segunda-feira, 20 de abril de 2009

O GAGO_DONA ILHA

Logo agora que o sol reflete seus últimos raios nas janelas do edifício da frente e brilha no horizonte o vermelho radioso, veemente, já sumindo, despedindo-se dos prédios – assombrava até este instante, três andares integrais com seu vermeho alaranjado - e agora, diante de seu movimento de queda, só restam dois andares, retornando o olhar somente um e, enfim, sumiu. Acabou. Com muito otimismo e algum esforço, assim, comprimindo um pouco os olhos, Glória poderia até enxergar os resquíscios de sua despedida, na lateral do prédio acima, ainda em construção, iluminando – mas muito sutilmente – seus andaimes. Junto com a chegada da noite, nuvens espessas, pesadas, vestindo trajes de gala cinza-escuro, se aproximam portentosas e solenes, anunciando a chuva. Entre as variações de cinza, alguns mais claros e mais amenos, invadem o conjunto alguns clarões, que esparsos, iluminam essa condensação de nuvens. E era ali, que Glória fixava o olhar, como se vislumbrasse uma trégua. As nuvens deslizavam com a imponência das passarelas, o mesmo ar distante e inatingível da manequim, exibindo seus diferentes tons e formatos, e num vagar cauteloso, lúgubre, como que reverenciando a implacável Onisciência do infinito. Devagarzinho, elas chegam até Glória, que continua concentrada no único clarão visível, uma bolinha semi-aberta e já partindo. Entre as nuvens mais ásperas e duras em seu cinza lúgubre, um leve tom de rosa claro desabrochava no meio delas, dentro da fenda. Glória segurou-se nessa fenda o quanto pode, como se esse risco luminoso fosse a corda em que o equilibrista se move e que seguindo adiante some, engolido pelo mistério do circo. Ou como se fisgasse o único peixe vivo de uma lagoa infectada.
E agora isso, as nuvens negras estão devorando a nesga do céu. Nada de tréguas. O soluço irrompe, quinze para as sete e ele é pontual. Glória sente uma estranha pontada e aperta contra o peito as mãos exangues. Logo agora, Doda – O Gago, aperta a campainha. Glória faz pose de sensata e segura um livro. Sim, assim que ele for embora, tudo voltará ao normal. E pensando bem, talvez não seja má idéia pedir-lhe para retirar-me daqui de dentro. Não. Isso iria lhe parecer por demais espantoso, uma piada de mau-gosto e poderia até, no pior dos casos, insinuar um vaticínio fatal. “Glória teve um acesso de insanidade mental, insanidade mental, pois sim.” E logo depois, eis a síndica aqui dentro, no meio da sala, com aquele humor imprevisível e a costumeira disposição dionísiaca em arrancar paredes. Não, nada disso, isso beiraria o limite do suportável. Era melhor ficar quieta, bem quieta. Fingir naturalidade. Estou afundada neste sofá, mas é por pouco tempo, claro. Óbvio. É Ó-b-v-i-o!

– P-p-p-osso e-entrar? – murmurou a voz do outro lado da porta.
– Claro Doda, estou com uma dor de coluna terrível e preciso ficar sentada, mas entre.
– É-é-é q-que a p-porta e-estava a-aberta e- e-e-eu...
– Sim, sim, eu deixei a porta aberta, claro, você não vinha?
– É-é-é v-v-verdade.

Meu Deus, isso demoraria horas, o pior era a vontade que Glória sentia de rir toda vez que ele se esforçava para engatar a primeira e prosseguir. Era a luta quase inglória pela comunicação. A palavra que não vinha, o sufoco em caçá-la, correr muito, o fôlego já no limite, enlaçá-la à força, para só depois desferir-lhe o golpe final. Lembrou-se ali naquele instante de Dona Edith José e seu embate com a carne, o sacrifício diante da tremedeira toda – resultado da cirurgia do coração, erro médico, ela repetia – e o caminho tortuoso do prato até a boca, para finalmente ser vencida pela avidez dos dentes – não tão ávidos assim – e cair direto no estômago de Dona Edith.
Doda e Dona Edith José Fernandes Coelho: a luta constante, exposta aos olhares alheios, às piscadelas e tapinhas nas costas e que atravancava o apetite e a fala, impossibilitando assim, os momentos triviais da facilidade, do repouso. Meu Deus, isso era torturante demais, mesmo para Glória e ela queria mostrar-se solidária, queria inclusive, ajudá-lo a desferir as palavras. Estava agora, como uma professora de primário, falando junto com o homem. Sem som, apenas seus lábios se mexiam enquanto ele tentava deslanchar as frases. Doda fingiu que não percebia. Mas percebeu tudo. Não queria constrangê-la e olhou pra baixo.

– Doda, é só ir ao banheiro retirar o chuveiro antigo e colocar o novo, que está dentro da estante, à direita. A escada está no quarto dos fundos. Tudo bem? Estou sentindo-me mal, não posso sair daqui. Recomendações médicas.
– C-c-claro G-g-glória. E-e-eu vou pegar a-a-a e-escada.
– Faça isso Doda. Está atrás das malas.
– T-t-t-tá bom.

Sentia-se ainda mais sufocada diante da presença de Doda. Ele parecia uma criança, tinha o
ar vago e cansado, seus olhos não pareciam com os de um adulto. Parecia assustado e pequenino diante de sua própria aflição. Será que Glória enganava-se? Seria ele um verdadeiro canalha dentro de suas quatro paredes ordinárias? Enganava a mulher, batia nos filhos e ainda assediava a filha de doze anos do cunhado? Prefiro seguir acreditando que ele é a única pessoa pura do planeta Terra. E vencida pela poltrona movediça, Glória tentava concentrar-se no livro que tinha em suas mãos: “Saúde Persecutória”.

– Ô-ô-ô G-glória! Você tem uma c-c-chave de f-f-fenda?
– Sim, está na caixa de ferramentas perto da escada.
– Já p-p-procurei ali d-d-dentro e não a-a-achei.
– Então... Bom, a única chance é que esteja dentro da gaveta, aqui Doda, na mesa do corredor.

Que coisa lastimável, ficar berrando feito uma galicha choca e ainda por cima sem nenhum motivo plausível para legitimar a imobilidade. Realmente eu consegui ultrapassar os limites permitidos do ridículo. Ele deve estar pensando: que mulherzinha mais folgada, nem pra levantar do sofá e ainda queixando-se de dor na coluna! Por que eu não lhe contei a verdade? Que fui abduzida pelo sofá? Seria mais honesto e mais crível. Preciso me acalmar e o pior é que meu floral de Bach está no quarto e os calmantes na cozinha.

– Doda, você poderia fazer um favor pra mim? Pegar meu floral de Bach...

Assim que ela falou percebeu a gafe, mas já era tarde. Lá vinha ele em passos apopléticos com uma cara verde-musgo. Por favor, Glória, volte pra terra imediatamente, é uma ordem!

– O-o-o q-q-eu foi s-s-senhora?
– Não... É q-q-que e--eu...

Pronto. Agora o círculo dos horrores completou-se. Estou encarcerada em um dia que retorna invariavelmente, fui abduzida por um sofá idiota e ainda estou gaga. É uma conjuntura realmente maravilhosa. Serão os astros? Algum retorno de algum Saturno? Eu só espero que não entre nessa casa, nenhum cego pelos próximos quinze anos.

– O-o-o q-que a s-s-senhora p-perguntou?
– N-n-nada. Nada. Está t-t-tudo bem.
– Eu n-n-não achei a cha-a-a-a-ve de fenda.
– T-t-tá bom, ótimo. Você não está achando a chave de fenda e eu não vou sair daqui n-n-nunca mais e a-a-ainda...
– N-n-nossa, está tão s-s-sério a-a-assim, s-senhora Gló...
– Doda, por favor, você p-p-pode buscar um remédio pra mim? Está na cozinha em cima da p-pia.
– P-p-p-osso s-s-sim.
– O-o-obrigada.
– É-é-é esse a-a-aqui?
– É. M-m-muito obrigada, Doda. Ai meu Deus c-c-como é que eu v-v-vou tomar?
– E-e-eu b-b-busco um c-c-copo d’agua.
– B-b-brilhante Doda.

Glória toma o remédio e tenta levantar-se do sofá, como se nada tivesse acontecido. Doda fica parado de frente pra ela e de boca aberta, sem compreender. Ao tentar se equilibrar, ela tomba e cai de volta.

– N-n-não quer que eu c-c-chame....
– N-n-não. Está t-t-tudo bem. O remédio demora mesmo a f-f-fazer efeito.
– P-p-posso te a-a-judar a levantar d-d-de n-n-novo.
– Não. Você já me a-a-ajudou muito trazendo o remédio. Doda, e-e-eu lembrei onde está a-a-a chave de f-f-fenda. Ela está no e-e-escritório. Esqueci lá, o-o-ntem.
– A-a-ah, t-t-á bom.

Por que isso está acontecendo? Esse homem tem que ir embora imediatamente daqui e ninguém poderá entrar nessa casa, nunca mais. Deve ser algum distúrbio sei lá, meu organismo está tão vulnerável que qualquer coisa me contamina. Será que pensamentos pegam? Quais serão os pensamentos de Doda? O pensamento dele também é gago?
Ninguém poderá entrar. Nunca mais. Entendi, tudo. A c-c-c-onspiração. Sempre achei isso, que eu somava os defeitos dos outros. P-p-p-principalmente os dos meus p-pais. M-mas agora também já é-é-é demais. Ele precisa colocar logo esse chu-u-u-veiro e cair fora, antes que uma desgraça maior aconteça.

– E-e-está aqui mesmo D-d-ona G-glória!
– Ó-ó-ó-timo, Doda. M-m-mãos à obra!

Enquanto Doda está no banheiro, Glória tenta levantar-se do sofá mais uma vez. E tomba. E tomba. E tomba. O que aconteceu? Teria ficado paraplégica sem nenhum acidente? Foi porque desejou a doença? Mas a doença era uma coisa boba, febre, apendicite, algo assim que possibilitasse uma parada. Um olhar-paredes inofensivo. Sem exigências de maestrias ou virtuosismos. Nem aperfeiçoamento de enredo ou vocabulário. O descanso só permitido pela licença médica. Mãe! Pai! Por que eu fiquei assim?

– Já t-t-roquei dona G-glória. E-e-está funcionando que é uma b-beleza.
– Q-que bom. Fico m-muito c-c-ontente.
– E-e-estou p-p-preocupado com a senhora d-dona Glória.
– Não f-fique. O remédio já está f-fazendo efeito e l-logo mais e-e-estarei ó-ótima. Pode ir Doda e t-toma aqui.
– N-não p-precisa, n-não. A s-senhora me d-d-eu um s-som.
– Ah, alías ele e-e-está f-funcionando?
– Ôo! Uma m-maravilha!
– Q-que bom! E-estava com ele parado a-a-anos aqui em c-casa.
– E-e-era só um fiozinho d-d-de nada.
– F-f-ico feliz. M-mas toma aqui pra a-a-ajudar.
– Não p-p-precisa. Então t--tá bom, eu a-a-ceito.

O telefone toca. Doda, vendo Glória imobilizada, corre para atender, agaixa-se diante do telefone.

– N-n-não atenda!
– T-tá bom – ele levanta.
– Não. Pode atender.
– T-t-tá bom. – retorna a agaixar.
– N-n-não!
– T-tudo b-bem – levanta
– É melhor a-a-atender sim.
– P-p-p-parou.
– T-tudo bem.
– J-j-já vou indo, e-então.
– Tchau, Doda. O-o-brigada.

A porta da sala bate. Que alívio. Agora eu já posso voltar a f-f-falar normalmente. Eu j-j-já sei o que foi isso. E-e-eu quis ser solidária. Ajudá-lo a fisgar as palavras e f-f-fui eu quem acabou sendo f-f-fisgada. Olha pra você, G-g-glória! Sentada nesse sofá e de vestido vermelho, apodrecendo nesse sofá. Esfarelando j-j-junto com ele. U-uma coisa só. E eu procurando as outras rochas. A-a-as rochas de L’Estanque, quadro do Cé-é-ézanne. E quando as encontro, elas são gagas.
Escurece cada vez mais profundamente. O soluço intensifica-se. Glória está afundada no sofá e com um soluço violento. Jeremias retorna do quarto ao perceber que o homem saíra. Fiquei tão abismada em seu processo doloroso de atrair as palavras que lhes viravam a face, que também eu lhes virei a face. E agora o maldito soluço! Jeremais sobe no sofá e olha para Glória. Não me olhe assim, seu pequeno Nada. Ele continua olhando-a fixamente e ela se vê refletida em seus olhos amendoados. Isso lhe causa uma dor terrível e uma cólica renal. Ele insiste ainda por algum tempo e ela permanece sobre seus cuidados.
Meu Deus, eu sou esse gato.
Compreendo esse olhar mais do que essas nuvens no céu e essa cólica. Eu sei o que ele quer dizer, o que ele está dizendo, é tão possível nosso diálogo! É tão natural. Por que com os outros não é assim? E por que eu, Glória, do alto dos meus vinte e nove anos – ou serão mais? – permaneço aqui em cima, no vigésimo andar, há anos?
Sim, há anos estou aqui, gaga e míope, olhando de cima, recusando convites e quando os aceito é para ficar esquecida no fundo da festa, espremida num sorriso amargo, nada reconfortante. Ah, chegar em casa depois de uma dessas festas! Tanta gente inteligente, tantos brindes, tantos cachecóis e os olhares murchos, desintegrando-se, ou animados quem sabe, por uma dessas químicas revitalizantes.
É abominável como venho me falsificando há tanto tempo. Tenho vontade de vomitar. Eu chego em casa, olho a casa, enfim sós. Enfim. Retornam as sólidas cólicas, essas sim, reconfortantes, quase mineirais. E os movimentos simulados repetindo-se, arrastando-se pela casa atrás de mim, cauda de dragão, espessa sombra. Um cavalheirismo oco, sombrio, repousado, o desses movimentos. A glória da casa vazia. Um brinde! Clap,clap,clap – são palmas. Obrigada. Não tem de quê. Merci beacoup. Au revoir. Os movimentos movediços tão adequados – frequentemente adequados, até nobres, pode-se dizer assim? – só que agora entre quatro paredes ordinárias. Muito compensadoras, diga-se de passagem. Um bloco de concreto admirável. Poderia foder com este bloco de concreto tranquilamente, gozar em cima dele, esmagá-lo no meu amor. Tanto amor eu tenho. E guardei pra ti, paredes infinitas, intransitáveis. O que há por trás de tantas paredes? Mais paredes? Outras gargalhadas? Vinhos melhores? Novas músicas? E então, retiro a maquiagem.
E sufoco, ao relembrar as gargalhadas falsas, a sedução barata, os ataques de intelligentzia. É terrível. Ver passar a vida e esforçando-se por agradar intermitantemente. Sem um único intervalo. Como se quando fechassem a cortina, o espetáculo continuasse ainda com mais vigor. Mais pungência. Como se isso fosse verdadeiro e até viril. Ou mesmo necessário.
Como é cansativo. Como é barato. Não se dar a chance de um mísero suspiro sem pingar-lhe junto um punhado de virtude. Nunca desfazendo-se da pose. Nunca deixando-se entrever a queda. Puro perfume. Puro artifício. Uma guerra vencida.
Derrota absoluta. Perda total. Nenhuma lesão, escoriações leves e perda.
Total.
Nem na doença. Nem na morte. Talvez, só no nascimento tenha existido um gesto verdadeiro. Único e logo esquecido. E em alguma parte remota da infância. Madrugadas acesas entre os quatro irmãos. Confissões leves, medo de elevador. Alguma coisa nasceu em determinado momento. Alguma coisa que reluzia e não valia um tostão.
E garrafas de vinho são esvasiadas na noite que brilha, casais se formam, brigas esquentam e mais nada. A festa logo mais acaba, é só clarear o dia. Foi tudo em vão? E por que voltar e voltar a sair? Há sempre uma esperança. A esperança utópica do encontro.
Chego em casa e relembro, estou relembrando e retirando a maquiagem, tudo junto assim, é possível fazer duas coisas tão complexas ao mesmo tempo? Relembrar e retirar a maquiagem? Não, não é. Olha que porcaria, sujei todo o box. Relembro cada detalhe irremovível da noite, as frases feitas, algumas máximas, lâmpejos sagazes e até alguma espirituosidade e mais adiante, agressiva depois do terceiro copo, estilhaço no meio da sala uma palavra ferina, olhar de garça ultrajada, medidas provisórias. Escureço aos poucos, conforme os olhares vão fugindo e começo a me tornar definitivamente mordaz.
E mato. E roubo. E incendeio. Firo com a ponta da lâmina, fazendo pequenos furinhos em volta do glóbulo ócular. Até desmaiar. Sou o cão da noite, esmagando os cacos de vidro e agitando o espelho em uma das mãos, até enlaçar uma vítima e jogar nela todas as minhas frustrações irremediáveis.
É uma violência, sair de casa. Sim, eu admito. Para mim, para os outros, e para os Deuses. E é por isso que estou sendo engolida, devorada por esse sofá. Uma morta viva. Sanguessuga existencial. Vomitando palavras.
Do outro lado do espelho, e não menos terrível está a bondade humana. Eu quis ajudar Doda, achando-me superior, como se eu estivesse acima dele, só porque consigo – conseguia – murmurar cinco ou seis palavras sem parar. Castigo dos Deuses, sempre implacáveis. Tornar-se-á gaga também.
E Doda nem adivinhava o quão afundada, Glória estava.