O ano virou e Glória continua fazendo inalação.
De novo ela se esconde embaixo da "tenda" improvisada de lençois, corta o rabinho do coador de café, enche a xícara de água quente e ali mergulha com a alma entregue à Deusa da Purificação. Deus me livre! Sai desse corpo que não te pertence, mulher!
Entra ano, sai ano e Glória está na sala respirando água quente. Parece até algum tipo de ritual bizarro, uma espécie de seita.
Infecção pulmonar foi o diagnóstico dessa vez. Glória está se superando.
Além de velhinhos carentes e abandonados pela família o Pronto-Socorro se orgulha em ter entre seus pacientes usuais: Glória. Aquela mulher eternamente com a senha nas mãos e olhinhos marejados, a saia amassada feito embrulho de presente, papel salofane, é ela ali, sentada na recepção. Até que não é tão desagradável a recepção desse hospital, pensa Glória enquanto assiste um desenho animado na televisão muito mais de vinte e nove polegadas e tela widescrean. É assim que se diz? Enfim, é uma tv de plasma. Uma LCD, atenção não confundir com LSD como Glória já fez apresentando um evento importantíssimo e caretíssimo onde era Mestre de Cerimônias. Sua chefe queria lhe matar quando repetiu pela quarta vez:
GLÓRIA (de terninho cinza e sóbrio) - E no final do evento, sortearemos uma TV vinte e nove polegadas de LSD.
Todos os funcionários da empresa riram constrangidos. A sua chefe, muito correta e que adorava palavras como: conformidade, cauteloso, prudência, modos, sustentabilidade, gradativo, implementação, entre outras palavras onde nenhum improviso seria cabível, morria por dentro.
A mulher chegou perto do palco pela última vez e sussurrou pra Glória que teve que se abaixar para ouví-la.
CHEFE IRRITADA - Não diz mais TV de LSD, não, por favor. Diz TV de plasma.
Depois daquele evento, Glória nunca mais foi contratada como Mestre de Cerimônias.
Voltando ao Hospital:
O enfermeiro que a recebeu primeiro pra fazer sua ficha e medir sua pressão, deve sonhar em se tornar médico cardiologista e por isso mesmo, era metido a sabichão:
ENFERMEIRO METIDO A SABICHÃO - Você tem algum problema de saúde?
GLÓRIA (prontamente) - Não. Nenhum.
ENFERMEIRO - Faz uso contínuo de algum tipo de medicamento?
GLÓRIA - Sim. Rivotril.
ENFERMEIRO (numa tacada só) - E você toma Rivotril pra que? Depressão? Insônia?
GLÓRIA (erguendo a coluna e a dignidade) - Insônia.
ENFERMEIRO - Então você tem problema de saúde, minha filha.
Silêncio doloroso. Pra Glória. Gol pro Enfermeiro. Ela nunca tinha pensado por esse prisma, queria falar: "Mas são só três gotas, moço. Às vezes, na pior das hipóteses, quatro. E três gotas não são assim algo tão grave, não é? Vamos ser razoáveis. Tem gente que bebe, que fuma, que é viciada em sexo, em mentiras, em roupas, em roubar, matar, enganar, estuprar, em fingir afeições, pessoas grudentas, possessivas, intolerantes, inconsequentes, com cinco carros na garagem, eu só tomo três gotinhas de Rivotril. Isso é algum crime? É tão grave assim?" Mas preferiu ficar calada. Ela entendeu, ele era maldoso porque se sentia no lugar errado. Um homem que sonha em se torna neurocirurgião, só pode sentir-se mal tirando a pressão e fazendo perguntinhas idiotas. Ele não coloca a mão na massa, então, prefere humilhar os pacientes. Pôxa, ela já não estava bem. O peito tomado, a garganta seca, dores no corpo, sem ninguém pra lhe fazer companhia, sem eira nem beira e esse troglodita metido a enfermeiro ainda queria tripudiar? Agora ia entrar na sala de recepção num muxôxo.
Assim que entrou, Glória avistou um homem lindo. Além disso, estava brincando todo feliz com o filhinho, jogavam uma bola engraçada, tipo uma bexiga, só que com dedinhos. Ao lado dele, muito provavelmente, ali de cabelos encaracolados meio aloirados devia ser a sua esposa. Ela usava All Star. Glória admirava muito as mulheres com maridos bonitos que usavam All Star. Era a demostração de uma auto-estima elevada. Glória jamais usaria All Star numa situação dessas. Infelizmente. Ficar no hospital, baixinha e com esse homem lindo brincando de bexigas pra lá e pra cá não dá, seria exigir de mais de si-mesma.
Ao entrar na sala do médico, Glória começou:
GlÓRIA - É verdade que na maioria dos hospitais, oitenta por cento dos casos não são verdadeiros, são de pessoas carentes inventando doença?
MÉDICO SUCINTO - Sessenta por cento dos casos.
GLÓRIA - Na maioria são velhos, né?
MÉDICO SUCINTO - Sim. Gente idosa.
GLÓRIA - O engraçado é que eu entendo eles... São abandonados pela família, se tornam um estorvo e não tem com quem conversar...
MÉDICO SUCINTO - Eles inventam que perderam a receita e voltam.
GLÓRIA - Por isso que eu não quero ficar velha. Assim, muito velha.
MÉDICO SUCINTO - Nem eu. Existe alguma possibiliade de você ter ido pra algum lugar onde tivesse Dengue?
GLÓRIA - Ai não, eu não estou com Dengue, não é doutor?
MÉDICO - Acho improvável, mas vamos fazer os exames.
Depois de enfiar aquele palito grosso desagradável goela abaixo de Glória, ele prescreveu os exames. Glória passou a tarde no hospital, fez amizade com duas meninas que sofriam de enxaqueca e ainda com a mãe de uma delas. Ficou com inveja da menina que estava acompanhada da mãe. Quis roubar a mãe da menina. Gostou dela, parecia uma boa mãe. Companheira, divertida e forte. E aparentemente não competia com a filha. Glória ficou esperando alguma deixa pra ver se isso acontecia, mas achou realmente que não. Ela estava feliz no papel de mãe e não era a amiguinha gente boa que saía pra tomar chopp com a filha e paquerar os amigos dela. Odeio essas meninas que ficam falando: "Minha mãe é a minha melhor amiga." Que coisa chata! Mãe é mãe. Amigo é amigo.
Glória queria muito ter tido uma mãe com cara de mãe e não de irmã mais nova.
Pegou o telefone das mulheres do hospital, mãe, filha e a professora de crianças especiais que também sofria de enxaqueca. Num flash imaginou a Mãe com M maíusculo, fazendo um grande bolo de carne com purê de batatas e recebendo Glória para um jantar em família. Todos estavam felizes e sem enxaquecas e Glória derrubava o vinho na mesa quando ia se servir de um pouco mais de purê. Ela não estava acostumada com tanta felicidade, então precisava de uma toalha de renda manchada de vinho e umas caras descontentes em volta pra atestar que ela ainda era ela mesma e não um extra-terrestre.
Nesse momento e num susto, Glória tirou a cara do inalador e olhou pra frente, o olho fixo na parede vazia e descascada da sala e sentiu que algo se movimentava do lado de fora. Foi então que virou-se. E ali estava ela.
Sempre depois de fazer inalação ela descobria alguma coisa óbvia e ignorada.
Viu a árvore do terreno vizinho. Estava escuro e a árvore balançava de forma tão doce seus galinhos finos. Ia de lá pra cá. Daqui pra lá... Glória pela primeira vez sentiu uma paz imensa vindo da paisagem. A paisagem já não era algo estranho e hostil: era a grande árvore fina e amena. Ela amansava a arquitetura tão rígida dos prédios vizinhos. A árvore era um pouco aquele pai lindo que brincava de bixiga com o filho e amenizava assim, o clima de horror que sempre exala dentro de um hospital. Mesmo equipado de telas planas e desenhos animados, desanimadores.
Glória também ouviu de uma enfermeira bem novinha, enquanto lhe dava a injeção, que a sua veia era difícil. Não gostou disso. Nunca ninguém tinha reclamado de sua veia. Pelo contrário, ela parecia bem simpática. Enfermeiras muito novinhas não sabem de nada. Deve ser estranho SER um FETICHE. Porque enfermeira, aeromoça e professora de ballet soam sempre como um fetiche.
A árvore continua seu doce balanço à caminho do mar. Glória observa e pára de pensar em coisas como: injeção e abandono. Por alguns segundos Glória deixa ser Glória para ser... mar. Essa árvore era o próprio Oceano Atlântico inteirinho. Assim como as ondas que se intercalam de ressaca em ressaca à uma longa calmaria, ela também oscilava dentro de uma existência contínua e desigual. Era o grande ballet da natureza.
E Glória escreveu, orientada pelo pulmão fraco e a árvore forte e tímida.
A ÁRVORE DO TERRENO DA FRENTE
"Essa árvore tem vontade de chorar, mas não pode.
Ela me alivia, paira nela um frescor, a juventude das coisas que queremos abraçar, mas não podemos.
Ela é a minha melhor amiga e eu havia ignorado isso até esse momento.
Sempre quando faço inalação descubro algo desse tipo.
É só olhar pra ela e já me sinto melhor, amparada por seu balanço meditativo. O vento balançando seus galhos, tão à vontade um estão com o outro.
Ela balança de lá pra cá. Parece que vai cair.
Mas não cai.
É obstinada dentro de sua leveza e tem a aparência de uma menina magrela e míope.
Mas de raízes fartas e generosas, uma sensível lealdade com o vento ora amigo, ora algoz.
Esse vento que estimula ao mesmo tempo que desestrutura.
Que violenta ao mesmo tempo em que lhe dá a mão.
Ela é a árvore da permanência, das coisas que ficam mesmo oscilando.
Das coisas eternas que guardamos em nós.
É a árvore que cresce dentro de um terreno abandonado, cheio de gatos e detritos que são atirados diariamente pelos moradores dos prédios vizinhos.
Ela não perde sua leveza. E esse constante balancinho. Ora pra cá, ora pra lá.
É o pêndulo da minha história.
A mágica que me faz existir e acordar todas as manhãs.
Essa árvore, ela não esmorece.
Até eu já joguei lixo em seu terreno.
Até eu já dei aquela velha cuspida de desdém.
Mas ela permanece e nem implora.
A velha amiga e talvez única, que a gente têm.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
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