quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

NATAL _ HEXAGRAMA 18

"O ideograma chinês KU representa uma tijela em cujo conteúdo proliferam vermes. Isso significa o que se deteriorou. Isso ocorreu porque a suave indiferença do trigrama inferior uniu-se à rígida inércia do trigrama superior, resultando em estagnação. Como isso implica em culpa, tal condição exige a remoção da causa. Por isso o significado do hexagrama não é simplesmente "o que se deteriorou" e sim TRABALHO SOBRE O QUE SE DETERIOROU."

Natal. Toalha manchada de antigo vinho na mesa. Jeremias escondido dos fogos.

Plano I Sequência II

Glória senta-se na mesa, onde, ao invés de panetones e castanhas, existe apenas um copo de água quente. Ela pega uma imensa colcha e um coador de café com a bundinha cortada e faz inalação.
NATAL NA CASA DE GLÓRIA: 2008
"Ainda bem que esse ano vai acabar logo, não por causa desse Natal fazendo inalação e sem panetones, pois que panetones me dão azia e inalação é um pouco assim; colo de mãe, biscoito molhadinho no café fresco; e sim por causa da tijela cheia de vermes, que o Velho Sábio (I CHING) sentenciou. Estou me sentindo realmente assim. Em putrefação."
Jeremias sobe na mesa, quer fazer inalação também.
"O que esse gato quer agora, meu Deus? Sai daqui Jeremias, senão não funciona. Não pode entrar nenhum vento pra inalação funcionar."
Ela olha a carinha de JEREMIAS embaixo da colcha, seus imensos olhos castanhos pardos, e é ela quem resolve responder, pois na ausência de seres falantes,é ela quem soluciona as possíveis dúvidas de Jeremias e de si mesma.
JEREMIAS (o gato vira-lata) - Mamãe, eu não quero ficar doente, eu só estou me escondendo dos fogos, você é que fica aí, igual doida, respirando essa água quente.
GLÓRIA (a dona vira-lata) - Preciso melhorar logo Jeremias, pra viajar. Agora sai daqui.

Os fogos explodem, Jeremias olha assustado ainda dentro da colcha, essa pseudo cabana que Glória fez para sua inalação.

GLÓRIA (saindo da cabana) - É NATAL neném! É Natal! Está ouvindo esses fogos?
JEREMIAS - Não. Eu sou surdo.
GLÓRIA - Mamãe comprou patê de salmão pra você, é o primeiro Natal que passamos juntos! Vamos comemorar, neném!!
JEREMIAS - Quanto romantismo, pra que isso? Me dá esse patê e pronto, precisa ser Natal pra você abrir a mão e me dar um patezinho? Sovina que nem só ela. E pra que todos esses fogos, eles estão comemorando o que?
GLÓRIA - O nascimento de Jesus.
JEREMIAS - Eu sou judeu, não comemoro o nascimento de Jesus nessa data.
GLÓRIA - Desde quando você é judeu?
JEREMIAS - Desde aquela última visita, lembra? Aquele seu amigo veio aqui e me converteu.
GLÓRIA - Que amigo? O...
JEREMIAS - É. Esse mesmo. Nem vamos falar o nome porque eu já percebi que é só eu me apegar em algum cara, pra ele sumir na sequência.
GlÓRIA - Não é culpa da mamãe.
JEREMIAS - E é de quem então? Minha? Não foi pra mim que saiu o hexagrama 18, "com uma tijela cheia de vermes"...
GLÓRIA - Ai, meu Deus agora você quer um pai.
JEREMIAS - Um pai de verdade e não um pai de santo que nem você deseja. Nunca vi ninguém jogar tantos oráculos no mesmo dia! Até pra beber água tem que jogar um tarozinho... E além do que, você vive prometendo. Eu queria mesmo um irmão, que você também prometeu. Disse que ia buscar num lar de doações de gatinhos, chegou até a escolher um que tinha uma bola preta no nariz, lembra? Me mostrou a foto. Horrível. Deprimente. Queria ele porque já estava envelhecendo e nada de conseguirem doar...E eu é que teria que conviver com esse complexado. Parecia um palhaço.
GLÓRIA - Nós vamos pra França, lá mamãe vai te dar muitos irmãozinhos...
JEREMIAS - Eu não quero ir pra França, que coisa! E a Dona Irene?
GLÓRIA - É a síndica do prédio o que é que tem? Lá também vamos arrumar alguém pra cuidar de você quando eu não estiver.
JEREMIAS - Mas eu me acostumei com a Dona Irene. Não quero outra pessoa. Duvido que você arrume alguém como ela, até oráculo ela substitui. Fica respondendo as suas dúvidas... Além do quê foi ela quem me salvou quando eu engasguei e você ficou histérica pulando de calcinha pela casa!
GLÓRIA - Tá, agora a gente não vai poder viajar pra França porque você não vai conseguir viver sem a dona Irene!
JEREMIAS - A dona Irene, o Evilásio, a dona...
GLÓRIA - O Evilásio? Você morre de medo dele.
JEREMIAS - É o porteiro mais gente boa do prédio e nunca me dedurou quando eu sumia.
GLÓRIA - Claro, ele estava dormindo.
JEREMIAS - E a dona Georgina?
GLÓRIA - A velhina de oitenta anos, você nem conhece ela.
JEREMIAS - Você quem pensa, eu sei muito bem que nesse prédio os únicos moradores que passam o reveillon sozinhos somos eu e ela. E mesmo não estando juntos, um dá força pro outro, telepaticamente.
GLÓRIA - Deixa disso, você não acredita nessas coisas!
JEREMIAS - E a casa?! As plantas, meu quartinho, meus brinquedos, a vista que temos, temos uma janela imensa. Eu moro num país tropical!!
GLÓRIA - Por isso mesmo. Quente. Insuportavelmente quente. Paris é frio, Jeremias, neva. Lá nós vamos encontrar um pai pra você de verdade!
JEREMIAS - Pra mim ou pra você? Só faltava essa, ser criado por uma biba francesa! E o gato Urano? Foi ele quem me ensinou tudo, ele quem me iniciou na malandragem das ruas.
GLÒRIA - Pois é. Ótima influência, você sumiu cinco dias com ele e eu quase morri.
JEREMIAs - No dia em que me achou, me castrou.
GLÓRIA - Por favor, não vamos falar nisso agora. Hoje é Natal.
JEREMIAS - Se não fosse o Urano eu não teria nem tido o gostinho... Enfim, eu já me acostumei com a vizinhança, com a casa, meu trabalho, adoro o que eu faço.
GlÓRIA - Você pode continuar vigiando o estacionamento todos os dias na França,
também. Ou você acha que só aqui tem estacionamento?
JEREMIAS - Do Hospital São Camilo? Você não entende, eu não vigio um estacionamento qualquer, eu vigio o estacionamento do HOSPITAL SÃO CAMILO, é muito mais útil. Mais importante!
GLÓRIA - Jeremias, pare de me morder, dói. AAI!
JEREMIAS(rosna) - Cadê meu patê de salmão?
GLÓRIA - Só meia noite, na hora do Natal.
JEREMIAS - Que coisa mais ridícula! Vai por um cd com a música Noite Feliz também?
GLÓRIA - Meu amor, é o nosso primeiro Natal juntos!!

OS FOGOS EXPLODEM/Glória fecha as janelas

JEREMIAS - Que pesadelo. Nessa hora eu estaria dentro do armário, me escondendo dessa comemoração infantilóide e consumista, mas como você quer companhia, tenho que ficar na sala. Você pode finalmente me dar o meu patê?
GLÓRIA - Não faz essa carinha que eu não aguento, Jeremias...

Glória corre até a cozinha depois de proferir seu décimo quinto espirro da noite e coloca uma colher generosa de patê na tijela de Jeremias, que nem agradece, ela não fez mais do que sua obrigação. Afinal é Natal.
"Não sei muito bem o que o I Ching quis dizer no JULGAMENTO: É aconselhável atravessar a grande água. Que grande água? Está relacionado ao trabalho ou ao dinheiro? Ou ao amor? Será que eu devia ter ido pro Rio mesmo com febre? Ah, mas tá tão bom aqui com o Jeremias... Tadinho, vai passar o reveillon sozinho, mas o Natal, não, né Jeremias?" Glória se abaixa e pega Jeremias no colo, o aperta fortemente em seus braços, lhe dá ainda estalados beijos na testa. Jeremias salta.
Glória pensa nisso tudo enquanto limpa as formigas da tijela dele, sempre quando tem patê, elas fazem uma festa!
Glória lavou toda a louça, fez as mãos, comprou água de côco e rosquinhas, comprou todos os remédios de gripe e a pílula também. Até traduziu um americano na padaria,
mal e porcamente, claro, mas foi tão bom servir de mediadora, traduzir algumas palavras praquele homem que precisava de ajuda com as sacolas cheias, toda a sua ceia ali e o dono da padaria querendo ajudar sem saber dizer uma palavra. Nessas horas que eu penso nas aulas do IBEU que matei. E era esse sentimento de estrangeira que Glória tinha e não a deixava em paz, ela também viu as luzinhas de Natal nos prédios, toda essa decoração insurdecedora, viu uma família toda combinando nas roupas e o pai com um imenso saco de presentes nas mãos. Viu a chuva e de novo as ruas secas, tomou banho, colocou perfume, passou batom. Olhou pra Jeremias em seguida e sorriu depois desse gesto patético. Até parecia que esperavam alguém. Glória gostava de imaginar que sim.
E Jeremias também.

PRIMEIROS PASSOS
Quais serão os primeiros passos de Glória?
Depois dessa tijela cheia de vermes e justamente no seu Natal. O Velho Sábio não poderia ter sido mais generoso?
Meia-noite. Jeremias senta ao lado de Glória na mesa do computador, eles assistem
juntos alguns vídeos no YOU TUBE, Jeremias dorme e Glória escreve.
Muitos tilintares de taças de champagne da vizinhança, até seu vizinho taxista está dando uma festa de verdade. FESTA DE VERDADE?
?
Mas Glória não vê nenhum problema em passar o Natal sozinha. Ops! Sozinha não, com o JEREMIAS! E quer companhia mais maravilhosa, silenciosa, amorosa, elegante, independente, cheio de bom gosto, fiel! E quando Glória se sente muito sozinha, faz uma pergunta e olhando com atenção pra Jeremias já sabe a resposta. Seu olhar de desdém, sua cumplicidade, seus medos, ansiedades, iras e desejos camuflados, seus vexames internos, de repente está tudo ali, em sua pupila. Glória aprendeu a responder às próprias dúvidas, e está certa que é ele quem responde. É bom, porque assim as brigas nunca se prolongam muito e nem o silêncio, a não ser naquele dia em que ela trouxe um homem muito esquisito pra dormir em casa, com cara de alemão! Ele quase chutou Jeremias no escuro e fazia um barulho muito estranho enquanto dormia. Era peludo e sujo. Muito aquém de Glória. Jeremias se afastou na semana seguinte e não conseguiu nem encará-la. Por que ela se maltratava tanto? Jeremias nem ousava perguntar, muito menos censurar. Como seu compositor preferido escreveu: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é."
Jeremias presta muita atenção nas escolhas amorosas de Glória e até se convenceu certa vez quanto a determinado sujeito, muito apessoado inclusive, que depois infelizmente sumiu. Jeremias nunca perguntou nada, mas ressentiu-se profundamente e até hoje amarga essa perda. Ele era alto e usava camisas xadrez, dormia com ele quando Glória expulsava os dois da cama. E quando Glória viajava - e ela sempre viajava - era ele quem vinha lhe dar comida. E ele não lhe dava apenas comida e sim fazia companhia durante todo dia. "mamãe dizia que ele era vagabundo, mas eu acho que ele tirava fotos muito bonitas, ele até ganhou um prêmio e tinha um quadro enorme aqui no corredor de uma estrada que um dia ela atirou no chão." Usava umas botas de cowboy e vivia com um cigarro de palha pendurado na boca. Jeremias nem ligava praquela fumaceira toda na sala, pois o que importava é que ele deixava-o se aninhar à vontade em seu colo. Já o músico não. O músico não ligava muito pra ele e Jeremias um dia até o expulsou de casa. Olhou-o com tanta força e raiva que o músico comentou com Glória:
MÚSICO - Noooossa! Que olhar!
silêncio
GLÓRIA - Por que? O que você acha que ele quis dizer?
MÚSICO - Ele disse: saia daqui!
E era isso mesmo, Glória percebeu que Jeremias o expulsava. Jeremias não via sinceridade naquele homem, só no de camisa xadrez. Jeremias tinha o dedo podre.
Glória lembrava disso tudo enquanto fazia as malas. Passaria o fim de ano fora e tão longe de Jeremias. Se sentirão falta um do outro?
Pois que já são a mesma coisa.
E quando Glória brindar ao novo ano que entra, é em Jeremias que vai pensar...
Pois que os amores passam, os de camisa xadrez e cigarros de palha na boca e suas promessas rurais, os violões e serenatas comprometedoras, os empregos, alguns amigos que se revelam menos amigos do que antes e às vezes mais exigentes, tudo passa.
Menos o gato Jeremias. Ele está agora bem aqui, ao meu lado, e estamos ouvindo juntos Yo Yo Ma tocando Piazzolla.
FELIZ NATAL JEREMIAS!!!
Brinda Glória com seu perfume de Alfazema na mão.