quinta-feira, 2 de abril de 2009

BILHETINHO AZUL

A vida é tão breve que a gente quer se agarrar em alguma coisa. Um trapo, um retrato, uma carta.
Glória se agarra às pernas da cômoda aberta.
Relê os bilhetes dos amigos que já se foram.
E agora adotou uma avó: Dona Antonieta. A da queda.
Glória reage e não dorme. Quer ver como a noite se comporta.
Banguela. Um buraco dolorido entre o pré-molar e o ciso.
Glória aguenta a dor.
Sem analgésicos, que só nos impedem de sentir.
Porque economizar sentimentos?
Por que subtraí-los?
Só felicidade, só alegria, só comercial de Margarina?
E o cu?
Onde fica o cu nessa história toda?
Eu defendo o espaço para aquilo que fede, para aquilo que não respeita as conveniências das salas de estar. Para os assuntos fora de moda.
Para a dor do buraco, o mau hálito, as asperezas das conversas entre casais, abro as cortinas à mandíbula caída, que passa.
O que fazer com um apetite insaciável, que foi domesticado durante toda a vida e em silêncio e hoje vive num vigésimo andar inacessível?
Glória quer comer o mundo, mesmo sem dentes. Mesmo com sinusite crônica.
Feridas abertas, vamos espalhar os segredos mais abomináveis.
Cochicha Glória no meu ouvido rouco. E eu aceito. Eu topo.
Glória é sagitariana, meu ascendente. Ela me corrompe fácil e sempre ganha. Mesmo quando me leva para o nada absoluto.
Vamos tomar providências para sair daqui. Consertar o chuveiro, desentupir o ralo, pregar o cabideiro antes da grande explosão.
A merda também tem a sua dignidade.
E os banguelas, as aberrações desse Music Hall ininterrupto, devem apresentar seu número.
Glória está pronta. De espartilho e plumas enfeitando a cabeça.
Ela sorri para um público apático. Eu, de fraque.
Ninguém percebe a falta de dente. Dela. O molar morto não recebeu nenhuma homenagem, nem o do tomate na cara.
Os tempos são outros. Glória não pôde decorar o texto, pois sua língua, ao raspar no buraco saltado, machuca e impede a dicção perfeita.
E o que impressiona é que mesmo quando sorri longamente, lentamente, essa boca imaginária, ninguém vê o buraco.
Só na tela do computador é possível existir hoje. Só no You Tube. Participando das conversas das celebridades de amanhã, de um realit show qualquer.
"Todo dia a insônia me convence que o céu, faz tudo ficar infinito."
Glória está deitada no chão, em frente à vitrola - gosta do chiado do vinil - e todos os discos do Cazuza estão espalhados, se estivesse vivo, Cazuza faria hoje cinquenta anos. Glória comemora cada frase do LP "Só as mães são felizes", até o dia nascer.
Não necessariamente feliz.
Rio de Janeiro, pedra do Arpoador, asfalto quente, mãe correndo pra lá e pra cá.
E o buraco entre o pré-molar e o ciso latejando com cálida ternura, cúmplice ao compasso da música.
A vida é esse eterno molar que se parte. Que está indo.
Primeiro nascem os medievais dentes de leite, depois eles caem - primeira despedida.
Depois você cresce e os definitivos começam a imperiosa escalada.
E agora Glória desce novamente a serra, o primeiro dos definitivos se fôra...
Segunda despedida.
Mas, nem tudo é dor.
Ali atrás, é só abrir a cortina do pensamento...
temos a pedra do Arpoador
E é pra lá que ela vai
Agora
Como quem foge da preguiça da noite mansa.
E se atira ao sonho.
"Essa é a vida que eu quis."