domingo, 28 de dezembro de 2008

YEMANJÁ

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência! É isso o que Glória quer dizer hoje. Ela não vai falar sobre os seus dias ensolarados e tão prosaicos no Rio de Janeiro pois que isso não dá uma história. Se ela jogou I Ching interrogação - não acho a interrogação desse lap top alheio, quer dizer, acho, mas não atinjo - Sim, Glória jogou. Estava na praia diante da barraquinha de picolé, ao lado do tio Souza que vendia suas cervejas geladinhas, na praia só tinha bicha e sapatão e o mar estava bravo. Glória pensava: fico ou saio, fico ou saio, fico ou saio e o I Ching ali na bolsa descansando, pegando um mormacinho.
Passou. A vontade passou. Glória entrou no mar e Yemanjá aliviou a tensão, Glória ficou mais uma hora, sem beber, sem fumar e sem contar pro vendedor de queijo coalho toda a sua trajetória pessoal e pedir uma opinião sobre que caminho seguir. Não. Glória não abriu a boca. Como isso aconteceu eu não sei dizer. Para evitar qualquer mal entendido levou um livro e leu sobre Pedro Álvares Cabral. Glória está em um momento patriótico.
A noite é que foram elas. Depois de ir ao teatro, se viu na fila de uma boite com uns amigos, espirrava e avistou ao longe um ex namorado maníaco-depressivo e psicótico. Ficar ou ir embora, ficar ou ir embora interrogação. Ah, não teve dúvidas: abriu o I Ching ali mesmo, na fila imensa, e saiu de novo: "A RETIRADA", Glória nem leu o resto, entendeu. Seus amigos viram e quiseram jogar também. Saiu pra todos: "A Retirada", resultado, Glória foi embora e levou todo pessoal com ela. Foram tomar um chopp no Baixo Gávea. No caminho, pensou se seu livrinho da sorte não estaria viciado na página: " A RETIRADA". interrogação.
No final das contas, todos, dos mais crédulos aos mais ignorantes, dos mais bobos aos mais inteligentes, dos mais rígidos aos mais flexíveis, acreditam em Anjos da Guarda. A humanidade quer ser salva. A humanidade precisa de um Deus. Todos querem ser guiados, acolhidos, amparados. E nisso não há nenhuma vergonha ou demérito. É nossa condição humana. Uma inevitabilidade ancorada na nossa necessidade em sermos aceitos e em acertarmos o alvo. Que alvo. O seu. O meu. O nosso alvo de cada dia. A vida é curta e não queremos errar. Seria um luxo. Errar. Nosso desejo em atingir a meta é implacável, além do medo desmedido e incofessável de voltarmos pra casa sozinhos.
Mas, apesar de tudo isso e por tudo isso: é preciso errar. É necessário.
Glória tem consciência disso, mas sua urgência com a vida é maior e estrangula qualquer distração. No restaurante, uma dor no pescoço a distrai dos amigos e da multidão de rostos bronzeados. O Rio fervia e Glória sentia-se tão só. Com tanta dor. Girava o pescoço, se auto-massageava, mas o peso dos séculos e séculos se protegendo da vida, dos erros e das mancadas, estavam ali, acocorados em sua nuca. Até uma onça já havia pousado ali. Numa mordida. O mundo morava ali e isso era bom, pois que a alimentava, e ruim, pois que a consumia. O mundo todo se acutovelando para dar uma espiada em sua dor, querendo proteção e pedindo esmola. Todos os seus antepassados, toda uma memória. Comeu sua fatia de pizza e bebeu um suco de laranja. Brindaram. Era final de ano. Algo acabava e dava espaço para a folhinha em branco e suspensa. Glória viu um homem bonito na sua frente. Ele era charmoso, barbudo e usava óculos e boné. Glória queria casar com ele. Gostava dessa combinação toda. Havia também um hipopótamo em sua blusa e esse era um dos bichos que ela mais gostava. Depois de cavalo, garça, gato e jacaré. Ele era artista de televisão. Se Glória casasse com ele seria uma aventura, como num filme. Seria um pulo do marrom ao violeta. Purpúreo. A vida seria purpúrea. O ano estava acabando, só Glória não passava, só Glória não acabava. Então, já no caminho de volta, olhando pela janela do ônibus, ela pensou: E se a vida é na verdade, isso aqui. Esse nada. Esse engarrafamento. Essa madrugada estéril e volátil. Pessoas que eu conheci e nunca mais verei, nem sei seus nomes, informações dadas no ponto de ônibus, a conversa cotidiana com o motorista de táxi. A vida não é um triller nos moldes de um "O Poderoso Chefão", talvez eu não me case com o Al Pacino ou com o Robert De Niro, e nem possui a trilha de Mahler em "Morte em Veneza", ela não está sendo roteirizada com a graça e tragicidade de um Woody Allen e nem com o instinto de aventura de um Steven Spilberg. E se a vida maior, aquela por que tanto ansiamos é também essa que tão ásperamente negligenciamos, talvez aquela parte em que cochilamos é a verdadeira vida. A nossa ida à padaria. Aquilo que nos acontece nos intervalos entre uma coisa e outra.
Pode ser isso mesmo, Glória tremeu, pode ser que a vida maior não é a que acontece nos momentos grandiosos e sim, nesse momento aqui onde observo a cobradora e seu olhar resignado diante da madrugada carioca. Ou quando eu vejo a fachada antiga de um prédio e que me leva imediatamente pros dias ensolarados da infância, a rodinha de adolescentes puxando um fumo e rindo da minha passagem solitária, a comemoração do apartamento vizinho onde o casal dança trôpego e bêbado um bolero antigo e descompassado. O velho de bigodes platinados ajuda agora a esposa a subir no ônibus, segura suas mãos enquanto ela tenta se equilibrar no primeiro degrau, na outra mão está seu sapatinho de fita laranja, comprado hoje à tarde em uma liquidação no Largo do Machado, onde fora acompanhada de sua netinha Bianca dona de um olhar de criança fatigada e desmerecida, dona de uma corcunda precoce. A gota de suor do garçom que entrou dentro do seu olho no exato momento em que nos servia a fatia de Marguerita. A própria Marguerita, cheia de Muzzarela e manjericão. O abraço afetuoso do garçom Oswaldo que me reconheceu mesmo depois de tantos anos, quando eu ainda era uma menina simpática e magrela moradora do Leblon. E se a vida, a maior, a mais importante e profunda não se dá nas grandes escolhas e sim no meio delas, entre elas, em sua fumaça.
Interrogação.
Glória não queria errar, isso era para os outros, os bobos, os que gostam de perder tempo, os que não desejam algo "maior" em suas trajetórias.
"A RETIRADA"
Depois de pagar a conta, cada um seguiu seu rumo para casa.
De ônibus.
E Glória passou o resto da noite em comunidades virtuais. Sem erro. Sem nenhum risco.