terça-feira, 14 de abril de 2009

Cora

Boca mole. Pedra dura. Glória sai do dentista surpreendida mais uma vez. Sim, continuo a falar sobre obturações. Sim, só possuo esse assunto. Sim, essa boca mole me assombra violentamente. Sim, talvez crie um romance sobre a dor de dente. Sim, serão trezentas páginas de extração dentária e ainda será pouco, terá um segundo volume, ou melhor, será uma trilogia.
1)o protagonista vivencia a ida ao dentista, apresentamos sua vida antes, com todos os dentes ativos e perfilados, convivendo harmoniosos, até que a dor-de-dente começa a incomodá-lo terrivelmente.
2) Matheus - João ou Paulo, deve ser um nome Bíblico - Paulo vai ao dentista e descobre o dente condenado. Agora veremos sua preparação para o sacrifício dentário, todas as suas reflexões antes e depois da operação. A influência de amigos e familiares, alguns amigos se distanciam, a namorada foge com o cachorro Getúlio. A sua transfiguração começa, como a Transfiguração de Cristo.
3) A cirurgia é bem sucedida e agora veremos o personagem pela primeira vez, sem o dente. De súbito, logo após a extração, ele redescobre a cidade como um banguela que circula e não como um homo sapiens totalmente equilibrado dentro da cadeia alimentar. De caçador, ele vira caça. Iluminado pela visão de um mundo que não percebia - escondido que estava, atrás dessa arcada dentária inacessível em sua perfeição - Paulo se redescobre integrado à cidade e passa a conviver e redescobrir um mundo que ignorava do alto de sua ex-perfeição maxilar. Falhado, está preso por uma raiz. Violado, ele vivencia em cada detalhe, uma verdade de ouro.
Será assim uma espécie de "Divina Comédia" com seu inferno, purgatório e paraíso, não exatamente nessa ordem. Sim, a enfermidade é a única prece possível hoje. Não, não consigo descobrir em nenhum outro assunto, algo de mais relevante do que a cárie mal curada. O buraco é o coelho que sai de dentro da cartola.
A camada de ozônio é capa de todos os periódicos. Tem uma cobertura bem abrangente na guerra de assuntos sobre a banca de jornais. Hoje, descobrimos - eu e Glória - uma solução. É só enterrar carbonos e transformar o lixo das plantações em carvão. Por que eles não fazem isso? Na sala de espera, Glória via o noticiário e refletia sobre as palavras do ambientalista americano.
Depois de muita injeção, motorzinhos e moldes, Glória sentiu uma alegria infinita ao sair do consultório. A noite descia sobre a cidade e ela olhou para o céu. Obviamente, não viu nenhum céu e sim a ponta final dos edifícios, recheados por tantas janelas acesas. A boca mole e a altura dos prédios ganhavam uma aura sobrenatural contornados pelo azul-violeta de fim de tarde. Olhando para o alto, vivia uma espécie de vertigem ao encarar as pontas dos prédios que prenunciavam um início de azul e só a possibilidade desse início, de um infinito logo ali, do outro lado da escuridão, já a desnorteava completamente. O rosto anestesiado intensificava-se junto da chegada da noite. Isso tudo trouxe para Glória uma espécie de esperança engraçada. O fato de estar imobilizada nessa semi-paralisia facial - o dentista Vadim, o médico dos médicos dos implantes dentários, fez três dentes hoje, de uma só vez - e de não poder falar nada - ao enunciar uma palavra, como o adeus para o dentista, parecia que não era ela quem falava e sim um orangotango - tudo isso libertou Glória de qualquer ação vital. Até a mais banal mastigação teria de ser evitada. E olhando para o alto dos arranhas céus, ela decidiu que ao chegar em casa iniciaria a leitura de um romance. Mas qual? E essa conjectura, tão prozaica, tão frouxa, tão liberada de camadas de ozônio e preocupações domésticas, fê-la sentir de repente uma enorme alegria de viver. E de repente pensou em tudo o que lhe dava prazer e que não fazia: o capucchino da Cafeteria Adamastor, domingo de manhã e o cheiro de jornal, olhar para Jeremias durante horas e vê-lo carregar a borboleta orgulhoso até o quarto dos fundos, dormir com barulho de chuva, ir ao cinema num dia de semana e no meio da tarde, sebo do Largo da Glória, a Lapa do Rio e não a de São Paulo, a Barata Ribeiro de São Paulo e não a do Rio, comer Danoninho, rir sozinha das próprias gafes e chegar em casa e ver Jeremias na porta, sentado, esperando. Percebeu que o que a fazia feliz eram os acontecimentos da vida minúscula, o sotão da vida, o quarto de entulhos. E isso tudo recém-descoberto assim... por causa das benditas obturações: a boca mole, o início de um livro, a liberdade de poder escolher esse livro aleatoriamente, sem nenhum professor de grandes bigodes e grandes saberes palestrando listas de qualificação. Só isso já despertou em Glória uma sensação que não sentia há muito tempo: a potência da liberdade.
Que incrível essa boca mole, então! Graças a magia dessa boca paraplégica eu posso não pensar em nada importante, até porque se eu pensar, não vou ter a prontidão do fazer, do realizar. Um tijolo em cima do outro e eis uma casa. Que bom está sendo dormir ao relento! Um pouco de relento e de cigarras. Um pouco de viaduto e lagartixas. Um cheirinho de mijo aqui, um cheirinho de esgoto acolá e viramos a esquina nos sentindo vivos. Sem todos esses dentes para nos distrair! Sem tantas provisões. Um rosto imobilizado e eu não retorno ligações, nem passo no supermercado. Posso simplesmente chegar em casa e olhar o céu - da minha janela tenho acesso a uma nesga. Sempre odiei dentistas, não foi à toa que perdi um dente, mas hoje pressinto que o dentista é a salvação do mundo. E não do dente.
Ainda sinto a extração dentária, os pontos se foram com seu desenho de aranha negra, mas a sensação de manca, ficou. Falta alguma coisa nobre na minha carcaça agora. Quando a gente morre, sobram os ossos e a arcada. Os meus ossos possuirão para todo o sempre a extração dentária. Esse acontecimento é um troço que vou levar para a Eternidade.
Às vezes penso que Deus tem algo de Glória, investiga os acontecimentos do sotão e não Lhe interessa os crimes bárbaros. Ao chegar na porta do Céu, Deus perguntará: "Por que deixou apodrecer um dente, Glória?" E Glória em sua timidez incurável: "O pior não foi o dente, Senhor, foram as mentiras e omissões. E todos aqueles à quem virei as costas." Ao que Ele retrucará muito calmo: "Continuo sem entender. Por que foi perder justamente o molar? Um dente tão precioso, o primeiro da hierarquia dos dentes. Por que, Glória?" E ela cairá fatigada aos pés do Senhor, implorando o perdão. Sempre imagino que Deus tem a obsessão do pintor. Se nasce uma manca, é porque Ele quis assim, se existem grandes catástrofes, isso faz parte de Sua pintura, exatamente assim. E não gosta de intromissões humanas em Suas obras. Como um Leonardo Da Vinci ou um Michelangelo. E eis que deixei cair uma uva da taça de ouro.
Aqui embaixo, ninguém vê, ninguém sabe da existência desse buraco, só Glória. É o seu segredo. Só ela sente essa ausência eloqüente, alçando vôos em sua corrente sanguínea. Seu paladar mudou e até o olfato, já não mastiga do lado direito.
Sou definitivamente a Senhora Gauche. E entre mim e a ausência de dente, os milhões de brasileiros. Não me sinto mais tão só, uma mulher distante do mundo, não, hoje eu faço parte, sou mais uma entre as milhões de trabalhadoras desdentadas desse meu Brasil!
Meu país.
Falo isso de boca cheia.
De buracos.
Vou até torcer para algum time. Pronto, decidi. Chega de brigar com os fogos e os donos dos fogos e morteiros no domingo, chega de reclamar das torcidas escandalosas e pornográficas. Não. Estarei na arquibancada das Brasilândias, desse país recém-descoberto, se abrindo, se alargando com sua enorme arcada manca. Sou manca.
Hoje, andando no Centro da Cidade, em pleno metrô do Anhangabaú, me senti mais Mangue do que nunca. Bom Sucesso, Belford Roxo, Grajaú. Quase bati no peito, me insuflei toda, falei com os camelôs, dei um alô, eles responderam, eu faço parte, ora bolas, perdi um dente, eu tenho direito de andar familiarizada com o chão de pedrinhas sobre o Viaduto do Chá. Depois que extraí o dente, logo no dia seguinte, resolvi partir pro centro antes do trabalho. Era bem de manhãzinha, o céu ainda estava escuro e eu andava pra lá e pra cá em pleno comício de mim mesma. O orgulho brotava como hortaliças de um ex-quintal árido de glórias. Eu, sem o dente, era o próprio Jeremias depois de abocanhar a borboleta e saltar esfuziante até o quarto dos fundos. Nunca amei tanto o Viaduto do Chá. Queria me dar um banho de chuva, comprar Alfazema, ler a mão com a cigana Rosa, comprar uma camiseta do Corinthias... Não, aí não. Aí também já seria demais. Eu sou flamengo, sempre fui flamengo, só que o hino do Fluminense, cá entre nós, é muito melhor. Agora sem o dente é o momento de repensar. Pelo hino eu vestiria a camisa do Fluminense, só que justamente a melodia rubro-negra diz: "Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer." Não sei como resolver essa questão, mas preciso me entregar aos desvarios de uma torcida organizada, aos cuspes e xingamentos, às bandeiradas, aos choros de decepção. Quero fazer parte de um movimento nem que seja só para celebrar a minha entrada no clube dos banguelas.
E lá foi Glória, descer a escada rolante do Metrô Anhangabaú, empurrada pelo povo, mais brasileira do que nunca, mais trabalhadora do que jamais imaginou ser e ainda sem o seu dente principal, sem a eficiência imperiosa da mordida.
Feliz e realizada trabalhou o dia inteiro satisfeita, sorrindo por dentro, no fim de tarde ainda teria a cereja do bolo: iria ao dentista, consertar outro dente, ao todo são dezessete dentes negligenciados ao longo dos anos. Graças à meu Bom Jesus, muitas anestesias complementarão as recentes descobertas e criarão novas pausas dentro dos meus dias. E mais tarde, já de noite, de boca mole e vestido verde, saiu do consultório dentário como a mais realizada das mulheres e libertada de qualquer impulso de dever cívico. Ela poderia chegar em sua casa, parar em frente à estante e escolher o livro que mais a aprazesse. Um livro sem qualquer tijolo, sem qualquer cimento, um livro-buraco.
No telefone celular, viu a chamada não atendida, não poderia falar agora, não tinha boca pra isso, mas preocupada abriu sua caixa de e-mails receosa de ser algo urgente. Não era.
Lá estava o recado de Antônio, seu irmão que nunca escreveu.
No recado, um anexo.
Abriu e viu.
Cora.
Olhos azuis e sorriso de uma alegria sem medo, leve, recém-nascida.
A folha em branco na carne e na alma. Todos os domingos de manhã. Todos os cheiros frescos de café e jornal. A mãe, que tinha perfil de bailarina, segurava a filha no quintal da casa e um gatinho preto enrodilhava-se no canto da mesa. Bem vestida, a mãe tinha aquele rosto sem manchas, tão limpo e quase etéreo. A filha, Cora, também era o ser mais higienizado do mundo. A casa, os gatos e os vasos de plantas, completavam harmoniosamente o quadro, só faltava uma joaninha saltar da fotografia. Tudo em tons pastéis e jarros com plantas tão desabrochadas, espirrava da foto o rosa sobrenatural das flores. Plantadas em outro mundo: a rosa, a filha e a mãe. O pai era quem tirava as fotos e sua presença repousava entre os quatro cantos da casa. E havia entre eles a calma de um curral.
Glória teve vergonha do buraco. A extração doeu, como se arrancassem o seu molar agora e sem anestesia.
O orgulho rubro-negro converteu-se em desânimo e Jeremias não era mais, o gato da borboleta.