sábado, 13 de dezembro de 2008

LÚCIO

Glória diz:
"Como chegar em casa, tarde da noite e sorrir ainda, mesmo que seja minimamente, sorriso oblíquo pro gato que ronrona a seus pés?
Chegar e encarar os cacos de vidro da noite anterior, espalhados pelo chão da cozinha, ameaçador. Todo aquele sal, eu não consegui jogar fora.
Toda aquela trilha de sal...
Para comer, um resto de sanduíche da padaria Real, metade dele, já mordido, esperando ansiosamente pra ser devorado.
Olhar os cacos de vidro enquanto eu como o pão velho. Orégano de ontem.
Olhar os cacos de vidro e todo aquele sal.
São duas da manhã, diz Glória pra si mesma enquanto observa o cuco da cozinha.
Um pseudo cuco.
Um relógio de parede onde está pintado um passarinho gritando.
Cacos, pseudo cuco, sanduíche antigo, e a consciência.
Consciência desmoralizante.
Saber que se vive em um corpo que se pretendia outro e mais ameno.
Ser uma pessoa mais amena, polida, desgraçadamente calma.
Ao invés disso, essa avalanche hormonal.
Quando Glória chegou ao trabalho já era de tardinha pois seu "expediente" começa às 18:00hs. No caminho, colocou a mão no coração, batia rápido e os braços pesavam-lhe a alma.
Estava com o corpo moído e o coração também.
Mais tarde ainda teria entrevistas, apresentações, enfim uma sucessão de trabalhos que exigiam a sua integridade física.
Glória temeu: É hoje o dia da minha morte.
Juntando todas as peças de um quebra-cabeças recente, começou a perceber que existiam avisos que só confirmavam isso, na noite anterior tinha quebrado o vidro de sal e ainda esqueceu o gás ligado, foi dormir com todo aquele gás escapando, só não morreu porque sentiu sede e foi a água quem a salvou. Levantou vagarosamente da cama, quase uma morta viva e foi até a cozinha no escuro mesmo. Ao abrir a porta do quarto já sentiu o cheiro. Um cheiro terrível de gás inundava a casa.
Quando chegou na cozinha já não lhe era possível respirar. Prendeu o fôlego e desligou o gás, olhou ao redor, todas as janelas fechadas, não entrava um único ar. A noite estava fria, então teve todo o cuidado de fechar todas as janelas, uma por uma, ela morava em um apartamento cheio de janelas, tão bonitas, compridas e emendadas, tinha ido morar ali justamente por causa delas.
~Depois de abrir todas e respirar o ar de fora, Glória tomou um merecido banho quente.
O vidro quebrado e todo aquele sal continuava espalhado no chão da cozinha, depois do banho ela pegou a vassoura e juntou, fez um montinho de cacos e sal, mas não teve disposição para jogar no lixo. Aquilo se transformou em uma instalação. Sim, uma obra de arte contemporânea no centro de sua cozinha. Aquilo substituia de alguma maneira o Pato. Vestino, o pato de vidro do antiquário, que Glória não conseguiu comprar mesmo depois de tanta insistência e que custava toda a sua vida.
O montinho de sal e vidro também era algo assim como o Pato; um reflexo no lago azul arredondando pro verde. Ela também poderia se ver ali, toda uma sinopse.
Refletiu no banho sobre aquele quase último dia e pensou que se tivesse morrido ali, nessa quinta-feira de lua cheia e fria não teria tido tempo de viajar, de conhecer Berlim, Paris ou Moscou, coisa que ainda faria um dia, e morreria cansada, borocoxô, não saberia o gosto que possuia a carambola, pois ainda não tinha tido a meninice de experimentar carambola, não teria escrito um livro, não teria lido Vidas Secas ou Ulisses do Joyce, teria deixado vários trabalhos pela metade, não teria falado com Verediana, sua amiga de infância sobre os últimos acontecimentos, não teria dirigido uma peça com quatro atores, chamada "Enfizema", não teria ido com seus alunos ao Museu da Língua Portuguesa, não conheceria seu novo professor de francês, e o pior e mais grave, não teria amado ninguém. Só uma pessoa, mesmo assim pela metade, pois o namoro desfez-se antes de completar-se.
Não teria tomado o seu último banho de mar e agradecido a Yemanjá pelo ano, pelos anos ou mamãe Oxum pelas vidas, todas elas vividas como esses cacos e esse sal exposto no canto da cozinha. Vidas de outras pessoas, desenhadas no palco, ou em folhas de guardanapo de uma cefeteria qualquer.
Se Glória tivesse morrido ontem, não teria feito a mínima diferença pois a morte é isso, não faz a menor diferença, só para os amigos. Os amigos sentem. Parente, não.
O parente fica aliviado daquela incumbência de amar, de fraternidade, o amigo é fraterno sem consciência ou esforço, sem agressão, ele é sempre um vocacionado pro amor.
Glória não teria dado essa entrevista de rádio, que deu hoje, e isso teria sido até um alívio, um peso a menos, pois que falar sempre massacra a coisa dita.
Depois desse banho e já no dia seguinte, no ônibus, indo pro trabalho às seis da tarde, com os braços pesados, Glória percebeu que a morte continuava a espreitar, pois que não a largaria facilmente, seria assim até o fim, essa convivência diária, e os braços pesando e a palpitação aumentando segundo seu pânico. Entendeu que aquele era o seu último dia.
Não foi. Chegou ao trabalho esticando os braços e avisando a todos muito grave e solene:
"Talvez hoje eu morra. Terei muito provavelmente um ataque do coração" um colega que passava, sem dar-lhe muita atenção sentenciou: "Vá na farmácia e tire a sua pressão."
O outro: "Quando é ataque cardíaco a dor não é nos dois braços e sim apenas no do lado esquerdo."
A mulher de batom rosa: "Você é muito jovem, raríssimo alguém da sua idade morrer do coração... Mas pode acontecer. Nunca se sabe." O outro sem tirar os olhos do relatório e que também passava, enfileirou as perguntas distraídamente:
"Existem casos na familía? É hiper tensa? Já teve problemas no coração? Fez exames recentemente?"
Diante das respostas negativas, sentenciou ainda concentrado nos relatórios:
"É bom verificar, é bom verificar."
Diante de todas aquelas intervenções, só lhe restou ir até a farmácia e tirar a pressão.
Solitária em uma máquina de tirar pressão e que esmagava friamente seus finos bracinhos, Glória ouviu a determinação robótica:
"Não foi possível nenhum resultado, pouca informação para concluirmos sua pressão. Repetir a operação, mais uma vez.
Ela comprou outra fichinha e ouviu a mesma coisa umas cinco vezes. De quem era aquela voz?
Uma mulher foi lá e gravou aquilo? Como o computador chegou naquela voz específica? Ele tem memória emotiva?
Glória foi comer um sanduíche ainda no intervalo do expediente e enquanto comia um pastel integral, chorou. Tocava uma música da sua adolescência dentro da lanchonete e naquele moemento ela sentiu fundo aquela despedida. Mesmo cansada e esmagada dentro de suas obrigações diária, Glória colecionava algumas recordações que faziam lembrar de uma época ensolarada e boa. Lembrou de momentos mais amenos de sua vida, onde ainda não tinha dores no braço que lembravam ataques cardíacos ou cacos de vidro no chão da cozinha e sal.
Teve vontade de pisar na grama, de dar um mergulho em Ipanema, em comer sundae com castanha e cereja e ir ao cinema ver "A rosa púrpura do Cairo".
"Se eu morresse hoje ou amanhã ou mesmo naquela semana, não daria tempo de fazer nada disso". Então depois de enxugar as lágrimas e pagar a sua conta, Glória pensou no que era fundamental fazer antes de morrer. Ao subir a ladeira encontrou um amigo de sua terra natal e que conhecia há muito tempo. Ele era ator e iria se apresentar logo mais no teatro. De imediato, ele a convidou para irem juntos depois do trabalho em uma apresentação do Lucinho, amigo em comum de ambos - veio um flash na cabeça de Glória, um relâmpago, onde passava os melhores momentos de sua convivência com Lucinho: perdidos no Sana, bêbados; ela nervosa antes de entrar em cena pela primeira vez e ele super tranquilo beijando a loirona gostosa na coxia, São Tomé da Letras, Visconde de Mauá, eu e o Lucinho vimos o sol rodar, suspirava internamente.
Se despediu dizendo que provavelmente não poderia ir, pois tinha trabalhos pra entregar e uma entrevista numa rádio de madrugada para divulgar a empresa. Se despediram e Glória encaminhou-se para o trabalho com os braços menos pesados.
Enquanto subia a ladeira, tentava reconstruir o pensamento sobre as coisas fundamentais a fazer antes de morrer, sem perceber que o destino lhe respondera tão delicadamente:
Ver os amigos.