21/04/09
Toda quebrada, Glória levou um susto ao dar de cara com Jeremias lambendo-lhe a cara. Nunca dormiram juntos. Ele armava mil artimanhas, escondia-se atrás da cortina, dentro do armário e corria para o quarto, assim que percebia Glória apagando as luzes da casa. Agora, podia comemorar. Dormiram a noite inteira juntos e abraçados.
A multidão vociferava. Era o jogo. Glória tentou erguer a coluna do sofá e não conseguiu. Dormiu de mal jeito e estava realmente quebrada. Precisava saber se algo tinha mudado. O sol entrava furioso pela janela envidraçada. Preparou-se para levantar-se dali. Ainda bem que ainda tinha um pouco de água no copo e seu calmante estava bem ao seu lado, ao alcance das mãos. Jeremias roçou a cabecinha em seu braço. Glória tentou levantá-lo para retribuir o gesto. Foi então que percebeu que seus braços não se mexiam. Deve ser uma espécie de dormência momentânea, concluiu. Daqui a pouco com certeza passa.
Os fogos de artifícios pipocavam. Glória repetiu a mesma tentativa. E nada. Será que tinha dormido em cima dos braços? O hino da vitória recomeçou. Jeremias assustou-se, mas não saiu do sofá. A multidão parecia tão unida, tão feliz! Ela ouvia toda a vibração sonora do estádio. Jeremias lambia agora as suas mãos. Estranho. Ele nunca fez isso... Será que ele sabe? Glória agora respirava fundo. Tentou manter a calma. Isso não estava acontecendo. Realmente, não estava. De novo, e com toda a concentração possível, tentou erguer os braços, as mãos, os dedos das mãos.
Nada. Movimentou a cabeça. Perfeita! A cabeça movimentava-se perfeitamente. Girou a cabeça para a esquerda. Depois para a direita. Sua cabeça estava ótima e movia-se tranquilamente pra lá e pra cá. Aproveitou para dar um giro de trezentos e sessenta graus, pra relaxar. Mas... Peraí! A cabeça está perfeita por fora, mas e por dentro?
Fez um teste: Quem foi a última pessoa a entrar na casa?
Resposta: Doda – O Gago. Bom, como poderia saber se estava certa, se não tinha ninguém para confirmar? Há! Que idiota! Bem, bastava que sentisse uma certeza e estava tudo certo. De mais a mais, se tivesse sofrido alguma espécie de amnésia, não saberia nem quem era Doda – O Gago.
O sol esquentava todo o apartamento e Glória suava, embaixo do casaco de lã. Se ao menos pudesse tirar o casaco... Ou tomar o calmante. Não, o que é isso agora? Você não vai
começar a chorar que nem uma criancinha, vai? Se abrir o berreiro o clima vai ficar realmente insuportável, pense no Jeremias... Ou sei lá, apele para o senso-estético das obras teatrais. Vamos à Shakespeare, à Harold Pinter ou até mesmo à Sófocles. Já imaginou a Jocasta abrindo o berreiro? Sófocles não seria Sófocles e sim um chato de galocha.
Foi castigo. Deixei de tomar as vitaminas e fazer os exercícios físicos e olha no que deu! Essa deve ser a matemática do universo. Como eu negligenciei meu corpo, eles o tomaram. E agora, o cérebro. O cérebro funciona perfeitamente e até a cabeça se move. E isso é bom? Não seria melhor estar incosciente?
Alguma hora, em algum momento, e isto é realmente óbvio alguém baterá nesta porta. Doda – O Gago não apareceu ontem? Então... Ele disse que iria falar com o Sinfrônio para desentupir o ralo do banheiro. Foi quando Glória olhou pro chão e viu a água que inundava a sala, formando pequenas pocinhas de água. E sentiu o odor de fossa.
Claro que este cheiro vai exalar pra fora e Dona Miriam aparecerá aqui com sua pochete e por sinal, muito brava. Nunca imaginei sentir tanto a falta de Dona Miriam como agora. Por que brigamos, mesmo? Eu ofendi o César, foi isso. E ela tomou as dores. Tá bom, não foram ofensas banais, eu lati feito um pit-bull, pra ele. Xinguei, xinguei muito. Conhecia até então, os gafanhotos e as cascavéis que moravam dentro de mim, mas ainda não tinha sido apresentada aos escorpiões.
Ele me deixou esperando por mais de duas horas. Deixei de ir ao banco, de almoçar e ainda cheguei atrasada na reunião. Quando interfonei, ele respondeu que não viria. Não tinha horário em sua agenda. Se ao menos tivesse me avisado não teria me feito esperar o dia todo. E ainda por cima, gritou comigo, no interfone. Foi então que deu aquele curto-circuito, no prédio todo. Quatro blocos. Era eu, batendo com o interfone contra o bloco de concreto da parede – Quando eu era pequena e me sentia contrariada, batia com a cabeça na parede até formar um galo. Na época, era meu fiel companheiro, Haroldo, o galo. – Eu bati tanto com o interfone – era como se esmurrasse ao vivo a cabeça de César – que deu um curto geral nos prédios. Até hoje, os interfones dos quatro blocos não funcionam. Será que é por isso que Dona Míriam anda virando a cara pra mim?
Foi a raiva que me fez ser devorada pelo sofá?
Nunca imaginei sentir tanto a falta de Dona Miriam. Em muitos momentos, ela foi a única pessoa presente. Era ela quem colocava a comida do Jeremias quando eu viajava a trabalho, e ainda, trocava a areia dele pra mim. Segurou a barra das multas do condomínio, as queixas dos vizinhos contra os gritos orgiásticos – hoje tão antigos e tão remotos. Foi até Aricanduva ver a peça dos meninos e ainda voltou toda emocionada, quando eles me agradeceram, no palco. Uma verdadeira mãe. E tudo isso, para terminar assim, duas caras viradas para lados opostos. No mesmo dia da briga a chamei para conversar. Ela estava na salinha de vidro da portaria, conversando com César e mal me olhou, dizendo: “Hoje, não dá.” Logo depois, houve a extração dentária e eu não conseguia articular uma palavra. E junto com a dicção prejudicada, um sério desânimo para as justificações. E assim, nos resignamos à inércia da indiferença, como se fôssemos duas estranhas uma pra outra. Quando tive cálculo renal, foi ela quem me levou ao hospital, quando ela teve uma crise de artrite, fomos eu e o Antônio – o namorado antiquíssimo – levá-la ao Pronto-Socorro. E assim, as histórias terminam. Hoje, já não existe nem Antônio e nem Dona Miriam. São como dois estranhos. Dois vultos que a memória insiste em apagar.
Mais fogos de artíficios. Quem ganha? Quem perde?
Glória estica o pescoço e tenta espiar a vista, consegue ver os últimos andares dos prédios, a árvore amiga, tão próxima, ali, do lado direito e aqui, mais próxima ainda de Glória, todas as nuvens do céu. Elas agora estavam quietinhas, paralisadas, como que em solidariedade à Glória. Como o céu é bonito daqui! E somente agora parecia ter descoberto a sua vista. Nuvens rosadas espalhavam-se languidamente sob um azul pálido, que caia como um véu de noiva em cima delas, dando-lhes um colo, protegendo-as. Um fraternal abraço de Pai.
Que bom ter deixado aberta as janelas da sala! Graças a Deus! Posso ao menos assistir o despertar e o cair do dia. E ficar assim como o azul do céu, em volta do Jeremias que aconchega-se em meu colo.
Ainda o céu é possível, pensava Glória, enquanto via Jeremias iniciar um despreocupado bocejo. Estou tão calma! E isso é o mais estranho... E ainda dentro de suas divagações – pois que nunca perdia o fio, ainda mais agora, sendo esta, a única coisa que lhe restara – ela argumentava para si-própria que mesmo com todo o rancor e ressentimento que ainda nutria por Glória, Dona Miriam não poderá deixar de dar-lhe por sua falta e muito provavelmente, pedirá com aquele seu jeito ranzinza, para alguém subir e ver o que está acontecendo. Sim, era assim que Glória pensava e isso de certa forma, a apaziguava. Jeremias parecia de repente, um pouco aflito. O que seria? E por que também ele, não saia do lugar? Acho que deve ter acabado a sua comida. Deus! Por que não pedi ontem para o Doda, colocar a ração dele?
De repente, Glória parou. Uma espécie de corvo passou como um fantasma pelo seu pensamento e agitou como um apito de trem, os dois olhos grandes, de um castanho nublado pelo fástio da própria cor. Inquiriu a paisagem, meneou a cabeça levemente e franziu as sombrancelhas grossas, numa espécie de grave meditação. Sentiu o mesmo aperto no peito do dia anterior, agora sem ter o regalo de tocá-lo com as mãos. Seus olhos já escuros adquiriram um negro esfumaçado, pictórico, como são os olhos escuros das pessoas velhas, que se desbotam, derrisórios e ganham uma nova membrana, quase invisível, mas que oculta a verdadeira cor. E ali, Glória, vinte e nove anos, envelheceu. Ainda sem saber pra que faixa etária pulara, ela continuou concatenando os fios de pensamentos que se cruzavam, só queria pensar melhor antes de esticar os olhos sobre a trama. Meticulosa. Era desde sempre uma mulher muito meticulosa. Não tira conclusões precipitadas, diria alguém, nom tom pomposo. Há momentos na vida em que envelhecemos de uma só vez. Por nossos olhos, passam dez, vinte, ou até, trinta anos. Assim, velozes, roubando nossos anos e arrancando o brilho de nossos olhos como quem chupa o caroço de uma jabuticaba e joga-o fora, sem nem ao menos dar-lhe uma última conferida. Isso pode acontecer em qualquer fase da vida. Aos vinte, quarenta ou aos dois anos de idade. Um dia, Glória conheceu uma menina de uns quatro anos e o seu olhar tinha a agudeza de uma velha de sessenta. Era grave, quase austero e firme. Pode-se mesmo dizer que ela possuía um olhar sábio, de velha dama. Glória por três noites, não esqueceu aquele olhar e muitas vezes, o tateou no escuro do quarto. Na sua investigação imaginativa, tentava encontrar um enredo para aquela insólita transformação. Precipício.
Envelhecemos diante do precipício e ao confirmamos nossas suspeitas de infância, que hermeticamente postas de lado durante a vida adulta, nos esquecemos de lembrar.
E como aquela menina, quatro anos, poderia já ter tido contato com a grave constatação da existência?
Não se sabe, ninguém sabe. Nem ela.
Glória esticou de novo o pescoço, tentando reagir aos corvos e aos pensamentos que grudavam em seu cérebro, como algas marinhas que se colam aos cascos dos navios afundados. Só queria ver os prédios do outro lado da janela. Ainda bem que deixou as janelas abertas, assim podia entrar essa brisa, que por si só, já era uma bondade divina. E Glória começou a agradecer. Por tudo. Pela brisa, pelo céu, pela janela aberta, pela cabeça que ainda funcionava, pelo sol, pelas nuvens, pelo rumor dos pássaros e a graça da mariposa que se pendurava na parede, como um quadro. O único quadro da casa de Glória. Agradeceu a Yemanjá, Mamãe Oxum, Papai Oxóssi, Nossa Senhora de Fátima, São Longuinho, os Três Reis Magos, Deus, Lackshimí, Chrisna, Ganesha e São Jorge. Santo Antônio, não, ora essa. Aí já seria hipocrisia. Tá bom, a Santo Antônio também. Obrigada.
E o pensamento voltou. Ele era assim: Ela estava muito confiante de que alguém viria lhe socorrer, afinal, morava num prédio com quatro blocos e tinha feito algumas amizades nesse tempo todo. Além disso, havia Dona Míriam e os funcionários, que sentiriam a sua falta e não poderiam deixar de perguntar sobre o seu sumiço. Como boa síndica, Dona Míriam era ligadíssima em todos os moradores e queria o bem-estar geral, acima de tudo. Apesar do quê, sua raiva pelo ataque de Glória, depois do fatídico episódio com o porteiro, poderia ter ganho proporções maiores do que imaginava. E, havia ainda, uma questão mais profunda e mais terrível do que tudo isso. Se Glória estava presa num único dia que retornava, sempre retornava pra ser ainda o mesmo dia, como alguém sentiria a sua falta? E ouvindo os fogos de artifícios e as comemorações que insistiam em ecoar pelo apartamento, Glória confirmava aterrada que os dias não estavam passando, mesmo.
E então começou a crise nervosa.
terça-feira, 21 de abril de 2009
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