quarta-feira, 8 de abril de 2009

O Cadáver Eterno

ÀS 17:30 hs, horário de Brasília, Glória tinha dentista. Em São Paulo.
Tremeu e respirou fundo diante da decisão. Não era um medo tardio pelo ruído agudo do motorzinho ou pelo rosto mole, efeito da injeção. Temia; a cura.
Na cadeira do Doutor Vadim - o médico dos médicos dos implantes dentários - Glória se preparava para cobrir o buraco metafísico. Dali, retornaria à ser o que sempre fôra. Um pobre ser crispado. Uma não-banguela.
Entristeceu. Na cadeira inclinada para o teto, Glória ensaiava silenciosamente, a revelação. Até que não aguentou mais e sem nenhum pudor atacou:
G - Doutor Vadim, o senhor se importa em não tampar o buraco?
V - Como?
G - Eu preferia que o senhor não o cobrisse, o deixasse exatamente assim, bem visível. É possível?
V - Eh...é. Pode ser.
G - Então ótimo, nós ainda temos uns dezessete dentes pra fazer, não temos? Então vamos à eles.
V - Tudo bem. Você é quem sabe. Eu posso fazer...Hum. Deixa eu dar uma olhada...

Glória abre a boca e Vadim enfia aquela luzinha indiscreta sobre a arcada constrangida.

V - Podemos fazer esse aqui. Mas me diz uma coisa, por que é que você não quer tampar o buraco?
G - É... Difícil dizer... Bem. É que eu ainda... Preciso dele. É isso. Eu gostaria inclusive de te agradecer, o buraco tem sido extremamente revelador.
V - De nada, não tem de quê. Imagina.
G - Tenho medo de tampar o buraco e perder a inspiração.
V - Sei, sei. Caso sério. Bom, eu já estava preparando a massa pra colocar em cima dele, mas tudo bem, podemos fazer o pré-molar, bem ao lado.
G - O que o senhor acha disso?
V - Não, por mim, não tem problema nenhum. Você pode ficar com o buraco o tempo que for. É uma questão de estética, só. Não sei como é pra quem mora com você...
G - Eu moro sozinha.
V - Então...
G - Eu vou voltar a mastigar do lado direito, se cobrir o buraco?
V - Não.
G - Eu vou falar melhor, minha dicção vai melhorar?
V - Não, isso não tem nada a ver. Sua dicção está ótima, não vai alterar em nada.
G - Ou seja, não existe nenhuma vantagem em tampar o buraco.
V - Só estética. Eu não sei como é pras pessoas que convivem com você.
G - Jeremias não comentou nada.
V - Quem é Jeremias?
G - Meu gato. E ele é bem exigente, mas parece super adaptado à nova mãe Tião Macalé.
V (ri) - É... O pior é que os gatos "falam" mesmo, eles avisam as coisas.
G - O meu não só avisa, como fecha o livro, já expulsou dois ex-namorados só com o olhar e ainda desliga o telefone quando o papo está chato.
V - Bom, então decidimos deixar o buraco aberto...
G - O senhor me deixou em dúvida, agora. Será que o Jeremias sente-se incomodado, mas preferiu não demonstrar, pra não me desanimar?
V - Os gatos costumam dar sinais.
G - É que o Jeremias é muito generoso. Ele não ia explodir em preconceitos por ter uma mãe banguela. Engraçado, agora pensando melhor, ele anda meio cabisbaixo...
V (decidido e corajoso) - Vamos tampar, então? A massa já está pronta. E pro convívio social é melhor.
G ( meditativa) - Convívio social...

Vadim inclina ainda mais a cadeira de Glória - mais um pouco e ela estará plantando bananeira, em pleno consultório médico - prepara o material, abre a sua boca e mete o motorzinho lá dentro. Durante o processo, Glória pensa no buraco que está indo embora... Ainda bem que quando chegou ao consultório, meteu-se dentro do banheiro e lá ficou por horas a admirar o buraco por todos os ângulos. Ainda não havia tido coragem de observá-lo dessa maneira. Tão intensamente. Abriu a boca o máximo que pode, enfiou os dedos lá dentro e entortou todo o corpo, para ter uma visão mais completa e detalhada. A costura em linha preta, sugeriam uma aranha pregada em sua gengiva. Achou bonito. O buraco era imenso e a gengiva estava saltada.
Saiu do banheiro satisfeita.
E ainda na cadeira, ao sentir o cheiro da cola e do cimento sendo pregado em sua boca, se viu, ex-aranha, ex-buraco e se crispava na enorme nostalgia do oco.
Na rua, perdida, subiu a Peixoto Gomide em direção à Avenida Paulista, mais vazia do que nunca. E então, eis o que sucedera. Ao atravessar a rua, e diante da buzina do carro que arrancara forte diante do sinal ainda vermelho, Glória sentiu na ameaça do atropelamento, a mesma violência do dente extraído, e percebera, que o dente morto, o espectro do dente, continuava ali, mais vivo do que nunca. À passos largos, em direção ao ponto de ônibus, percebia a cada instante a presença latejante do cadáver. O cimento pôsto em cima do buraco não eliminava a sensação de oco e o dente atropelado, renascia dentro daquele remendo. O espaço moribundo ressentia-se ainda mais com o corpo estranho que fôra-lhe imposto. Para ela, o cimento vivificava àquela morte. O cadáver era irreversivelmente velado. E ao cruzar com a multidão na Avenida Paulista, uma cidade eufórica pelo feriado que se aproximava, Glória respirou num irresistível alívio. E caminhou leve, olhando os homens e as mulheres com sóbria simpatia e cumplicidade. O buraco, o sepultamento do dente instalara-se nela, para todo o sempre. Deus era a extração. Àquele era o seu grande encontro de vida e de morte. Pois o que poderia importar mais para o ser humano, do que essas pequenas mortes diárias? E não deixar para viver, somente no momento final, o encontro grandioso e irreversível. Esse embate, entre ela e o Divino Espírito Santo, estava se operando bem ali, na cárie mal curada, na gengiva doente, no dente sacrificado. E assim, enxergou pela primeira vez a cara dos brasileiros. E no delírio do seu sonho, todos eles sorriam para ela, sem um único escasso dente. Ainda deu tempo de ver a velhinha nordestina, o caboclo seringueiro, o menino do morro, e até a própria tia, que no final da vida e com a leucemia pingando-lhe pela fronte, perdera todos os dentes. Os brasileiros, que pela primeira vez enxergava, possuíam uma língua solta, a procurar uma saída, no meio da arcada desdentada. Sentiu-se pela primeira vez uma brasileira nata, irremediável. Ali, naquele momento, Glória era índia, mulata, branca e sorria mesmo desamparada pela eficácia da mordida. O brasileiro não morde, eis à conclusão que chegara. Se salva no ataque felino, garras afiadas e sobrevive à uma dor constante em toda a imensidão de sua boca.
Desistiu de Mariana, Sabará ou Ouro Preto. Minas estava bem ali, ao alcance das mãos e dos olhos, mais intacta do que dez coroinhas. Não precisava arredar um pé para londe de Jeremias. Viveria a primeira Semana Santa do seu Brasil inaugural.
E a recém-brasileira, subiu no ônibus em direção à sua casa.