sábado, 11 de abril de 2009

Violência Comemorativa

O gato estava na janela. Mirava curioso a rolinha que se preparava para um vôo suicida, quando um dos fogos estourou bem na hora; do vôo e da mordida. Sem hesitação, o gato saltou da janela e correu com o rabo entre as patas, até o esconderijo mais seguro. Fui espiar sua aflição. Procurei-o embaixo da cama, não estava. Entre os lençóis, também não. E eis que o encontrei encolhido entre os vestidos, dentro do armário. Tremia. Seus olhos eram os de alguém que sofrera um estupro. Ele nem me encarava mais. Os olhos procuravam um ponto para retroceder. Para distrair-se dessa violência gratuita, que nem instintiva era. A violência da comemoração. Voltei à janela e gritei, também violentada: Vou chamar a polícia!
Mas foi em vão, o torcedor fanático, encerrado em sua obsessão, só via o seu time sobre o horizonte. A sua paisagem resumia-se numa euforia de gols, gramados e arquibancadas. E aquilo que via, não era o que via. Ele gritava o nome do time do coração e seria capaz de soltar um rojão em cima de uma criancinha, tão enamorado estava consigo mesmo e com o seu time. Entre os dois, não havia nada, nem ninguém.
Jeremias empedrou-se. Nem miava, nem rangia. Sentia ainda o barulho entorpecente da explosão. Estava surdo. Atirado de repente à violência dos homens, parecia-lhe que o melhor a fazer era simplesmente, retroceder ao início de tudo. O útero-armário. Dali não saiu e talvez não sairá jamais.
Invejei essa certeza objetiva. Uma aceitação que não era covardia, era um auto-respeito. Era sua manifestação de silêncio. De amor ao homem, até. O contrário do silêncio seria a arrogância das palavras, das comemorações frenéticas e os gritos que tentam interpretar o espanto; nossa inorgânica forma de convivência. Um atropelar-se amestrado e artificial.
Na minha impotência, repetia baixo, quase sem conseguir disfarçar os meus sons atropeladores, não queria que saltasse de mim, nenhum vestígio humano. Sussurrei, com uma cautela homicida: "Não fui eu, Jeremias. Juro que eu não fiz nada."
Perplexa, dentro da minha dúvida passiva, queria tirar-lhe qualquer suspeita de que aquele estrondo inverossímel poderia ter sido causado por mim ou por alguém que eu conhecesse. Ele continuava sozinho dentro do seu susto, não estava no momento de compartilhar ou entender nada. Isso seria outra violência, sugerida por mim, mãos tão limpas. O gato ainda sentia aquele zumbido invisível que sentimos após a grande explosão. Na sua imobilidade compreensível, me vi envergonhada por não compartilhar dessa franqueza implícita, natural. Concentrado na supremacia de existir, o gato estava como uma criança quando brinca. Ou um velho quando morre.
Senti-me cínica por transitar entre tantos ruídos, sem nenhuma estranheza. Seus olhos tão ativos normalmente, agora eram duas poças alargadas pelo susto.
Susto.
A única palavra que realmente existe. Que ainda mantém uma ligação com a vida.
Um papel em branco; susto.
Levantar e sentir uma dor nova, entre o fêmur e a coxa; susto.
Esticar a mão e não alcançar o alvo; um grave e implacável espanto.
Jeremias, retorna aos poucos de seu sonho, como se após a morte houvesse finalmente, a vida.
Ele sai aos poucos do armário. Estou aqui ao lado. Páro e observo.
Nunca vi uma coisa viva, movimentar-se tão devagar. Seria quase impossível imitá-lo. No minuto seguinte ao primeiro passo, cairíamos exaustos com a própria lentidão minuciosamente calculada, compenetradíssima em cada barulho novo, em cada ameaça de gestos. Fico imóvel o máximo de tempo que posso, tento não respirar, não carregar muito a atmosfera com a minha presença, que por si só, já seria fatal. Procuro ser solidária na única coisa que posso oferecer agora: movimentar-me o menos possível. Ajudá-lo nessa transição, seria talvez, a ingrata tarefa de sumir, desaparecer por uns instantes.
Se algo cair agora, ele desconcentra e perde o único elo que lhe é possível atingir para sair do armário, a segurança do chão. Ele não pisa, ele tateia o assoalho como se fosse possível quebrá-lo com seu peso. Um chão de gelo. Seu rabo continua pra dentro, ele se esgueira até a cadeira onde estou sentada, está quase se arrastando sobre o chão e nesse momento tenho a ilusão visual de um soldado de guerra, perto da linha do inimigo. Qualquer movimento brusco e o inimigo ataca. A carapuça serve e me sinto a inimiga mais próxima. Quero demonstrar-lhe gratidão, simpatia, mas quanto mais tento ser acolhedora, mais me sinto uma imitadora barata de mim mesma.
O morteiro, ou que outro nome tenha, atingiu-lhe profundamente, desviou-lhe de seu dia, que já tem um plano traçado: de manhã, durmo no sofá da sala em cima da almofada amarela, à tarde estou na janela do escritório e cuido do estacionamento do Hospital São Camilo e à noite a dona da casa chega e ficamos na sala ou no quarto enquanto ela escreve umas coisas num papel; outras vezes quando ela está de bom-humor, posso sair até o jardim pra ver o gato Urano, isso sim é uma bela madrugada. Um banho de água fria no meu sábado, um banho de água fria num roteiro bem elaborado.
Um bicho não esquece assim tão rápido como os homens querem fazer crer. Não. Um dia inteiro já se passou, anoiteceu, a Rolinha provavelmente já jantou e está preparando-se pro sono dos justos e o Jeremias ainda se arrasta pela casa e está sofrendo por não alcançar o corredor que o ligaria até a cozinha. Tento acompanhá-lo, como a mãe que acompanha os primeiros passos do bebê. Só que isso parece retardá-lo ainda mais. Vendo-me ao lado, ele enrodilha-se todo em minhas pernas e praticamente pede colo. Não posso dar.
Minhas obtusas boas intenções estão cheias de vícios e germinam nelas o dilacerante poder do dominador. Não posso colocar a mão em sua cabeça. Seria me falsificar demais. E pior, seria falsificar um gato. Volto ao quarto, enquanto tensa, procuro forças para continuar passiva diante da inquietação crispada de Jeremias, que me cerca. Que tem sede.
Mas eu não posso ensiná-lo a andar. Reeducá-lo agora, seria na verdade, uma segunda castração. Ele precisa continuar sem mim e esgueirando-se como um soldado raso chegar até a cozinha. Morto ou vivo. O que é mais terrível, minha tentativa plácida de assistência ou o som estrondoso do morteiro?
Em ambas moram a mão brutal do homem, que consciente ou não, tenta dominar o mundo.
Às vezes, ajudar é um crime.