terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Como se tornar uma vaca

Eu não sinto inveja das pessoas que dormem bem.
É só um princípio de antipatia, nada muito grave. Quase um ressentimento, tendendo mais para a desconfiança.
Essas pessoas matam, é preciso deixar bem claro.
São predadoras.
Gente silenciosa demais e que adormece rápido, geralmente são hostis. Guardam como um tesouro a sua tranquilidade autoritária, essa paz enfática e sebosa, espelho de naufrágios. Nos constrangem diante de nossa covardia de mergulho. Guardamos o lençol rasgado como um segredo abominável, abaixamos a vista e encolhemos o rabo, obedientes diante desses inabaláveis senhores pacíficos. Eles nos acuam com sua elegância altiva, seus gestos calculados, o olhar de peixe-morto, já vagando, recuando, flertando outros mundos. Tem gente que dorme de pé. Por favor, alguém pode se encarregar de sumir com um sujeito desses? Está querendo nos humilhar?
São da mesma espécie dos que dão uma tremidinha antes de adormecer. E assim que pulam em suas camas já começam o espetáculo canalha.
Vermes.
Mal a vêem e já se atiram, boca entreaberta, braços em cruz. Uma ausência de olheiras assim, não deveria ser no mínimo investigada?
No planeta imaginário que bolei numa dessas noites intermináveis, os homens que dormem bem, pagam multa. E ela é bem alta.
Na verdade, eu reservei um outro hemisfério só pra eles. Cheio de sangue, guerra e dor. Eles precisam pagar. Dormem bem durante a noite e pagam por isso durante o dia. É um serviço que eu presto à sociedade. Quão mais insones, mais tropeços, mais hesitações, mais dúvidas, logo, mais humanidade.
Por enquanto, esses monstros que fiquem bem longe de mim. Tenho medo de qualquer espécie de serenidade, de expressões como "à partir do momento que", "sustentabilidade", "em conformidade com", "dentro do prazo estabelecido", "dentro dos conformes" e "o importante é ser feliz". Dessas pessoas eu quero uma distância de no mínimo, dois mil metros.
Esse homem ao meu lado, por exemplo, é um caso típico. Preciso me livrar dele.
Rápido.
Veementes em seu quarto intocado de fantasmas, eles preservam até o último grão suas forças, para um dia - quem sabe? - usá-las de forma irreversível, contra nós.
Eles traem, apunhalam pelas costas, riem de nossas dúvidas e incoerências, estão sempre atrás de qualquer passo em falso, são meticulosos e ardentes.
O homem encosta o braço meticuloso em mim. Vou cuspir nele. Atenção, pelotão de fuzilaria, avançar! Onde eu encontro um guarda nessa estrada?
Tento dormir para esquecer que estou ao lado de um canalha que ronca.
A paisagem, desleal em sua proporção exata, passa como bois correndo.
Fecho os olhos, estou dormindo.
Percebo que um dos olhos, o esquerdo, se esqueceu de fechar e ficou entalado com um boi na retina. Sinto os pêlos do braço do homem raspando meu cotovelo. Vou atirar.
O delinquente sentado ao meu lado resolveu acordar e mexer nessas maquininhas portáteis, cheias de ruídos higt tech, ressoam sobre mim sinos intratáveis e como um míssel, essa sonoridade frenética me acerta em cheio.
Estou tentando cochilar em Tóquio.
Odeio ele. Além disso, ele fede. Tem hálito de cova.
Por que ninguém faz nada?
O celular dele toca e ele não atende. Que novidade é essa agora?
Ele está todo aparelhado, gastou sua pequena fortuna nessa tecnologia esganiçada, todas as inovações coreanas empaturram seus bolsos de plástico e ele não vai atender o celular?
Existe algum código nesse jogo futurista e eu esqueci de pegar as instruções.
Como pode o destino ter reservado um lugar ao lado de um pulha desses, durante quatro horas?
E as pessoas ainda vêm mijar em cima de mim. Como pode? Elas comem fandangos durante a viagem, maxilares nervosos devorando o isopor, compram sequilhos nas paradas e passam gritando umas com as outras enquanto os restos mortais dos seus sequilhos transbordam pelo caminho, cuspidos das regiões mais remotas de suas obturações. Para cair onde? Em cima do meu livro antigo de capa amarela. Estou com a cara enfiada dentro dele há quase duas horas sem concluir uma linha. Elas, as passageiras ignóbeis, se dirigem ao banheiro, com a calça de cintura baixa comprimindo seus orgãos genitais já avacalhados e gastos. As banhas saltam pra fora da roupa.
É abominável tudo isso.
E eu sou obrigada a assitir esse espetáculo caduco nos meus últimos dias de férias? O que é isso? O Circo do Horrores? Olha o prazer dessa aqui. Esturricada de sol, com cheiro de baconzitos exalando de todos os seus poros abertos e uma latinha de cerveja na mão assada. Um leitãozinho prestes a ser devorado.
Elas gostam disso. Existe uma volúpia em chegar ao andar mais baixo da existência.
Gostam de mijar no banheiro dos ônibus de viagem, aquele em que não cabe ninguém. Elas gostam de não caberem nas coisas, de serem expulsas pelos cômodos mais vis, de serem esgotáveis, solidamente empilhadas, umas sobre as outras. Elas desejam com o mais cruel dos sorrisos essa ampla devastação. Estão aqui pra isso. Para serem despetaladas sem piedade. E gratuitamente oferecem seus flancos gordos para a marginália sedenta. Só existem dois lugares onde podemos ficar. No palco ou na platéia. Cara ou coroa. Par ou ímpar.
Eu estou na platéia e não gosto do que vejo. Isso é a diversão pra elas. E também - e isso é o mais fascinante pra essas mulheres barbadas -, elas sabem que tem público nas extremidades, sentados nas últimas poltronas, e por isso fazem de próposito. Elas se amontoam como abelhas em volta do mel. Espremem-se umas contras as outras e esperam aplausos vagos. A mais velha passa por mim e amassa meu rosto contra sua pança inflada. Desejam compartilhar suas ruínas.
Elas dormem bem, são violentas.
São capazes de tudo, pode apostar.
Precisam devolver os sapos mal digeridos de alguma maneira. Olha essa vaca. Ela finge que não consegue abrir a porta do banheiro. Quer chamar atenção. Daqui eu não me levanto. Eu paguei minha passagem, minha senhora. Eu tenho direito de permanecer sentada e calada. E não sou funcionária da Viação Cometa. Elas não se prepararam para viajar? Querem uma ajudinha para se agacharem também?
Por que essa porta é tão difícil de abrir? Já estou suando. O canalha, o pulha das maquininhas portáteis finge que não vê a acrobacia que faço para ajudar essas mulheres, a porta emperrou. Ele é mais um dos setecentos cegos que me perseguem.
Tem que se preparar, minha gente. Eu me preparo. Horas antes, faço o serviço completo. Tenho minhas listas. Sou prática. As viações deveriam distribuir folhetos: Chegar de banho tomado, desentupir os ralos antes de sair de casa e escovar a dentadura.
Que viagem horrível! Estou sentada praticamente no mijo, poltrona número quarenta e dois. Nunca mais sento no fim da linha.
Quarenta e dois dá seis. Seis é um bom número. Talvez me dê sorte. É o meu número, afinal de contas.
Por que eu não apago de uma vez? Se ao menos esse cheiro me anestesiasse...
Ele ronca forte. A máquina de telefone, e-mail, i-pod, central de atendimento, refúgio nazista, compras vinte e quatro horas, net e site de relacionamentos que está em suas mãos, solta os ruídos mais improváveis, vozes entrecortadas e chiados, ouço algo numa língua indecifrável. A máquina menor faz os barulhos mais detestáveis que a modernidade se empenhou em produzir.
Estou sofrendo.
Passo um por um, os episódios da viagem.
Praia, barata, praia.
Irmão trancado na quitinete, andando pra trás enquanto corto as cebolas. Ele pensa que se virar de costas para mim, uma larva vai escapar por entre as cebolas. Viro-me de repente e dou de cara com a cena. Os holofotes gritam, a casa grita, os talheres esperneam. Só nós dois nos mantivemos quietos. É melhor não contrariar.
Adoeci logo depois. Fazia cinquenta graus. A casa suava indiferente aos trovões.
Subi a serra. Mãe biruta, mais barata, rato morto na cachoeira, mãe biruta, chuva.
E agora isso: o mijo.
Por que não me tornei uma vaca?
O nosso século deveria ser o das vacas.
Eu queria muito ser uma, dessas bem tetudas. Eu tenho potencial. Em todos os sentidos. Mas até nisso eu falhei. Não se pode querer tudo;
Eu quis.
Bem-feito.
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As pessoas morrem de medo de envelhecer (por isso inventam máquinas, é uma maneira de continuarem jovens, são os novíssimos anciões antenados do futuro).
Eu também já tive esse medo.
Mas hoje, depois do mijo, da barata e do rato da fonte (sem contar toda a espécie de folhetins da família Rivotril), eu percebo que o único sentido é o da queda.
Há uma volúpia nesse avanço.
Eu me vejo caindo cada vez mais. E mais e mais, vertiginosamente.
Caindo assim, dessa altura, me torno mais humana.
E vivo meus últimos dias em plena convulsão.
Cair, morrer, o mijo nas artérias. Putrefação. Tem uma hora na vida em que a miopía se deteriora. E vemos.
Não precisa chegar tão perto.
Há um desmoronamento.
Você olha o pai, a mãe, a casa e a pilha de recados empilhando-se na cabeceira tombada.
Nos distraímos.
Existem também os retratos.
O guarda-louças enferrujado, o cuco mudo, as sombras dos vitrais.
Míseros detalhes.
Um livro torto na estante, uma barata que passa a habitar a área de serviço sem que ninguém note, um rato morto na despensa, um excesso de enfeites e de pintura nas paredes da casa. - O zelo prodigioso não é um bom indício.
A casa está se deteriorando dentro de mim. E não sai do lugar. Isso é o mais cruel.
E eu posso sentir essa queda como se eu fosse a própria massa de concreto que despenca sobre os móveis.
Eu fraquejo no início, quase volto atrás. Mas não fui eu quem deu a largada.
A queda, se instaurou na surdina.
Ninguém que lá habita, nota. Ninguém que lá dorme, vê.
Setecentos cegos me perseguem.
Mas por entre as frestas, saída do subterrâneo, ofuscada pela noite que encendeia o pequeno lustre com seu clarão de morte, ela entra.
E toma a casa para si.
E viola um por um, os objetos descartáveis.
Ela é a dona da casa agora.
Senhora Esgoto.