sábado, 4 de abril de 2009

A NOITE E O INÍCIO

Por que enfeitar
A verdade?
Se estamos todos adormecidos
e vagarosos, esculpindo sorrisos numa pedra de gelo, ao fundo, a trilha sonora, como música de elevador; o silêncio bambo e hostil.
A noite de sábado é uma ameaça contínua.
Não embarco mais.
Não desembargo.
Poderia sair, beber, fumar e até dançar.
Em frente à todas as caras pálidas.
Enfrente todas as caras.
Pálido Abril. Sou Abril.
Cômoda.
Abrir e fechar a cômoda. Já parece uma ação. E bem típica de um mês como esse, ainda mais o início de um mês tão sonoro. Mês de Abril. Abrir e fechar, abrir e fechar, com uma inegável abnegação e uma polida resistência. Considero isso, saudável. Até utópico, eu diria, já que não alcanço a maçaneta.
Não existe A Chave. Esqueça, por favor, esse tipo de coisa.
Estou sempre pronta. Cigarro aceso. Voz colocada e o cabelo preso, que às vezes cai
sobre a cara. Puro charme. Puro artifício.
Até fico rouca se preferir, se for conveniente, uma mulher aprende tudo, uma menina, prefiro dizer, são as meninas que aprendem, as mulheres...
Vão embora? Eu não sei nada sobre as mulheres, acabo de me dar conta. Enfim, o que importa disso tudo, deste sábado, a noite deste sábado e todo esse longo Abril que vêm pela frente - um início, um diáfano início de Abril - são os exercícios vocais. Os maçetes da conquista. Fiz muitos exercícios vocais pela estrada afora, isso era o que a minha profissão exigia, antigamente, ela exigia, isso. Escolha a voz que quiser, é só pedir e colocar a ficha. Sorrisos? Inúmeros. Minha especialidade.
Sorrir é realmente muito fácil e combina com a minha boca, você não acha? Sabe por que? Esse é o segredo. É porque os meus olhos acompanham o movimento sutil - ou não sutil, aí é você quem escolhe, pode ser um movimento sutil ou não, pode ser simplesmente, um sorriso escandaloso e por isso, menos sutil, sempre deixo os outros escolherem esse tipo de coisa, é pedir muito pra uma garota escolher o próprio sorriso, não me venham com tamanhas exigências, que eu.. enfim, eu sou sensível e choro. Sim, eu choro. E não é um choro qualquer. É um grito quase, quando eu choro, eu solto um grito junto, assim ó: buuuuáaahummhaaaa. Sei lá, algo por aí. Choro mesmo, é inevitável, não consigo não chorar quando estou sendo pressionada, não coloque as mãos no meu ombro, por favor. Não!! Na cabeça não! Por favor, não repita nunca esse gesto! Agora você destruiu tudo. Acabaram todas as possibilidades de uma noite... Uma noite, enfim, você acabou com todas as possibilidades de uma noite. Um gesto como esse devia ser proibido! E a pessoa, o criminoso, eu quero dizer, devia ser indiciado na mesma hora, preso em flagrante. Homicídio culposo. Ou doloso? Eu nunca sei. O que quer que eu faça a partir daí? O que me resta depois disso? Quer que eu enfie meu rabo embaixo da perna? Era só o que me faltava. Percebe que com esse pequeno, porém, fatal gesto, você me imobilizou para todo o sempre? Veja como fiquei. Estou completamente apática. Acabou meu brilho. Porque quando eu cheguei aqui, eu tinha brilho. Ou não tinha? Tinha. Eu tinha sim. Tinha todo um brilho especial. Eu mesmo vi, no caminho, vindo pra cá, passei em frente a uma panificadora, gosto especialmente dessa palavra: panificadora. Fechada. A panificadora estava completamente fechada e então no reflexo dela, do vidro dela, no reflexo do vidro, eu me vi. E não tinha manequim que se equiparasse, ouviu? Não tinha. Pelo menos ali. Agora, depois disso tudo, eu morri. Estou aqui, um cadáver falante. É isso. Sou um cadáver que fala: blá blá blá. O que você quis? O que pretendia quando colocou as mãos - as duas, ainda - as duas mãos na minha única cabeça? Colocando assim, com um carinho assim, nada sutil, esse pequeno cafuné assassino, essa coisa que humilha a gente, o que você queria? Você não acabou só comigo quando fez isso, você debochou de toda a humanidade com esse gesto aí, absurdo, covarde, um gestual de ladrão: homens, mulheres e até criancinhas se ofenderam. Tenta, se quiser tentar, isso é um problema seu, é uma escolha sua, mas eu indico, tenta, se for homem, tenta colocar a mão desse jeito, o mesmo gestual, na cabeça do meu priminho de cincoa anos e veja se não leva uma mordida! Ora se leva! E das boas. Na mão. Ele morde na mão, com toda a força de um pequeno ofendido. Por que os adultos páram? Eu digo, por que eles páram de morder? É errado isso, tem que morder, sim. Tem que continuar mordendo. É legítima defesa. Alguém vêm, um velho por exemplo, todo cheio de boas intenções - esses são os piores - e já esticam as mãos cheias de artrite e dão aquela coçadinha ultrajante, que desnuda qualquer um. E você fica lá, impassível? Não, você deve morde a mão. Deve reagir, retrucar. É um gesto muito nobre. É preferível que alguém me cuspa na cara, do que alisar minha cabeça. Não sou um gatinho, um cachorrinho ou uma galinha pra vocês virem assim, todos sebosos, alisarem meu crânio. Lembra muito um... Atropelamento. E não é de carro, não. É um caminhão de gás que acabou de passar por cima de mim, quando você, ou ele, já não me lembro qual dos dois foi quem fez o gestual diabólico, eu diria até promíscuo, eu não sei bem os nomes de vocês, ainda não decorei, quando vocês passam a mão assim, em cima da cabeça da gente, eu invejo o bofetão. Sério. Quando você, ou ele, pensar em pôr as pontas dos dedos a coçar de mansinho uma cabeça, lembre-se que qualquer pessoa, seja um homem, uma mulher, ou até uma criancinha, o meu priminho por exemplo, que morde, qualquer pessoa, até bicho, é, até uma galinha, prefere levar um bofetão na cara. Segure o gesto, então. Sim. Segure o gesto. É possível, recuar. Eu mesma, quantas vezes por dia, ou por noite, tanto faz; recuo. Eu recuo sempre. E não há nenhuma vergonha nisso, eu diria até que é muito digno - adoro usar essa palavra - que é uma daquelas ações saudáveis, como correr no parque, comer grãos e mastigar bem os alimentos. É, sim. Recuar é comer grãos. Eu nunca vou esquecer o que você fez. Quatro de Abril, início de um mês tão lindo - gosto tanto de Abril, você não imagina, meu mês favorito e olha que o meu aniversário é só em Novembro, mas não é isso, é o santo sabe? O meu santo bate com o santo do mês de Abril. É. Deve ser isso. Um mês proveitoso. Panificadora. O mês de Abril combina muito com uma panificadora - então, como eu estava dizendo, num mês tão lindo como esse, você vêm com suas mãos, as duas ainda, tão cheias de boas-intenções e coça a minha cabeça, coça, não. Faz um carinho e nem foi sutil, como é o meu sorriso maroto. Eu já disse que meu sorriso é maroto? Acho que expliquei sim, a coisa dos olhos que acompanham com muita naturalidade, isso é importante, acompanham com muita naturalidade o meu sorriso, a boca que se abre. Então, resumindo, é importante resumir, foi um namorado meu, um namorado de antigamente, porque não gosto muito de grandes envolvimentos amorosos, eles me deixam perplexa, fico boquiaberta com as atitudes deles, você nem imagina do que são capazes, eu saberia até dizer, eles fazem coisas como isso, cafunés súbitos em você, e não te deixam ter nenhuma reação, nada, você simplesmente não reage, ações assim, normais, de auto-defesa, como uma mordida por exemplo, se uma mulher morde a mão de alguém ela é louca, agora se lhe fazem um carinho maligno na cabeça, está tudo bem... eles, os namorados antiquíssimos têm sim, atitudes bizarras como essa. O fato na verdade, o que eu quero dizer com isso tudo, é que esse antiquíssimo namorado, ele dizia que eu tinha que ser mais objetiva, ir direto ao assunto, e é isso o que eu estou fazendo, agora. Ao menos estou tentando, eu estou tentando, não estou? Gosto de saber que tenho um lugar pra ir. Uma meta, sabe? Um objetivo claro e nítido. E o meu objetivo é justamente esse: ser objetiva. Um dia eu vou ser. Quando as pessoas me perguntam: "Qual é o seu sonho? O que você mais gostaria que acontecesse na sua vida?" Eu respondo sem titubear: "Eu gostaria de ir direto ao ponto." E é isso o que estou fazendo, não é? Indo direto ao ponto. Eu melhorei muito, você não sabe como eu era. Não dava pra falar comigo, ele, o meu namorado antiquíssimo dizia, "impossível conversar com você, eu te pergunto o que aconteceu e você me joga um sermão na cara" - não era essa a palavra que ele usava - uma tese, é, uma tese na cara. "Você me joga uma Bíblia, na cara." É isso, uma Bíblia. Hoje, não. Aprendi a me resguardar, a falar menos. Nossa, antes era impossível falar comigo, eu não sei, as pessoas querem saber muitas coisas e eu também quero saber muitas coisas, então quando me perguntam sobre, por exemplo, o meu dia, ou sobre o que aconteceu, por que eu estou chorando, ou por que eu estou sorrindo, eu vou falando e descobrindo, enquanto eu falo eu vou descobrindo uma porção de coisas, sobre mim mesma, o meu Eu Interior, o exterior também, por que não? Porque só falam do Deus interior? Eu descubro muita coisa no meu Deus exterior, descubro mais até. Por exemplo a minha corcunda... Mas aí eu já vou estar me distanciando muito do xis da questão, e já não vou conseguir voltar, viu como eu tenho consciência, como eu sei do meu psicologismo? Eu não vou conseguir voltar. Se o meu namorado, aquele, o antiquíssimo, íiiih, nem sei mais quantos anos fazem, nossa, da última vez que nós nos falamos, até brigamos, e eu chorei, daquele jeito que eu disse que eu choro, com o grito estranho no meio, eu ainda nem tinha perdido um dente, eu perdi um dente, sabia? Mas se eu falar sobre isso de novo vou estar me distanciando da meta, a meta de dois mil e nove que é ser objetiva, ir direto ao ponto. Então pra isso acontecer -apesar de internamente eu achar, ou externamente eu achar, que se eu falasse da perda do meu dente, descobriria muita coisa e até conseguiria desenvolver uma relação entre o dente perdido, ou seja, o buraco na arcada dentária e o seu sutil e violentíssimo gestual - mas prefiro, não me alongar demais, perdi muito do meu brilho depois do seu carinho devastador. O que eu quero dizer, e onde eu quero chegar é que o seu gestual é o oposto do meu. A antítese. Uma palavra que aprendi hoje. A antítese do meu sorriso. Gesto horrível o seu, eu diria até inconveniente. É sim, um gesto beeeem inconveniente. Por isso, estou continuando o que estava dizendo, nunca perco o fio da meada, é puro treinamento, estou treinada, como quando alguém faz ginástica, ou musculação, é melhor musculação, mais fácil de te explicar, a pessoa habitua o músculo ao exercício, e ele vai crescendo, vai se desenvolvendo e depois sem esforço, sem esforço nenhum eu diria, não é mesmo? Chega ao tamanho desejado. O problema é que sempre mudamos de desejo, logo, quando o músculo chega àquele tão sonhado tamanho, não queremos mais tão pouco, não é? Se tornou pouco, não foi? Você não concorda? Gosto de olhar a pessoa e ver que ela está concordando comigo. É um estímulo, sabe? E não custa nada. Ainda mais depois do que você fez. Não custa nada uma certa... Cooperação. E volto de novo ao seu indigno gestual, eu me habituei a nunca perder o fio da meada, graças ao meu namorado antiquíssimo, devo muito a ele, muito mesmo, às vezes até rezo e agradeço nós termos nos conhecido, ele foi... Não sei nem dizer o que ele foi, sei sim, foi fundamental. É isso. Mas, acabou, as coisas acabam, ele até andou me procurando, apesar desse meu jeito, nada objetivo e até mesmo miraculoso, mas eu não devia estar falando nisso, é pessoal demais e não custumo misturar vida pessoal com trabalho, apesar de achar que as coisas se misturam quer queiramos ou não. Enfim, ele tropeçou, deu uma mancada e apesar desse meu jeito um pouco... Minha mãe diz que é melodramático, eu não concordo, eu acho só dramático. Sim, é um estilo. O meu estilo. Não. O meu gênero. É isso. O meu gênero pessoal, único e intransferível é dramático. Então, mesmo com toda essa dramaticidade, os homens não se esquecem de mim, sabia? Não se esquecem. Eu posso comprovar. É fácil. É só ir na minha casa e ver as longas cartas - como os meus namorados todos são antiquíssimos, depois do último eu não quis mais dramatizar nada e parei de namorar, eles são daquele tempo das cartas, e me mandaram muitas. Registradas. Cartas registradas. E longas e muito, muito dramáticas. Um deles inclusive, Adolfo o nome do infeliz, tentou até suicídio. É verdade. Eu acho, não sei bem, mas pressinto que tem a ver com o meu sorriso maroto e até essa coisa de não chegar nunca a lugar nenhum. É. Essa coisa de falar, falar e não chegar numa conclusão. No fim das contas, isso conquista, é o que eu acho. Além de claro, eu sei fazer várias coisas, bem. Eu canto, eu danço, eu represento. E enfim, eu sou experiente, mas ser experiente não tem nada a ver, é o brilho, sim esse brilho que eu disse que eu tinha e que até vi quando passava pela panificadora - toda vez que falo essa palavra me dá uma alegria infinita, virginal, posso dizer isso, nesse momento? Virginal? Eu não uso as palavras adequadamente, isso era o que o último dos últimos namorados antiquíssimos me dizia. "Você, pequena, não usa as palavras adequadamente", mas eu acho que até isso, que ele dizia ser um defeito, até isso fez ele cair de quatro. Porque ele caiu, não caiu? Caiu, sim. De quatro. E eu posso provar. Comprovar. Claro que posso, isso, essa inadequação gramatical, está incluído no pacote, sabe? Essa coisa do: sorriso maroto, o brilho especial e as divagações. Nossa, consegui resumir tudo. Viu? Como aprendo rápido? Não tão depressa, mas rápido. Eu e os meus artifícios, o trio todo: sorriso maroto, inadequação gramatical e o gênero dramático, isso tudo enfeitiça. Confundem os homens. Os homens gamam meu filho, não conseguem evitar e você ainda não viu nada, claro que não viu, fez cafuné em mim, eu mal tinha passado da porta, até agora não entendi isso, essa coisa, esse gestual imbecil de repente, não, eu não estou ficando grosseira, grosseria é uma coisa que desconheço, estou reagindo a uma ação babaca. Não gosta de palavrão? Pois saiba que o palavrão faz parte do meu brilho, mas só uso alguns, os mais amenos, os mais ripongas. Ah, aqui está um bom exemplo de como usar as palavras de forma inadequada. Uma palavra que não gosto: adequação. Por isso não pressionem o meu pequeno, mas repito precioso e até raro, está rindo, é raro sim, meu raro sorriso de ouro. Como estava dizendo, pode ver. Aqui está meu artifício - talvez, sem exagerar, de forma alguma, mas dando alguma ênfase - meu artifício principal. E não é truque. Isso, não. O resto, sim. O resto todo, até o choro sentido, que eu disse, não poder controlar - e não posso mesmo, mas sinto no íntimo enquanto choro, que me distancio e me observo chorando, é um prazer indescritível esse. Eu estou lá, digamos que, desarvorada e ao mesmo tempo, estou fora, estou me vendo desarvorada e, simultaneamente, até com um certo sentimento de tranquilidade, eu aprecio a cena toda. Desse choro. Então, fora o sorriso maroto, natural, todo o resto... Puro truque. Mas essa relação, esse condicionamento, posso dizer assim? Um condicionamento entre os lábios e os olhos. Quando eu sorrio e isso é muito natural pra mim, e faço realmente sem esforço algum -os olhos sorriem juntos. Já me disseram: "Ela tem o sorriso maroto." E acho que é isso, eu possuo o tal do sorriso maroto. Sorrir é fácil, principalmente pra mim, que nasci com esse... Dom? É, é. Um dom. Sim, um dom. Difícil, isso sim. Agora vou dizer uma coisa sinistramente difícil, você há de concordar: difícil é dizer bom-dia.
Agora, você precisa ir embora. Já disse tudo o que queria e o meu assunto acabou e quando o meu assunto acaba, vou ficando perigosa. Vai. Rápido, antes que eu me arrependa de ter te mandado embora - eu sempre me arrependo das minhas atitudes, boas ou más.
Fico quieta agora. Acabou a encenação. Guardo o espelho e as roupas.
Se fiquei em casa, é porque queria ficar sozinha e não com os fantasmas todos.
Deles.
Os homens. Passados, presentes e futuros.
Ouço a voz dele. Atrás da porta. Ele. Que me chama, que me quer
Bem?
Ninguém quer ninguém bem, querem a sua apatia e a sua omissão.
Mas eu não distribuo mais gargalhadas. Prefiro guardar pra mim, toda ela, só pra mim, pra quem sabe usar, num evento mais propício. Quem sabe um dia, exista isso: um evento mais propício.
Se eu saísse, hoje, nesta noite, de sábado,
Teria no máximo um diálogo como esse, como esse aí de cima, que nem foi diálogo, seria vítima de uma cena como essa, isso sim, uma cena patética e brutal como essa e ia querer logo dormir ou tomar um banho. Ficaria cansada de mim mesma e da minha ladainha e nem terminaria esse poema. Um poema que chega no xis da questão, ou que pelo menos, tenta chegar.
Eu nunca perco o fio da meada e isso é o mais importante de tudo, nunca perder o fio da meada, eu sei ir até o fim e nunca me esqueço do objetivo maior. A meta.
Ir direto ao ponto.
Se eu saísse hoje, num sábado, início do início de Abril - um mês que eu particularmente adoro - talvez, eu.
Eu invejaria.
Só isso. Invejaria.
Eu estaria vestindo um fraque imaginário. Fumaria muito e meu maxilar voltaria ressentido pra casa
De tanto rir
Sem vontade.
Se eu saísse, hoje...
Nesta noite, poderia ser bom, eu ouviria as conversas e os dentes todos se abririam, ante uma frase espirituosa.
Que eu soltaria, sem dúvida alguma, dita por mim, pela minha boca que se abre num largo sorriso maroto - quando quer, ela só faz isso quando quer, ou quando querem, é, na verdade, mais especificamente, pra ser bem específica, principalmente quando eles querem - de qualquer forma, saíria de mim, essa frase espirituosa, em alto e bom som, graças a meu brilho interior.
E exterior também.
Mas eu fiquei. Meus amigos vieram
Estiveram aqui
Meus amigos
Eles viram a minha casa, espiaram tudo, até o quarto de entulhos, eles estiveram lá, o banheiro dos fundos, a tampa da privada velha e rasgada.
O entupimento do ralo
até meu gato entrou na dança.
Coloquei um Jorge Ben JOR pra dar uma amenizada, no entorno.
Eles viram...
A sala estava razoável, até. Coloquei um abajur medíocre que iluminava um sofá medíocre, coberto com uma colcha laranja
Não é colcha, é manta, palavras inadequadas mais uma vez, mas eu estou de olho em mim mesma, nem preciso de namorados antiquíssimos pra me vigiarem.
Ganhei presentes londrinos e bebi um pouco de cerveja quente com eles, esses amigos estrangeiros.
E até os abracei.
Bastante. Os abracei e sorri bastante.
Num determinado momento, eles riram de mim.
Eu atraio constantemente esse tipo de coisa, não que me importe, pra mim tanto faz, eles rindo de mim, das bobagens que falo, ao menos ficam felizes.
Até o fim da noite vão se lembrar da boba aqui, que confundiu alhos com bugalhos e nem conhece ninguém que pendure os quadros, ou conserte o chuveiro, ou...
e isso é o mais importante, digo, o que realmente importa dentre todas as tragédias domésticas - alguém que coloque a nova tampa da privada que falta.
A que lá está, é somente provisória.
A casa é somente provisória.
Eu, sou somente provisória.
O buraco na boca, essa foi a desculpa, a dor do buraco, eu não posso sair, ir ao e
samba com vocês, à gafieira, ao boteco, por causa da dor.
E então, quando todos se foram e eu me vi só novamente - e o Jorge Ben JOR ainda cantava - eu tive vontade de fumar.
E fumei.
Foi bonito. Eu, comigo mesma, fumando.
Eu sentei na mesa - o meu melhor móvel, madeira escura maciça, a cadeira também, conjunto com a mesa e uma só, a cadeira é uma só, muito bonita também, tem o encosto alto e uma almofada amarela - eu descansei meu corpo sobre a almofada amarela, conjunto com a mesa de madeira maciça e herança de minha bizavó - e olhei pra fora - a cadeira e a mesa, o conjunto todo, madeira maciça, herança da biza

fica em frente - "en face de" - realmente de frente - para a janela. E eu tenho uma vista, eu sou uma das poucas privilegiadas, moradora dessa cidade sem paisagem, que tem uma vista.
Eu pago um bom preço por ela e por isso ela é minha.
Sentei-me de frente pra tão homenageada vista e fumei.
Aguentei não fumar durante toda a visita e agora, justamente agora, quando eles se foram, eu acendo o cigarro.
A fumaça é inflamatória, diz o doutor Vadim - o médico dos médicos dos implantes dentários - a fumaça é inflamatória e pode fazer o buraco sangrar.
Eu queria ver sangue, confesso, naquela hora eu queria ver sangue.
Acho que ainda quero. Preciso refletir melhor.
Eles tinham acabado de ir embora e eu jogava I Ching pra saber se tinha tomado a decisão certa. A de não ir com eles. A de ficar em casa, desafiando a casa. Desafiando o buraco da arcada. E a privada, a falta de tampa da privada. À isso tudo eu preferir me fincar.
O I Ching queria que eu fosse. O hexagrama foi bem claro.
Mas e o buraco, I Ching? E a dor? E a fome? E a falta de ânimo, descarga estragada, voz entupida,
e a falta de ânimo, I Ching?
Ele disse "Progresso", hexagrama trinta e cinco - Chin.
Será que era hoje, seria hoje, exatamente hoje, um dia tão corriqueiro, eles mesmos falaram "Você precisa do Souzinha" "É, ela precisa do Souzinha." "Souzinha é ótimo, trabalha em cima do Empanadas" "Sabe? O restaurante Empanadas em Vila Madalena?" "Sei, Sei." "Então, ele é ótimo." "É mesmo. Ela precisa do Souzinha. Deixa eu ver se tenho o telefone dele aqui?" "E ele ainda trás empanadas?" "KKKKKKKKK" - TODOS
"Se você pedir, ele até trás." "E vai consertar tudinho." "Tudo, tudo mesmo. Ele é ótimo. Dá um jeito em tudo. Troca lâmpada, o chuveiro, o encamento lá de casa foi ele quem fez."
"É mesmo. Chama o Souzinha pra ela, bem."
Será que seria hoje, com isso tudo no bolso, que mesmo assim, eu encontraria... que aconteceria alguma coisa nova na minha vida? Por isso, o I Ching? Por isso o hexagrama trinta e cinco? Progresso?
Depois disso tudo, esse papo de Souzinha e a minha casa destroçada, a cerveja, o buraco, minha cara oleosa e o Jorge Ben JOR cantando, ainda iria sair? Daqui? Do meu buraco? Único e infálivel. Meu bem mais precioso. E digno. Um benhê digno.
Estou aqui dentro e acendo um cigarro, olho a vista, pago caro por ela, olho a vista e me arrependo loucamente, estou quase gritando:
"Me esperem. Estou indo. É só um minutinho. Eu vou também pro Genésio. Pro Grazie a Dio, pro Ó do Borogodô."
O Jorge Ben JOR continua cantando, parece aconselhar, já calvo: "Vai viver a vida, nêga, vai pro Ó."
E então ouço a euforia de uma festa no prédio vizinho, todos cantam juntos uma música animada, eles se abraçam, sobem nas cadeiras, se beijam, estão fazendo sexo no assoalho.
Isso me piora e me arrependo
Me arrependo loucamente
Desligo o Jorge Ben JOR, essa alegria toda dele, tão contagiante, tão banda do Zé Pretinho, eu não aguento isso, não.
Tá me fazendo mal isso.
Quero voltar pra mim, pro que eu era antes dessa gente toda, que eu nem esperava, que invadiu meu mundo, minha casa. Eu estava tão bem, lendo as crônicas do Nelson, sentada no sofá e tomando arnica.
Eu estava tão bem, lendo A Jornada do Héroi e tomando veneno.
O Jeremias me olha, questionador. Não respondo nada.
Sou vencida.
E respiro fundo, apago o cigarro, lembro que eles riram da minha cara, quando confundi alhos com bugalhos e vou amansando.
Eu sei me amansar.
Tomo um remedinho.
Venho pro computador, ouço uma música do Cazuza, hoje é aniversário dele e não ontem e muito menos anteontem.
E a vontade vai passando, quando sento aqui, no escritório e esqueço tudo, a paisagem não importa mais, o samba já não me pressiona, as risadas vão sumindo e aos poucos eu vou dando Graças a Deus de ter ficado em casa.
Agora Glória come um chocolatinho, calma e simpática.
Acendeu uma vela, é pro Caju.
E agora canta, mãos postas, encarando seus olhos na capa do CD, iluminados pela luz da vela, rosto também calmo, amansado pela morte:
"Parabéns pra você.
Nessa data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida
É pic. É pic. É pic, é pic, é pic. É hora, é hora, é hora, é hora, é hora. Rá. Tim Bum, Caju, Caju, Caju!!"
E assim, a noite de sábado passa, mansa e intocada.
Mais uma tentação
Ignorada.