sábado, 18 de abril de 2009

Dona Edith José Fernades Coelho

Injustamente, que sei eu. Ou justamente agora o soluço recomeçou. Pontual, todo sábado quinze pras sete da noite ele vêm lhe visitar.
Glória senta-se de pernas cruzadas e categórica sobre o sofá esmaecido, que se esfarela aos poucos, esmagado pela assiduidade calculada, a rotina inalterável de um gato, sede onde Jeremias afia as garras, pronto para esmiuçar a noite. A mulher em cima do sofá, ela própria tão contrária a esse aspecto vacilante, senta-se finalmente muito organizada, tentando uma reconciliação consigo mesma, depois da manhã caótica, uma manhã de sábado que faliu completamente e levou consigo o início da tarde, agora restando pouquíssimo tempo para reconstruir o dia, o único dia da semana em que poderia ficar assim, boca meio aberta a olhar paredes e não ter idéia nenhuma sobre absolutamente nada ou qualquer obrigação doméstica. Isso de não haver nada com que se preocupar e toda a potência de um dia inteiro pela frente tão ensolarado e possível, era por demais irritante, qualquer desvio seria fatal e ela já sentia-se próxima da explosão. Ajeita a saia sobre os joelhos, quer ser feminina e ordeira, ou nem isso, ao menos justicável perante a existência. Se soubesse, se tivesse aprendido naquela época, faria tricô, algo que a colocaria numa dimensão mais serena e ao mesmo tempo estaria ocupada, absorvida em uma tarefa, como alguém que senta e espera sem aflições o dia passar em branco. Glória não deixa o dia passar em branco, nunca. Nem sabe o que é isso, mesmo convalescente, ela trabalha. Esse recente intervalo, tão obrigatoriamente instaurado – e só por isso possível – pelo buraco do dente e a dor da extração – só aconteceu por um feliz acaso e que mesmo assim, não foi total, pois ela é desde criança ensinada a não parar. Direita-sentido-volver. Muitas vezes no escuro da noite, Glória desejou secretamente a doença, coisa boba, uma febre ou apendicite e que poderia lhe reservar um tempo neutro, fora da rotina, e ainda por cima liberada da culpa pela licença médica. Não seria vagabundagem ou fuga, seria apenas uma distenção no tempo, uma necessária suspensão, momento curral ansiado por longos anos. Poderia ficar enfim meio tola, olhando para a parede e fazendo contas imaginárias. Gostaria de ter esse tempo para por exemplo, estudar astronomia, saber o nome de cada estrela da Via-láctea, a sequência dos planetas, reorganizar o céu em sua cabeça. Mas sempre quando a gripe ou a febre aparecia era por um tempo tão escasso e ficava tão ocupada com a doença e a culpa pela doença e a pressa para os sintomas desaparecerem logo, pelo amor de Deus, ninguém pode ficar doente nessa casa, quem procura acha, quem se entrega a doença acaba para todo o sempre enfermo, que tudo isso extinguia por completo qualquer ameaça de apaziguamento. Assim, nunca visitou seus escombros, tamanha a pressa em afastar-se do perigo, a areia movediça que a sugaria para toda a Eternidade. O medo de enfrentar o silêncio e de repente Ser o silêncio, entregar-se a ele, volupizar-se dentro dele. Não, viam nisso algo de proibido, quase criminoso. Sempre ocupada, era uma criança cheia de deveres e obrigações, vivendo sob um velado pacto familiar que exigia a excelência em tudo. Seus pais num entra-e-sai desenfreado, mãe viajando para fazer as matérias jornalísticas, pai trancando no escritório. Ela no círculo constante das atividades diárias ininterruptas, enlaçada pelo rigor minucioso da agenda, preparação para um futuro ainda distante.
E agora o sábado. Ela se encolhia toda ao primeiro prenúncio do raio solar que não pedia licença e entrava, meio folgado, meio esnobe, se derramando sobre a janela e tão pequena ela estava diante desse raio, que se tornara uma formiguinha, uma formiga com remelas e sinusite, uma formiga baixa, vulgar quase, diante do raio implacável do sábado majestoso. Sim, amanhecia já serva, já submissa e o resto do dia era tentar sobreviver a essa tirania invisível.
Um medo enorme desse sábado.
Criança independente que era, arrumava-se sozinha, estudava piano sem ninguém precisar pedir, lia, estudava as matérias escolares, tudo com a exigência da maestria. Com oito anos já fazia parte das audições musicais dos adultos, a única criança incluída no repertório e também foi a primeira a andar de ônibus sozinha para a escola. O cobrador intrigado quase foi grosso: “Onde está sua mãe, menina?” Tão miudinha era a garota. E na rua, todos comentavam e a davam como exemplo: “Viu, Sofia? Glória já faz tudo sozinha sem precisar da ajuda de ninguém.” Deus sabe a que custo. De noite, esmagada em pesadelos, tinha calafrios diante da casa vazia. Os pais sempre ausentes a liberaram da obrigação de ter horários regrados pra comer ou dormir. E a menina já não dormia ou comia. Glória não sabia onde segurar-se diante de tanta independência. Poderia desde já sair, ir à bailecos e voltar a hora que quisesse, ninguém interferia. Na adolescência viajou para Campos do Jordão e ficou lá seis meses. Ninguém questionou. A única coisa era que fosse exemplar nas atividades exercidas - e ela era. O resto, não existia. Tamanha independência originou um medo enorme, de tudo. Até hoje não sabe o que fazer da liberdade. A liberdade é o abismo que espreita o mínimo gesto, já perdido pelo medo de se perpetuar no espaço.
O sábado. Boca desarmada, sem tampouco tentar um sorriso, não havia platéia. Ela tentava simplesmente uma organização interior. E clareou-se toda, ao confirmar através do vidro da janela, agora iluminado pela noite, a ausência de contração na face. Abriu a vidraça e espiou a vista. Estava mais escuro do que a própria noite exigia. Uma noite tão fechada como essa requeria confissões não aprumadas e sim certo improviso de encadeamentos e Glória ainda tentava se encaixar e assumir um ar reservado, com frequência, com muita frequência, um ar com princípio meio e fim, uma história ao menos, a mesma cadência dos dias da semana. Por que o sábado bagunçava essas pernas cruzadas que tentavam em vão apoiar-se no sofá para somente permanecer? Queria só permanecer diante de si mesma como alguém conhecida, amigável e não uma vizinha estranha de si-mesma, esvaziada de sentidos e mal esboçada. Temia a sequência dessa noite, insegura que estava dentro do vestido vermelho que colocara apenas como trêmula garantia e que não disfarçava o esfarelamento interior. Não somente o sofá se desfazia, muito pior era a desintegração da mulher por trás do sofá. Enquanto isso, o silêncio soturno de Jeremias fazia sombras pela casa. A vela acesa para o anjo da guarda ainda reluzia no quarto. A sala roncava, desdenhando dessa presença tão desigual, quase quadriculada. Se fosse uma pintura Glória integraria a fase cubista dos pintores, ou antes até, aquela em que Cézanne ainda anunciava o caminho que seguiria mais tarde. Glória era fisicamente esse antes, um anúncio hesitante e nada concreto, a transição entre o antigo e o novo. Um conjunto repleto de linhas diagonais e verticais que se cruzam e se misturam numa disposição aparentemente arbitrária. Um daqueles rochedos de L’Estanque que mal podemos vislumbrar como rochedos. Entre eles, aos sussurros, trocando ofensas e injúrias, passam algumas nuvens desavisadas e eles adivinham os segredos das incrédulas nuvenzinhas, tão melindrosas na sua diplomacia branca. Os rochedos continuam a explanação, desafiam-se, sem atreverem-se no entanto a perpetuar qualquer exaltação. O pintor ainda não geometrizou o espaço em toda a sua radicalidade. São rochedos íntimos, incolores, cor de casa antiga embaçada pela reconstituição esparsa. Como o cheiro de erva doce presa no fundo da xícara e trazido pela brisa distraída, que evoca uma tarde com os amigos, uma tarde gratuita, presa por não sei que capricho da memória e já se desfazendo pelo tempo e pouco uso, uma lembrança não lustrada, pouco alimentada pelo exercício meditativo da recriação. Mais reluzente é o peso de um olhar durante ou depois de uma confidência boa, declaração desajeitada e mesmo feita sem querer, saída assim como que por distração e por isso mesmo tão verdadeira, tão incontestavelmente isenta de dúvidas. Segredada ali no último momento, aquele ato-falho delicioso, imensamente esperado, será relembrado e saboreado até o último bagaço da fruta, pelo resto dos anos que virão.
E o soluço de Glória encontraria uma via de acesso dentro desse rochedo.
Outro feriado, exclama Glória para a outra rocha. Nenhuma resposta. Espera um pouco, talvez essa outra pedra esteja atrasada, aguça então os ouvidos com alegre esperança em busca da possível interlocutora e olha para Jeremias na ansiedade ilógica pelo segundo rochedo. Seria essa A História se houvesse um outro rochedo para complementar. Mas após longo silêncio, voltemos ao sábado de uma pedra escassa de pedregulhos.
Decerto que conversara bastante hoje, descontraíra-se e até dera algumas risadas com Dona Edith.
Dona Edith José Fernandes - com s ou com z? Provavelmente com z - Coelho. Noventa e dois anos. Toda de vinho. Um poluver vinho em cima de uma blusa de renda inglesa, calça preta, brincos de pedra tom vermelho-rubi ornados por um dourado vivo. Devia ser de ouro. Colar que fazia conjunto com os brincos e uns óculos maravilhosos com armação prateada.
“Preciso engordar.” Queixava-se ela, frente-a frente à carne seca e as lingüiças que esfriavam diante de sua inapetência. Meu marido era muito ciumento, repetia vaidosa, também ele tinha motivos para ser ciumento. Agora não, agora não teria motivos. Você olhando pra mim assim, não diz, mas eu fui muito bonita durante muito tempo, depois do erro médico é que definhei. Depois da cirurgia do coração, a pele grudou no osso e enrugou tudo. Enrugou tudo! Agora estou tentando engordar mas não consigo, meu cirurgião plástico, é ótimo meu cirurgião plástico, fez maravilhas comigo. Vou te mostrar as fotos. Antes da cirurgia - meu marido ainda estava vivo - ele pediu pra secretária: “Trás as fotos de Dona Edith”. E eu vi o antes e o depois, ele disse assim: “A senhora vai voltar a ficar com esse rosto, exatamente assim.” Ele fez um trabalho extraordinário. Me deixou igualzinha. Igual ao que eu era antes. D. Edith suspira e afunda sem forças e nenhum ânimo o garfo na carne seca e com muito vagar trás o garfo até a boca, um longo caminho, uma via crucis que termina com metade da carne caída sobre a cadeira e a outra metade milagrosamente alcançando o interior da boca. Glória pensou no milagre da vida, na condição heróica do espermatozóide que fecunda o óvulo. Uma digressão besta no meio do almoço de sábado do prosaico restaurante à quilo. Vó Landinha, era o nome do restaurante. Enquanto mastigava rançosamente a carne que se transformava pouco a pouco em uma espécie de inimigo domesticado, ela continuava a reconstituição mental da plástica. Conforme os dentes tentavam vencer a guerra, já quase esquecida estava Dona Edith daquele pedaço de carne que circulava perdido dentro da boca e odiado pelo maxilar cansado. Com a impotência dos que comem por obrigação, o inimigo ia vagarosamente sendo vencido, através de muita pertinácia e determinação. Com uma golada de suco de uva, a massa pastosa conseguia enfim descer e tomar seu rumo até o estômago, uma peregrinação solitária. A garganta seca, o coração vazio e um amor imenso pelos dedos turvos que orientavam o martirizante trajeto do prato até a boca. Dona Edith era dona de mãos compridas e alvas, dedos finos, unhas bem desenhadas e agora ornadas pelo esmalte vermelho. Toda ela combinava. Glória invejou essa combinação plástica. Ela que não combinava nada consigo mesma, desintegrada que estava por fora e por dentro, uma rocha no meio de tantos rochedos estéreis. Dona Edith era um possível rochedo habitado em sua ilha, que brilhava, um rochedo úmido pela garoa que não molhava, só umedecia as pedras que se expunham mais pra fora dos arbustos. Dona Edith José reluzia entre os outros pedregulhos com original saciedade e angariava para si olhares de simpatia e desprezo. Quando reclamou da carne – “Muita seca, ouviu minha filha? Avisa pra elas, está dura, difícil de engolir.” E disse isso no tom mais polido e ameno, educadíssima, comentando a brutalidade da carne. A garçonete Miriam sorriu e olhou para Glória numa piscadela cúmplice em que logo emendou: “Ah, tá bom Dona Edith, vou dizer sim’. Glória não retribuiu a piscadela e claro que sabia que Miriam não diria nada. Por que aquele sorriso de deboche e a piscadinha marota? Pensava obviamente que se tratava de uma velha quase senil e que do alto dos seus noventa anos não deveria reclamar de nada e sim agradecer misericordiosa e de joelhos à Providência Divina por ainda estar viva. Quem tem noventa anos não exige, não se exalta, não censura. É na verdade o próprio censurado, quase um criminoso por ter sobrevivido por tanto tempo e ainda por cima dando-se ao luxo de comer carnes-secas nos restaurantes à quilo. Dona Edith José Fernandes Coelho continuou, sentindo de forma obscura, meio íntima, essa piscadela pelas costas, algo que não se vê, mas pressente-se, apenas adivinhando essa sutil frequência entre os seres, os sinais velados e tão presentes, quase nos esmagando dentro de seu código silencioso. Passando por cima dessa invisível zombaria da velhice, ela continuou como quem continua mesmo, pois não há como parar diante da carne-seca e dura. Tremia na sua tentaiva de avançar com o garfo, dizia que depois da cirurgia passou a tremer, erro médico, antes não era assim, tão osso e pele, vagarosa e trêmula. Lembrava ainda maravilhada a cirurgia bem-sucedida, a carne do rosto - diferente da outra, tão fria, tão distante, a interrogando do prato - a carne do rosto adaptava-se novamente a ela, tão amada essa pele que voltava para seu devido lugar. O tempo rigoroso em sua pintura não desleixava de nenhum traço de Dona Edith com ou sem plástica, não havia remendo ou remédio, impondo na tela os anos vividos pelo encadeamento dos dias, dos anos, laborioso em cada detalhe e com sua implacável impressão digital deixava na senhora miúda seu registro, um a um. O marido e suas reclamações, seu amor por ele e depois sua doença e morte, os trinta anos de magistério e depois como professora particular de português, as noites mal dormidas e embaladas pelos livros de Zibia Gasparetto e Danielle Still, o filho que nunca a visitava e que casara-se com uma mulher loura oxigenada que um dia respondeu assim a sua pergunta: “Que faculdade você fez minha filha? E a outra, armada dentro de seu rancor mais profundo e ainda mais seca do que a carne: “A faculdade da vida.” Tudo isso e todo o resto, o que escondia e ainda as memórias de infância e juventude, a mãe muito exigente e ocupada, comandando-a através de uma educação rigorosa e impecável, o pai muito trabalhador e do alto de sua pose de homem digno e respeitável, tudo desabrochava nesse rosto, escancarando alegrias e tristezas, o aspecto que abominamos por ser tão revelador, ali, no rosto de Dona Edith: todas as páginas amarelecidas e já esfareladas pelo uso contínuo, perpetrando em cada gesto seu, um esgar de sombra, um anúncio de noite, um sentido maior para qualquer palavra solta. Ela ainda falava de seu rosto reformado, quando Glória sentiu o peso do rochedo que era. Aquele não geometrizado, que no final das contas, era o lhe valia. E distraída, olhando aquela lingüiça que sobrava no prato de Dona Edith, pensava no dia que tinha pela frente, todo ele uma glória como era essa carne no prato esfriando, todo ele um martírio como era essa lingüiça e seu caminho remoto entre o prato e o estômago. Pensou que seus dias passavam-se como essa lingüiça rejeitada, pois que um rochedo não geometrizado precisava ao menos de um mísero olhar do pintor, ou o escândalo da forma. Mais não quis pensar, o sábado estava aí prestes a explodir e a espiava de fora, abrindo suas imensas arcadas cheias de dentes.
Foi quando Dona Edith falou a meia voz, fazendo-a acordar de seu sonho: “Li uma peça de teatro e me lembrei muito de você. Era sobre uma menina que ficava sempre sozinha porque os pais estavam muito ocupados. E no final ela dizia: “Imagina como deve ser a vida lá fora, pessoas que andam sempre muito ocupadas e nem se olham.”
E a carne de seu rosto pareceu a Glória ainda mais viva e mais fatal.