domingo, 10 de janeiro de 2010

Feliz? De aluguel. E tudo o que eu não pude - ou não consegui - dizer a você

Júnior,

(um dia eu queria parar de falar);

Eu não acredito em felicidade.
Só um idiota é feliz.
Tem que ter uma capacidade de abstração absurda pra ser feliz. E é preciso ser um pouco alienado, não?
Felicidade não existe. Quem você conhece que é feliz? Ninguém é.
Talvez o Manuel, porteiro do prédio do nosso pai, seja. Ele vive rindo e é meio bobalhão. Tem cara de duende urbano.
Essa propaganda de alegria e felicidade a qualquer custo me cansa e aí você tem que comprar, comprar, comprar, pra ser mais e mais e mais feliz.
Que papo é esse? É exautivo.
É vão.
Como se entulhássemos um buraco na parede, um buraco estreito, ordinário, um buraco que serviria apenas para um aperto de mãos, sim para isso serviria muito bem. Seria alías estúpido dizer que por ali não passassem dois braços, que mãos saudáveis, com o mínimo de esforço físico não pudessem se encontrar.
Como esse tipo de desejo está cada vez mais raro, armazenamos coisas no buraco entre uma parede e outra.
Enchemos esse vil buraco, seria um buraco menos ordinário se acontecesse de; por exemplo, como posso dizer? Se acontecesse de alguém morrer, é isso, alguém morrer exatamente entre a fenda dessas duas paredes que não se falam. Um ataque fulminante do velho funcionário de uma fábrica de amendoins entre os dois lados, na passagem entre os dois cômodos. Na rachadura um corpo tomba e dignifica o vão.
Ressaltada pela antipatia de um marimbondo que ali se instalou com sua família, as paredes se distanciam uma da outra, dia após dia. E ali, de repente, um homem dá seu último suspiro de vida. Como se alguém morresse em cima da fachada de um prédio baixo, atrapalhando a harmonia das ruas, avacalhando os vizinhos e impedindo a promoção da síndica. Morrer entre. Morrer sobre. Morrer atrapando a paisagem.
Nesse buraco, nessa pequena fresta entre dois cômodos de um pequeno cortiço, entulhado com traquitanas de toda ordem, esse excesso de bugigangas, falhas, recados, bilhetes atravessados na noite e já engordurados pela massa do pastel, os dias passam e o buraco cresce, alarga. Tralhas que não servem pra mais pra nada, nunca serviram, mas nos dão a falsa impressão de ordem, ali depositadas, artifício infantil e apaziguador de consciências pesadas. Todo dia o montinho é acrescido por novidades, um palito de fósforo por exemplo. Quer algo mais edificante que um palito de fósforo? A fenda com as mil coisas espremidas, amaciam a vida. É o anti-despejo os moribundos objetos. Nossos bens comuns.
(Como se existisse algum bem. Comum.)
Como se só vivêssemos para armazenar gordura em cima da esferográfica do papel. E através desses pequenos entulhos, obras infieis, silenciosos cadernos, vigas emprestadas, canos e amortecedores, ressoasse por trás, como uma voz na surdina, um sopro de glória.
De compaixão.
Felicidade não existe, Júnior. Mesmo se conseguíssemos armazenar todas aquelas coisas que nos traíram anos atrás, lembra?
A felicidade morreu quando o mais ínfimo grão de areia surgiu sobre a terra.
- Na verdade não é nem que a tal felicidade não exista. Eu a vejo na cara de um cão que dorme. É que qualquer espécie de felicidade mata.
"Mas atraves da fenda, eu posso ver, é muito claro isso pra mim. Tão claro que sorrio com gosto, como no outono quando as cores se misturam em cima do telhado, com aquelas folhas mortas. Sim, o buraco, o vão, racha, nela guardo todo meu tesouro, possuimos algo sim, bebê. Sou grato pelas coisas que consigo obter, as minhas coisinhas, pequenas distrações, agulhas da existência, felicidades portáteis.", diz o segundo rosto, aquele que nos dão voz.

As coisas nos possuem e não o contrário. - O terceiro rosto intervêm -
Elas mandam em nós.
Sempre foi assim,
veja esse apartamento.
Nada aqui é meu,
Nem o gato.
A vida é de aluguel.
Pedimos a prazo, engolimos sapos, criamos crediários e mais crediários, nos endividamos, pra quê?
Os objetos que amontoamos aqui dentro nos dão uma surra diariamente.
Mas tudo isso é porque desejamos demais. Ou porquê, talvez; precisamos de alguma garantia. Uma prova. É isso. Precisamos provar que nossa vida não foi em vão.
Esses pequenos lenços riscados de chuva e as fatais manchas de suor embaixo do braço desse paletó, nos dão a falsa impressão de que sobrevivemos.
E que um dia, existimos.
- Aqui tem um rastro, criança. Vem. Siga esse rastro. Eu deixei pra você saber que um dia eu estive aqui. Mesmo que você só consiga enxergar isso atraves da ponta desse cigarro ou atraves do odor de suor misturado com lavanda sob a manga do vestido, está vendo esse capuz? Um dia eu chorei sob ele. O pequeno engradado vazio foi presente do meu avô e o bolo está assim deteriorado, sugado por vermes, porque esquecemos de comer. E dividir. E mastigar com força. Não importa.
Veja.
Saiba.
Durma bem aqui na extremidade esquerda onde um dia, vários dias, eu tentei dormir e não consegui.
A criança vai. Obedece a voz do seu interior nascendo.
E sonha que morre. E sonha que é outra. E vomita na colcha íngreme.
Dormir é abismo. Uma entrega sem fim. Só para os corajosos, destemidos, sanguinolentos. Maníacos do parque.
Pessoas que dormem bem são assassinos em potencial.
Preciso intoxicar o buraco entre as duas paredes do meu cortiço com todos estes objetos para sobrar;
Algum sorriso para a hora da foto, retrato de documento. Passaporte chinês.
Júnior,
O buraco na parede é uma pista falsa. Não durma ainda, irmão. Falta eu arrancar uma ponta de confissão dessa noite finíssima, quase de seda, que estampa um desenho claro sobre nós.
Talvez um dia tenhamos coragem para arrancar um por um todos os biodegradáveis, retratos sem molduras e esse velho baú, para, quem sabe? Atingir com o máximo de silêncio e um cuidado alvíssimo de delicadeza a mão que nos espera do outro lado.
E elas consigam finalmente, se tocar.
Tenho a sina da esperança.
E apesar disso, eu sei, que a gente passa a vida almejando uma coisa que não existe, Júnior.

Não seria melhor arrancar essa mania de claridade em nós e encarar a realidade e dentro dela, viver da melhor forma possível? Com alguma dignidade?
Vanda por exemplo, nossa mãe.
É o tipo que acha que é feliz. Faz pose de feliz. E ái de você se contrariar ou questionar essa pose. Até o espelho fica constrangido quando ela chega com sua fantasia de odalisca. E emudece. Deixa de ser espelho para ser cúmplice.
E olha que horror! É uma máscara hedionda, triste a da felicidade. Porque é falsa.
E tem prazo de validade. As pessoas gastam a máscara, ela cai e depois saem por aí sem um rosto. No meio da rua e sem rosto.
São como foliões tardios que esqueceram de tirar a fantasia de carnaval e ignoram a chegada da quarta-feira de cinzas.
Eles não querem ver.
E pra não ver, colocam mais um carro na garagem, fazem peeling e cantam no karaoke.
Quer coisa mais bizarra do que kara o quê?
Me diz, Júnior.
Existe?