quinta-feira, 9 de abril de 2009

Um homem feliz

Ele caminha pela Avenida Pompéia, blusa verde e calça jeans. Parece ter acabado de acordar. Quem é aquele, estampado em sua camisa? Che Guevara, Mick Jagger ou Jesus? Não sei, mas Glória está segura de que o homem que a veste é o mesmo eternizado em todos os seus textos. Àquele que ficou enguiçado na lembrança. Os dias passam e esse carro não sai da garagem... Ôo figura, dá espaço pra outro carro entrar!! Ele parece mais forte, mais encorpado. Deve estar se alimentando bem. O jeito que ele caminha é indescritível. Não usava óculos escuros - o que é até uma atitude original para um músico - e o sol não parecia lhe incomodar. Estava com jeito de quem acabou de sair da cama. Eram duas horas da tarde. Peito aberto, cara amassada, ele tinha prazer em sentir-se vivo. Parecia tão confortável dentro daquele corpo... Coisa que ela invejou.
Glória passou mal, na verdade. Está até agora febril, abatida.
Na última fileira de bancos, dentro do ônibus vazio, ela parecia querer que o ônibus parasse, deliciando-se que estava, com cada detalhe de sua movimentação. Doeu. Pensou que quando chegasse em casa à noite, iria lhe telefonar - apesar de ter-se prometido ficar quietinha no seu canto, estudando e compenetrada em suas recentes descobertas, sem palavras para denominar essas recentes descobertas - mas quanto mais refletia e conseguia vislumbrar a sua figura, agora já distante, escapando da paisagem, mais percebia que seria irresistível não o procurar. O homem caminhava de forma tão natural, era tão prazeroso vê-lo existir comodamente, embaixo daquele sol de quinta-feira, na véspera de um feriado Santo...
Glória ganhou um torcicolo, que se perpetuou durante todo o dia, de tanto olhar para trás.
Queria que ele a visse. Não, melhor não. E lembrou-se do dente extraído. Ele bem que podia deixar apodrecer um dente. Assim, como ela. Então haveria uma equalização. E finalmente haveria um reencontro. Mas agora não dava. Tão camisa verde desse jeito, cheio de Jesus e Micky Jagger no peito, cara de bem dormido e confortabilíssimo dentro de si mesmo, não tem condições. Isso só confirmava que a distância entre eles continuava abismal.
E só havia uma maneira desse abismo diminuir.
Que caíssem, um por um, todos os dentes de sua boca.