segunda-feira, 13 de abril de 2009

I-dente-dade

Soluços interrompidos. No dia-a-dia agitado, Glória observa o intervalo que se inicia, não sem um certo temor.
Como se o domingo estivesse presente dentro de todos os outros dias.
Úteis.
Como se a segunda-feira ampliasse toda a potência da folha em branco.
Ou fosse a própria palavra engasgada. Aquela que queremos dizer e esquecemos no minuto seguinte.
Que só a proximidade da morte poderá libertar. O último olhar. Aquele onde veremos tudo o que evitamos durante a vida. Por puro medo. Por puro tédio.
A vaga é o dia útil. O trânsito, a poluição, o metrô lotado. Quem poderá retrucar com precisão que a vida útil não é um sonho? O sonho tateia o rosto do real por manter um contato indireto com a eternidade.
E aqui na segunda-feira apressada conquistamos com suor emblemático a máscara da imortalidade. E nos distanciamos iludidos do engasgo anunciado e contido, tão cheios de pastas e projetos gráficos, planilhas que contém o orçamento planetário.
Tesoureiros do tempo. Armada de guarda-chuva, remédios e apostilas, Glória desembarca na estação Paraíso. Agora uma recém-brasileira.
Jeremias salta do sonho, afundado na almofada amarela.
Pressente um ato. O barulho da chave e a porta sendo aberta. Não há nenhum entusiasmo em vê-lo, assim tão receptivo e atento. Ele finge não perceber essa distração. E nem se amola de um dia preceder o outro assim vagamente.
Glória move-se pelo apartamento em silêncio. Sem o futebol de domingo e com a praticidade de uma segunda-feira, ela é o tijolo.
Um tijolo por cima do outro e a casa está pronta.
A aritmética da existência, a lógica da construção. É preciso expandir pontes, criar novas estações de metrô, despoluir o rio Tietê, a guerra de ser a primeira cidade em qualidade de vida do mundo. Os engenheiros é que são felizes, pensa Glória, ao retirar o miojo da sacola plástica.
E o dente extraído? Onde entra ele nessa lógica da construção diária?
Ele não entra. É um desvio na rotina, o inesperado, uma inglória travestida de acontecimento.
Precisamos de um enredo, cochicha um anjo rouco e abatido.
Precisamos ter um começo meio e fim. Não exatamente nessa ordem.
E a não praticidade de uma perplexidade?
Um esquecimento, a distração, o olhar que se desvia da multidão e do relógio para as ruínas de um prédio.
Sem utilidade. Nada disso é útil.
E transitamos atônitos e frenéticos numa escala desmedida de dias que se interpõem misteriosamente uns sobre os outros, presos por arames farpados entre as folhinhas do calendário pregado na geladeira. Sem nada que nos conecte, sem um único fio. A não ser o do caminho até o trabalho. E depois, o do trabalho até em casa. Paradas estratégicas para pôr gasolina, exercitar o corpo e comer um sanduíche vegetariano, já que o mundo moderno insiste em nos domesticar. O objetivo é que tenhamos todos o mesmo corpo e o mesmo rosto. Assim, uma unidade perfeita e harmoniosa.
E a extração dentária?
Não tem começo meio ou fim essa extração. E o incidente vaga silencioso sobre a cidade que constrói um tijolo após o outro.
Glória está agora esmagada pelo prédio da direita na Avenida Paulista, que alçado até o infinito a olha como se visse uma formiga perdida das outras, carregada de folhas.
No ônibus, vários televisores nos magnetizam com as últimas notícias do dia e maxilares enérgicos movimentam-se tentando acompanhar o ritmo da música de seus i-pods ou celulares. Carregamos a trilha sonora que melhor nos convém para a inevitável convivência diária. E não escutamos o ronco da velha desdentada que dorme no banco frente, logo atrás do motorista, com suas duzentas sacolas plásticas e vazias. E não vemos sua boca aberta, todas aquelas obturações mal conduzidas. A baba escorre grossa e atravessa sob a catraca até o fim do ônibus. Não vemos e não ouvimos nada. Graças a Deus louvado seja o Senhor, amém.
Glória olha para os rostos inchados de cerveja e macarrão e tenta adivinhar o som que cada cara tem.
Do outro lado do ônibus, no banco solitário, uma menina compenetrada escreve compulsivamente num caderninho. Glória chega mais perto. Ela continua o movimento de deslizar o lápis sem interrupção do início ao fim da linha até encher as páginas. Carrega uma mochila e tem uma tatuagem colorida exposta num lugar do corpo um tanto inusitado. Na saboneteira? É isso? Sim, ela tem uma espécie de arco que vai da saboneteira até o peito. Arco? É um mistério essa tatuagem pra mim, pensa Glória já nas pontas dos pés, quase caindo sobre a menina para compreender melhor. Cabelo preso, um fio escorre negligentemente sobre os olhos castanhos, ela não se preocupa em ajeitar nada. Escreve. Continua. Será que dava pra trocar de papel, só um minutinho Deus? Não vai estragar as suas construções, nem seus tijolos fabricados e distribuídos dentro de tão alto padrão de qualidade. Se eu me transformar nessa menina só por alguns instantes e continuar o que ela está escrevendo, talvez descubra a peça que falta, talvez reconecte a minha existência a de um outro. E me sentir assim, tão possuídora de tatuagem, talvez me reabilite de certa gravidade. Quero também, que seja só por alguns instantes, deixar cair um fio solto sobre o olho esquerdo, sem me preocupar em consertar...
O ponto em que Glória vai descer está chegando, é uma pena, uma pena mesmo deixar esse retrato tão bonito e toda essa possibilidade de suave transcendência, e sair assim, tão mãos abanando, sem nenhuma pista do que seja o desenho, o texto ou eu mesma.
Um menino de barba entra no ônibus, o coração de Glória salta disparado, parece muito com Ele, o antigo namorado. O menino atravessa a catraca e agora coloca-se lado a lado com Glória, que precisa descer. Antes, observa o rosto do homem no reflexo da janela, não, não é Ele, seu semblante é de um saxofonista. Sim, ele é saxofonista e gosta de ler T. S. Elliot e os romances policiais de Raymond Chandler. Quando criança lia Asterix. Sua mãe toma Lexotan com uísque, era bailarina, mas sofreu uma fratura no joelho depois de um acidente de carro. O pai mora no interior, numa chácara, mas conseguiu se reabilitar do alcoolismo. Hoje cria galinhas. A menina é mais difícil dizer, ela não dá nenhuma pista e a tatuagem obscurece ainda mais sua gênese. Ela não tem história. Escritores não tem história. Tão bonito um quadro assim, eu entre a menina que escreve e possuidora de tatuagem e o saxofonista de barba, viciado em Chat Baker, menino que eu poderia beijar e me entregar sem medo. Quem sabe? O pai cria galinhas e a mãe é inofensiva, tão afogada em barbitúricos e nas fotos da mocidade. Como era linda! Virou uma bruxa de cabelos espetados e ruivos.
Glória desce. E todos vão embora para nunca mais retornar.
Nunca mais. E o dia precede o outro e os tijolos se formando e as construções crescendo, novas estações rodoviárias, novos clubes e aeroportos, pontes e toda uma tecnologia para facilitar e promover a caminhada, a ciência moderna desafiando os homens, inventando os clones, a revolução genética nos arremessando pra frente, sempre pra frente, sentido-direita-volver, a medicina tão aparelhada e entre nossos corpos que se esbarram, aqui e acolá, nenhum aceno, novos rostos se intercalam sobre os antigos e já nos esquecemos, mesmo com as pílulas, mesmo com as anfetaminas, gritamos nossos nomes sem encontrarmos o eco, e a fila anda, não alcanço mais seu pânico e ainda mais agora que se esqueceu como me abraçar, um braço aqui e outro ali e eis um abraço perfeitamente possível, você não está conseguindo, nem adianta gritar, sempre chegando e indo embora, as pessoas transitórias, depois te ligo, vamos combinar um almoço, os navios ancorando e partindo, novos embarques e desembarques, nenhum carinho ou promessa, nem um leve indício de continuidade, uma fadiga de encontro, mesmo que seja um leve toque com as pontas dos dedos nos cabelos que já começam a esbranquiçar e caem.
A impossível pausa, o papel em branco renegado, a presença do domingo em todos os dias.
Úteis. A falência dessa presença.
Entre mim e o fato, vários retratos se amontoam. E entre eles, nenhum começo meio ou fim que os religuem.
E eu nem me reconheço mais em tantos fios de cabelo, um chumaço inteiro entupindo o ralo do banheiro.
Uma construção de fios.
Que se vai.