimentos cozidos no templo dos ancestrais e nos banquetes. Cabia ao anfitrião servir os alimentos do TING nas tigelas dos convidados."
Glória lê e relê o hexagrama: "Ai meu Deus, saiu o hexagrama mais abstrato de todo o Livro!! E é claro que ele está falando de outra coisa, porque no fundo e o Velho Sábio Chinês não é bobo, no fundo, Glória continua só pensando em trabalho, ela "acha" que quer sair, ela "acha" que consegue se divertir, mas está lá, colada na sua pele, toda sua obsessão com os caminhos a trilhar, sua viagem pra França, as aulas, o emprego, o outro emprego, o patrão, os empregados, será que não dá pro Velho Sábio cooperar?
JULGAMENTO: O CALDEIRÃO. Suprema boa fortuna. Sucesso.
Tudo o que é visível deve se expandir para além de si mesmo, até penetrar no âmbito do invisível. Desse modo alcança a sua verdadeira consagração e clareza, enraizando-se firmemente na ordem cósmica.
"Ai, ai, ai! Não respondeu nada. O que quer dizer esse alimento? Que comida é essa? E essa ordem cósmica? Eu estou toda desordenada! 'Se expandir pra além de si mesmo'... Peraí, estou pensando numa coisa aqui...Vou respirar.(pausa) Esse hexagrama... É um hexagrama positivo,sim, diz suprema boa fortuna, então é isso o que importa. Eu pedi pra ele ser objetivo... Agora então eu preciso pesar, o negativo do pequenininho e o positivo do grandão, mas ele não parece responder a minha pergunta e sim a outra, aquela que eu não pronunciei, eu queria deixar essa, a mais grave pra Janeiro, mas que idéia de Jericô jogar I Ching nessa altura do campeonato!"
A hora está passando e Glória reflete e reflete sobre as Sábias palavras e tão abstratas do Oráculo. Olha Jeremias que passa:
"Vem aqui, vem neném, vem ajudar a mamãe". Jeremias dá de ombros. Glória escreve num papelzinho ver, não ver, ver, não ver, corta e dobra bem pequenininho e joga pra Jeremias sortear. Jeremias nem olha. Deita e dorme. Glória está eufórica, sacode o gato, joga os papelzinhos todos no fucinho dele, pede com carinho pra ele escolher um, é só olhar pra um. ele vira a cabecinha pro outro lado. Glória pula, faz festinha em Jeremias, faz cosquinha nele, bilu bilu, Jeremias sai e vai pra cozinha, ela corre até o escritório, se ajoelha em frente ao altar, reza mais quinze Pai Nosso, dezesste Aves Marias e Doze Oração ao Bom Jesus Menino e sorteia um papel. Deu que é pra ver. Pronto. Dois a favor e um contra, vou ligar.
GLÓRIA - Alô, oi José, nossa que voz de sono, te acordei?
JOSÈ - Eh... Mais ou menos.
GLÓRIA - É que eu desisti de viajar hoje.
JOSÉ - Percebi.
GLÓRIA - Vou ficar.
silêncio
JOSÉ - Achei que você já estava dormindo.
GLÓRIA - Não, estava terminando de arrumar as malas.
JOSÉ - Sei.
GLÓRIA - Então, se quiser passar aqui.
JOSÉ - Putz, agora eu já estou dormindo. Deixa pra depois.
GLÓRIA - Tá bom, então tá. Boa noite.
JOSÉ - Bom dia. Tá amanhecendo.