domingo, 14 de dezembro de 2008

O RATINHO ARTISTA

Indiretas e diretas. Ele disse: "Existem agressões diretas e indiretas" depois de esbofeteá-la na cara. Acho que ele foi bem direto, não foi? Prefiro então as agressões indiretas, elas doem menos e não deixam marcas, refletiu Glória.
E agora para se vingar das possíveis agressões indiretas que ele contabilizava em sua infindável lista imaginária, resolveu solucionar a questão metendo a porrada? Achei que eu fazia teatro e não jiu jitsu.
Existem ratinhos e ratazanas um pouco menos explícitas e simplórias.
Ele ferve em raiva, ele tem muita raiva dentro dele, mas de manhã colhe batatas e cenouras em seu sítio angelical. Que ele construiu com as próprias mãos. Quanta nobreza, que ratinho mais engenhoso e trabalhador! Aplausos... Clap, clap, clap. Outro dia mandou Glória tomar no cu mais de quinze vezes, uma espécie de obsessão com o cu, esse orifício tão enigmático. Quase uma divindade pra ele, tamanha repetição da palavra! Acho que ele queria que baixasse ali a própria entidade do ânus. Glória nunca tinha ouvido essa palavra tantas vezes, foi dormir e sonhou com ele, o tão proclamado cu. Esse "ser' solitário, omisso e que se tornou palavrão por ser nossa via mais direta de explosão, esse orifício, na extremidade terminal do intestino, por onde saem os excrementos. É melhor pensarmos não possuir tal nojura! Nada contra os viados, mas uma pessoa que manda a outra tomar no cu quinze vezes está precisando dar algo, não?
Ele é um artista. Tão amável e sincero quando esbofeteia atrizes cadelas como Glória, é uma raiva de mulher que esse mundo tem que chega a ser engraçado. Ele faz tudo pela arte, chega cedo no teatro, prega os fios, carrega cenário, sua a camisa e se mostra sempre muito eficiente e disponível para o trabalho braçal. Ele faz tudo pela arte. Até esbofetear pra ele é um gesto muito digno e necessário, pois que tapas, chutes, joelhadas e puxadas de cabelo fazem parte de nossa chamada "Arte Teatral". Tudo pela arte.
Ele nunca erra. Está acima do bem e do mal pois teve uma infância humilde e ajuda os pobres, além de ter horta, galinhas e cachorros mancos, cegos e surdos. Ele é definitivamente uma pessoa acima de qualquer suspeita, planta seu feijãozinho com as próprias mãos e leva ervas e ovos fresquinhos do cu da galinha, olha o cu aí de novo, não estou dizendo? Vocês devem conhecer um sujeito como esse, eles se escondem atrás da cordialidade humana e da bondade para com os outros, tem um ar humilde e um olhar de cão sem dono. Cuidado meninas, quando virem um sujeito assim, fujam: "Run Forrest, run" , "Corra Lola, corra". E se ainda o sujeito tiver horta em casa, é sinal vermelho na hora, só falta morar com a mãe, aí é melhor matar. Nem precisa perguntar o signo, fazer a numerologia porque o bicho é complicado e neurastênico. Esse, por exemplo, não oferece risco nenhum porque gosta da fruta mesmo, e é um desses ratinhos artistas que não se enrustiu, pelo menos isso, assumiu alguma coisa em sua vida. Mas a raiva da mãe está ali e entre um gesto amável e outro ele esbofeteia uma atriz que está atrapalhando o seu caminho. "Devia ter dado mais forte" ele disse olhando nos olhos de Glória. O foda de nascer mulher é isso, homens e mulheres foram criados por.... mulheres! Nasceram delas e cresceram e se tornaram pessoas traumatizadas por... elas. E quando a relação é mal resolvida e quase sempre ela é, eles querem meter a porrada em quem? Nas mulheres, claro. Por isso os crimes passionais, por exemplo, a mulher sofre quando leva um fora mas não joga ácido na cara do namorado por causa disso, né? Nascer mulher é saber que pra sobreviver tem que ser um pouco macho, pois o mundo VAI cobrar, Deus também deve ter tido uma mãe qualquer. É uma inevitabilidade a hostilidade do mundo em relação as mulheres, pois que mulher e mãe são quase a mesma coisa. Por essas e outras, nada de ballet ou jazz, nem sapateado que só mata baratas, tem é que fazer kung fu mesmo, vejam Glória, não fez kung fu e agora está em casa com uma compressa de água fria no rosto. Muito deprimente. O ratinho boxeador, leva todas as semanas hortaliças para as atrizes que tem filhos, pois essas ele não esbofeteia porque dão de mamar, viu como ele é cuidadoso?
Se ele achou que Glória lhe mandava indiretas agora ele vai saber muito bem o que era um direta no queixo, as palavras são as minhas melhores armas, Glória pensou.
Ele é tão generoso dentro de sua amável cordialidade com porteiros e manobristas, camareiras ou recepcionistas de elevadores. Socorro que o diga.
Eu nunca conheci alguém tão correto, pontual, trabalhador e que esbofeteia com tanta dignidade. Ao sair do teatro, o rosto de Glória ardia em brasas e ao reclamar sobre o excesso de agressividade em cena, ouviu do ratinho artista:
"Ah, não vem não, foi até leve, eu acho até que eu devia ter dado mais forte!"
Glória então, respondeu acuada: "Me dê um murro logo."
O ratinho artista sempre imerso em sua indiscutível nobreza e dignidade atacou: " Mas não dá pra eu fingir, vocês não me deixam entrar, o que eu posso fazer, vocês estão demais, eu não consigo entrar na cena."
Perplexa e abobada Glória refletiu: "Mas se foi ele quem ensaiou a cena assim (o ratinho artista além de ator-boxeador é diretor também) e sempre nos pediu mais explosão, mais densidade, justamente pra ele (o personagem) se sentir agredido e entrar..."
Mas depois concluiu com seus botões, ratinhos artistas são assim mesmo, pedem mais e quando damos, se apavoram e saem esbofeteando por aí.
Engraçado a carapuça que alguns artistas vestem de dedicados e sensíveis enquanto não passam de medrosos vocacionais.
De dentro do seu medo crescente de enfrentar Glória, ele a esbofeteia e assim, cala à sua maneira, qualquer revelação de coxas e pernas e seios que escapam. Ele a manda tomar no cu, mesmo sabendo que quem gosta de dar o cu é ele e não Glória.
Ela tentou se defender do ratinho artista: "Eu não entendo toda esssa sua agressividade comigo, eu não entendo o que eu fiz, às vezes me sinto culpada pensando: eu dou o meu sangue por essa peça e ele lida comigo como se eu estivesse contra."
O ratinho artista foi taxativo: "Há agressividades diretas e há agressividades indiretas."
Glória retornou: "Você já parou pra pensar que você pode estar equivocado quanto às agressividades indiretas?"
Nesse momento o ratinho calou-se como bom ratinho que é e foi... adivinhem, para onde?
Arrumar o cenário como um nobre artista operário e trabalhador. Coitado, trabalha tanto e essas cadelas ficam me dando indiretas em cena.
Glória temeu: "Será que vou chegar aos quarenta anos assim? Revidando as possíveis e talvez imaginárias agressões "indiretas" esbofeteando os atores em cena?"
Respirou fundo.
Era uma despedida. Conviver com a loucura e a histeria sempre foi o cotidiano de Glória, desde a infância, desde que se entende por gente. Mas, ela cresceu. Glória finalmente cresceu. E como crescer demora! E como crescer dói e rasga. Ainda durante a peça, essa peça em que atua e escreveu (talvez esse seja um dos ódios do ratinho operário, ele nunca escreveu uma linha e Glória ainda tão nova se arriscava a vomitar em palavras todas sua mazelas e anseios, por mais precárias e famintas que elas fossem, Glória enfrentava, nisso Glória não foi covarde, ela deixou-se Ser). Durante a peça e ainda no escuro, quando ninguém a enxergava, Glória chorou, mas não foi de tristeza, foi de alegria. "E eis-me inteira..." Lembrou o trecho do texto de Ana, protagonista da peça que retorna ao lar apenas para se despedir dele de vez e quase fica presa pra sempre.
Glória viu que aquilo ali, o seu entorno, o ratinho artista agressor, os outros - nem todos - os outros artistas agressores, eram todos eles uma saudade genuína de casa, da família, de...
Mamãe!! A castradora e dominante Mãe.
A rata mor.
Ali, com o rosto em brasas, Glória renunciou.
Enquanto Ana dizia:
"Amar na minha família é a porta de entrada pro sanatório. Você já atravessou essa porta?"
Não, Glória não queria atravessar essa porta e antes que fosse tarde, teria que sair. Teria que arrancar de dentro de si todos os artistas ratinhos que a seguiam em sua jornada tão propícia ao suicídio e à loucura. Era uma despedida e Glória chorava. Em cena.
Doi, doía, doíria muito arrancar os ratinhos que se alimentavam do gato recém nascido.
Seria praticamente uma cirurgia sem anestesia e talvez Glória fosse sofrer por um tempo indeterminado essa ausência, sofreria também de abstinência. Como uma drogada Glória sentiria falta desse tapa na cara, das joelhadas, das feridas, das discórdias, dos beliscões, dos arranhões, de toda essa hostilidade tão familiar.
Mas era inevitável a separação. Pois acontecera o milagre:
Glória crescera. E crescer é se libertar da família interna, do lar, dos ratinhos pais, mães, irmãos e tias, dessa tão conhecida crueldade, que te ofende passando a mão em sua cabeça, que te castra dizendo que é pro seu bem, todas as acusações que você não conhece a causa, é sempre um motivo invisível como o próprio ratinho operário disse: "agressões indiretas", é sempre um motivo abstrato o das suas falhas então você é agredida sem saber nem mesmo o por quê, fica trancafiada por meses, anos, a vida inteira, pagando por um crime que você desconhece, como 'O estrangeiro" de Camus levamos a vida assim muitas vezes sem percebermos.
Glória teria que se separar e toda separação acarreta uma dor imensa, inexplicável, profunda, olharia com amor todos esses bloqueios, boicotes, mordidas que a impediram de continuar mesmo continuando, sempre a duras penas, Glória teria que se despedir do que lhe era tão familiar: a loucura e o seu ambiente pesado e sufocante. Ela teria que saber deixar tudo isso pra trás, se despedir dos artistas sensíveis e tão criminosos que com sua pseudo honestidade e bofetões tentam tirar de você a única coisa que não é possível doar:
sua integridade física.