segunda-feira, 27 de abril de 2009

CRISÁLIDA

Primeiro, foi a lágrima aliatória e involuntária que pingou de sua face sobre os bigodes espectrais de Jeremias. Depois dela, começaram a brotar as outras. Grossos pingos, estouraram no rosto lívido, como bolhas de queimaduras de sol. Ela não fazia nenhum esforço, eram lágrimas de outro mundo. Quem chorava por ela? Como a flor que murcha, sem conseguir impedir a transfiguração, ela aceitava impassível as lágrimas que escorriam livremente, desordenadas, nascidas não sei de que lamento longíquo. Quem olhasse de fora, imaginaria se tratar de uma imagem santa. O contorno de mármore e o ar imóvel e complacente, destilando fluidos de misericórdia. E no alto do altar, o canto dos círios num frêmito de desolação envocado pela voz monocórdia do padre albino.
Tinha dormido um pouco – ela achara. E acordara no meio da palavra: Crisálida. Assim, vinda desse jeito, tão oferecida, como um título: “A crisálida”. Agora, ainda teria que inserir a palavra nova em seu vocabulário de gato. Não, de gato, não. Não fora Jeremias quem sonhara. Ou fora? E essa confusão de destinatário, lhe causara certo enjôo febril que somava-se às lágrimas em flor. Gostaria de possuir lírios. Precisava deles, como uma formiga precisa de sua rainha para viver em devoção. Um jarro com lírios bem ao alcance da vista a observar incrédula, as pétalas se abrindo sem esforço algum. Mas, isso na verdade, não seria possível, visto que se houvesse mesmo essa jarra, acrescentaria-se novo crime à sua lista já imensa. Ela forçaria com os dedos turvos, a abertura das pétalas brancas, só para espiar gratuitamente o rosado do interior. Felizmente, que não possuía tal jarro. Felizmente, que nada podia fazer a não ser esperar.
De novo anoitecera. Sim. Poderia dizer: nova noite?
A fraqueza impossibilitava a exigência e a força da palavra. E calar era seu novo projeto. As lágrimas continuavam transbordando como numa torrente. A enchente humana e imprevisível. Assim, como a jarra de lírios existia londe de seus olhos e de suas mãos, amanhecidas em uma floricultura qualquer, as lágrimas também lhe eram desconhecidas. Talvez Jeremias chorasse por ela e na falta de uma expressão mais adequada àquele momento, pedia-lhe o rosto emprestado. Lírios obsoletos.
Obscura. Ela tornara-se obscura aos olhos da noite. A escuridão a relegara ao papel de espectadora. E a tempestade novamente formava-se no céu. Sempre uma promessa não cumprida. Novas promessas se sobrepunham umas sobre as outras. Como o dia sobrepunha-se sobre si-mesmo. Folhas selvagens. O coração estava indo embora, tão longe, como os lírios que não descansavam dentro do botão e evitavam abrir-se.
Cansara de esperar. O coração a beira da guilhotina. O coração era o sonho que não chegava. Sonho que se esvaía, no seu coito, interrompido. Amor interrompido. Crisálida.
Seria possível, retornar? E onde estava agora, poderia enfim, impor o grito? Não, rosnou rancoroso, o último ronco do céu. A palavra lúgubre que um dia amara, se interpunha entre ela e a jarra de lírios imaginária. Viver, era enfim uma ação.
A ação era enfim, a inação.
A inação não se interpunha entre ela e o grito.
Mas, faltou-lhe fôlego no momento exato.