quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

ANO NOVO sem cauda

Glória está sentada em uma cadeira no meio da sala, cheia de imagens de Santos nas mãos, rezando um terço e acendeu velas pela casa, ansiosa pela virada de ano. Glória está prestes a virar essa página. Do alto de seu vestido novo comprado após muitos simpósios e palestras com as vendedoras e clientes da loja, para conseguir decidir qual deles - eu contei, ao todo Glória experimentou sessenta e cinco - ela finalmente deveria levar, ela sacou o mini-I Ching da bolsa dentro da cabine e decidiu pelo rosa. Agora, está morrendo de calor dentro dele.
Ela bebe um gole d'água "da purificação da virada" enquanto pensa em Jeremias. Nessa altura e com os seus delicados tímpanos de gato, ele deve estar escondido dentro do armário pedindo socorro às surradas e agora arranhadas roupas de Glória.
As velas, mandigas, pé de pato, bangalô três, vezes, calcinha nova (não tão nova, mas, vale mais do que ser nova pois é da "La Perla" e foi um presente), o champagne, as fitinhas, as romãs e uvas; está tudo preparado para o reveillon de Glória.
Mas, ela deseja coisas tão simplórias pro ano que entra... Só quer para 2009 um salário maior, um prêmio em algum edital que banque sua viagem pra França, um namorado amável, bonito, bom de cama, inteligente e sensível e que não seja GLS, escrever um livro, um filme, um curta, três peças e um romance e tudo com patrocínio da Petrobrás. Só isso.
Com essa lista, talvez Glória tenha que matar uma galinha e um coelho pra encrementar suas mandigas!
Vai Glória, se arruma!! São sete da noite, mas até você interpretar o hegraxama de 2009 já vai ter passado da meia noite.
Ela continua sentada em uma cadeira de palha e madeira verde no meio da sala, energizando os chakras. Entrou em uma hesitação: Dá sorte ir pra Copacabana ver os fogos e fazer os pedidos com toda aquela energia ou não dá sorte, dá sorte ou não sorte? E meia noite, o momento mais aguardado e em que todas as pessoas estarão unidas na vibração de um ano melhor, o Brasil em brasas, ela:
1- Dá um abraço no pai (que provavelmente estará nesse momento abraçando a madrasta) 2- Come as uvas
3- Reza pro Anjo da Guarda Mikael - arcanjo de 2009 -
4- Pra Oxóssi - orixá de 2009 - ou
5- lê a sorte no livrinho novo que comprou - para 2009?
Talvez seja melhor correr com a mala em volta do quarteirão, pra viagem dar certo, ou beijar uma boca. Mas, que boca? Bom, em Copacabana estarão dois milhões de bocas a disposição, é só fechar os olhos e atacar uma qualquer e ter a sorte de não ser um travesti. Mas Glória não vai pra Copacabana, pelo menos foi isso o que prometeu (e suas promessas não valem um níquel). Glória vai pra uma reuniãozinha familiar na Lagoa e depois pra uma festa em Ipanema com a Cris. Agora, ela encrencou: o melhor é beijar uma boca, o melhor é beijar uma boca. Ai, Meu Deus já estou vendo Glória arrastando o vestido novo (longo e rosa) pelas areia mijadas de Copacabana! Seu pai sentencia, eufóbico com o bairro mais popular do mundo: "Aquilo lá é uma latrina!"
Glória, apague essa vela agora, não vai incendiar a casa em 2008. Pelo amor de Deus, espera um pouco, deixa o ano acabar naturalmente, não precisa apressá-lo.
Preciso me despedir, sem Jeremias aqui, alguém precisa cuidar de Glória. Essa foi a macumba que me restou pra passagem de ano.
Glória, fecha o I Ching!!!!!

domingo, 28 de dezembro de 2008

YEMANJÁ

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência! É isso o que Glória quer dizer hoje. Ela não vai falar sobre os seus dias ensolarados e tão prosaicos no Rio de Janeiro pois que isso não dá uma história. Se ela jogou I Ching interrogação - não acho a interrogação desse lap top alheio, quer dizer, acho, mas não atinjo - Sim, Glória jogou. Estava na praia diante da barraquinha de picolé, ao lado do tio Souza que vendia suas cervejas geladinhas, na praia só tinha bicha e sapatão e o mar estava bravo. Glória pensava: fico ou saio, fico ou saio, fico ou saio e o I Ching ali na bolsa descansando, pegando um mormacinho.
Passou. A vontade passou. Glória entrou no mar e Yemanjá aliviou a tensão, Glória ficou mais uma hora, sem beber, sem fumar e sem contar pro vendedor de queijo coalho toda a sua trajetória pessoal e pedir uma opinião sobre que caminho seguir. Não. Glória não abriu a boca. Como isso aconteceu eu não sei dizer. Para evitar qualquer mal entendido levou um livro e leu sobre Pedro Álvares Cabral. Glória está em um momento patriótico.
A noite é que foram elas. Depois de ir ao teatro, se viu na fila de uma boite com uns amigos, espirrava e avistou ao longe um ex namorado maníaco-depressivo e psicótico. Ficar ou ir embora, ficar ou ir embora interrogação. Ah, não teve dúvidas: abriu o I Ching ali mesmo, na fila imensa, e saiu de novo: "A RETIRADA", Glória nem leu o resto, entendeu. Seus amigos viram e quiseram jogar também. Saiu pra todos: "A Retirada", resultado, Glória foi embora e levou todo pessoal com ela. Foram tomar um chopp no Baixo Gávea. No caminho, pensou se seu livrinho da sorte não estaria viciado na página: " A RETIRADA". interrogação.
No final das contas, todos, dos mais crédulos aos mais ignorantes, dos mais bobos aos mais inteligentes, dos mais rígidos aos mais flexíveis, acreditam em Anjos da Guarda. A humanidade quer ser salva. A humanidade precisa de um Deus. Todos querem ser guiados, acolhidos, amparados. E nisso não há nenhuma vergonha ou demérito. É nossa condição humana. Uma inevitabilidade ancorada na nossa necessidade em sermos aceitos e em acertarmos o alvo. Que alvo. O seu. O meu. O nosso alvo de cada dia. A vida é curta e não queremos errar. Seria um luxo. Errar. Nosso desejo em atingir a meta é implacável, além do medo desmedido e incofessável de voltarmos pra casa sozinhos.
Mas, apesar de tudo isso e por tudo isso: é preciso errar. É necessário.
Glória tem consciência disso, mas sua urgência com a vida é maior e estrangula qualquer distração. No restaurante, uma dor no pescoço a distrai dos amigos e da multidão de rostos bronzeados. O Rio fervia e Glória sentia-se tão só. Com tanta dor. Girava o pescoço, se auto-massageava, mas o peso dos séculos e séculos se protegendo da vida, dos erros e das mancadas, estavam ali, acocorados em sua nuca. Até uma onça já havia pousado ali. Numa mordida. O mundo morava ali e isso era bom, pois que a alimentava, e ruim, pois que a consumia. O mundo todo se acutovelando para dar uma espiada em sua dor, querendo proteção e pedindo esmola. Todos os seus antepassados, toda uma memória. Comeu sua fatia de pizza e bebeu um suco de laranja. Brindaram. Era final de ano. Algo acabava e dava espaço para a folhinha em branco e suspensa. Glória viu um homem bonito na sua frente. Ele era charmoso, barbudo e usava óculos e boné. Glória queria casar com ele. Gostava dessa combinação toda. Havia também um hipopótamo em sua blusa e esse era um dos bichos que ela mais gostava. Depois de cavalo, garça, gato e jacaré. Ele era artista de televisão. Se Glória casasse com ele seria uma aventura, como num filme. Seria um pulo do marrom ao violeta. Purpúreo. A vida seria purpúrea. O ano estava acabando, só Glória não passava, só Glória não acabava. Então, já no caminho de volta, olhando pela janela do ônibus, ela pensou: E se a vida é na verdade, isso aqui. Esse nada. Esse engarrafamento. Essa madrugada estéril e volátil. Pessoas que eu conheci e nunca mais verei, nem sei seus nomes, informações dadas no ponto de ônibus, a conversa cotidiana com o motorista de táxi. A vida não é um triller nos moldes de um "O Poderoso Chefão", talvez eu não me case com o Al Pacino ou com o Robert De Niro, e nem possui a trilha de Mahler em "Morte em Veneza", ela não está sendo roteirizada com a graça e tragicidade de um Woody Allen e nem com o instinto de aventura de um Steven Spilberg. E se a vida maior, aquela por que tanto ansiamos é também essa que tão ásperamente negligenciamos, talvez aquela parte em que cochilamos é a verdadeira vida. A nossa ida à padaria. Aquilo que nos acontece nos intervalos entre uma coisa e outra.
Pode ser isso mesmo, Glória tremeu, pode ser que a vida maior não é a que acontece nos momentos grandiosos e sim, nesse momento aqui onde observo a cobradora e seu olhar resignado diante da madrugada carioca. Ou quando eu vejo a fachada antiga de um prédio e que me leva imediatamente pros dias ensolarados da infância, a rodinha de adolescentes puxando um fumo e rindo da minha passagem solitária, a comemoração do apartamento vizinho onde o casal dança trôpego e bêbado um bolero antigo e descompassado. O velho de bigodes platinados ajuda agora a esposa a subir no ônibus, segura suas mãos enquanto ela tenta se equilibrar no primeiro degrau, na outra mão está seu sapatinho de fita laranja, comprado hoje à tarde em uma liquidação no Largo do Machado, onde fora acompanhada de sua netinha Bianca dona de um olhar de criança fatigada e desmerecida, dona de uma corcunda precoce. A gota de suor do garçom que entrou dentro do seu olho no exato momento em que nos servia a fatia de Marguerita. A própria Marguerita, cheia de Muzzarela e manjericão. O abraço afetuoso do garçom Oswaldo que me reconheceu mesmo depois de tantos anos, quando eu ainda era uma menina simpática e magrela moradora do Leblon. E se a vida, a maior, a mais importante e profunda não se dá nas grandes escolhas e sim no meio delas, entre elas, em sua fumaça.
Interrogação.
Glória não queria errar, isso era para os outros, os bobos, os que gostam de perder tempo, os que não desejam algo "maior" em suas trajetórias.
"A RETIRADA"
Depois de pagar a conta, cada um seguiu seu rumo para casa.
De ônibus.
E Glória passou o resto da noite em comunidades virtuais. Sem erro. Sem nenhum risco.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

HEXAGRAMA 33 A RETIRADA

O problema de gripar e passar o Natal em uma cidade como São Paulo, sozinha, é que você corre o sério risco de ligar a televisão - mesmo não tendo o hábito - e assistir por exemplo, por acaso, ao Especial do Roberto Carlos.
Pronto. Aí você já foi escalado para uma nova aventura em sua vida. E inesquecível.
Você estava quieto. Parado. Aninhado em sua poltrona, lendo aquele romance que há muito tempo queria ler, tem um suco de laranja nas mãos e ele não possui um único pingo de álcool, você sente aquela amável brisa que entra, sente o alívio do ano que se vai, está usufruindo até de certa serenidade interna, quase uma paz, quase a tão sonhada tarde em Itapuã, mas aí em algum momento de reflexão entre uma página e outra, você avista a família vizinha, reunida, abrindo os presentes em seu apartamento glorioso e embrulhado em decoração de Natal. Eu contei. Eles possuem cento e quarenta e três luzinhas coloridas em sua varanda, que nem é varanda é um terraço de tão ampla. Eu estava justamente aqui, a contar todas essas maravilhosas e tão animadoras luzinhas! Os dedos coçam.
O que esses serzinhos de outro planeta e que por um infeliz acaso do destino moram em minhas mãos, querem?
Uma tarde em Itapuã?
Não. Claro que não.
Cozer, dormir, fritar?
Não. Eles estão ardendo em brasas, coçando minhas pernas, coçando minha cabeça, aflitos e desesperados por animação! Eles querem agitar. Se eu não tivesse essas mãos eu seria outra pessoa. Eu, aqui em cima, sou calma, introspectiva, gosto de silêncio, mas meus dedos? Eles falam, eles coçam, se jogam em cima de outros dedos desconhecidos, se entrelaçam, se juntam em prece, apontam, batem palmas em momentos errados, socam, investigam, furtam e denigrem a minha imagem, ainda assim eles continuam cutucando as pessoas na curiosidade de entender tudo, são fuxiqueiros esses dedos, são incansáveis.
Glória senta em cima das mãos. Jeremias finge certa discrição. Ele tenta não rir da atitude de Glória, mas seus bigodes longínquos não disfarçam um sutil movimento de deboche. Os dedos dela se agitam embaixo de seu corpo.
Glória levanta, vai fazer chá, vai fazer compressa de água quente, vai fazer alguma coisa com esses dedos. "O que vocês querem de mim agora?"
Ela sabia o que eles queriam, ela sempre soube, ainda mais depois de assitirem a família da varanda-terraço debruçada em presentes e cento e quarenta e três luzinhas de Natal enfeitando a ceia da véspera. Eles querem enviar um e-mail para um ex, um manifesto para o patrão, uma declaração de amor bem xula para um pseudo-pretendente que na verdade é um amigo, um desabafo para a amiga distante e tão querida. E como não poderia faltar, uma ofensa para um colega de trabalho insuportável e do qual ela engoliu sapo o ano inteiro. Mas como os dedinhos de Glória, esses seres diabolicamente misteriosos e corrompidos já tinham feito todo o servicinho sujo deles, não restava mais nada a fazer, a não ser ligar a televisão. Ela precisava urgentemente se distrair de si mesma. Já que não conseguia nem viajar para passar o fim de ano fora, sua vontade era ver o filme "O Anjo Exterminador".
"No ano passado assisti 'Laranja Mecânica'. Foi o meu melhor Natal."
Eu e Glória ensaiamos uma ida a locadora quando lembramos, juntas, que hoje estaria fechada.
Glória está na sala. Senta em sua poltrona e fica instalada comodamente neste dia: o dia 25 de Dezembro de 2008, aquele dia que seria o dos presentes, em sua emocionante, remota e claustrofóbica infância.
Glória olha Jeremias que está dentro de uma euforia absoluta, perseguindo um pássaro pela casa. É comum algumas Rolinhas se confundirem e entrarem janela adentro até acharem o caminho de volta. Se tiver volta.
Glória salva a Rolinha ou não salva a Rolinha, salva a Rolinha ou não salva a Rolinha?
Não. Glória não vai jogar I Ching pra responder essa pergunta. Ela é forte e saberá tomar a mais sábia decisão diante desse frágil destino. Salvar ou não salvar? Dizia Padre Antônio Vieira que essa era a questão mais importante, salvar ou não salvar sua alma? Eis a questão maior e acima de todas.
Quando finalmente Glória decide salvar a Rolinha e assim limpar a sua consciência de uma vez por todas; redimindo-se assim dessa culpa e aproveitando a feliz ocasião para se libertar de outras mais; é que percebe que ao abrir a janela a Rolinha já havia fugido por entre uma estreitíssima fresta. Como ela conseguiu passar por ali, permanece um mistério.
Glória não pôde assim, fazer a faxina tão adiada em sua implacável consciência.
O telefone toca.
Ela resolve não atender.
Está escuro e paira no ar um resquício ínfimo, porém perigoso de Natal.
Glória respira e resolve fazer inalação. Ao se levantar para ir até a cozinha buscar o kit gripe, eis que suas mãos trêmulas e apreensivas apertam o botão da televisão. E lá está ele. O Rei.
No início ela ri de si mesma, ainda possui um lâmpejo de bom senso em seu olhar. Aos poucos, depois de inalar tantas vezes a água quente e ter os olhos mareados por... essa água quente, Glória começa a se entregar... a ele, o Rei Roberto.
O telefone toca de novo. Glória não atende, porém dessa vez vai até o telefone ver de quem é a chamada. Pronto. Nada será como antes. O músico, o tal do músico está lhe telefonando.
Mas, escuta Glória: você resolveu ficar quietinha. Está fazendo inalação e cuidando de sua saúde. Amanhã viajará para sua terra Natal.
O Rei está cantando você foi o melhor dos meus casos de todos os abraços o que eu nunca esqueci o telefone toca de novo Glória não atende vai fazer xixi o mais complicado e o mais simples pra mim das lembranças que eu trago na vida você é a saudade que eu gosto de ter está escovando os dentes para não pensar ligou a internet ao mesmo tempo deu um abraço no Jeremias que saltou incomodado só assim sinto você bem perto de mim outra vez o telefone toca Glória chuta uma bolinha de papel que está na sala olha em volta vê de novo o Rei esqueci de tentar te esquecer resolvi te querer por querer Glória não sabe o que fazer olha o I Ching agora não dá tempo de jogar atravessa na área chuta pra pênalte dribla o zagueiro passa pra Ronaldinho que lhe devolve a bola e Glória finalmente atende o telefone.
GOL!!!
Sua voz muda. É outra voz, outra pesssoa, outro ser e tão... doce, tão enigmático. Ela está calma, envolvente, tem um sorriso maroto nos lábios e ninguém diria pela sua voz aveludada que uma gota de suor escorre de sua tempôra. Ela está dizendo que vai viajar hoje, ela está falando sem parar, ele diz que a leva até a rodoviária, ela diz que tudo bem e desliga o telefone.
Como assim tudo bem, Glória? Você não vai viajar hoje, que história é essa?
Ela está de pijama, estava vendo o Rei Roberto Carlos, indo dormir, faltava só colocar a bolsa de palha e o filtro solar na mala. Ela tem que sarar pra ir à praia. Glória! Você precisa ir à praia! Andar de bicicleta na Lagoa, tomar água de côco no calçadão. É vida ou morte, Glória. Você TEM que ficar corada. Um minuto de tranquilidade... dá pra ser?
Glória arranca o pijama da alma e entra no banho. Eu não estou acreditando, mas ela está lavando o cabelo!!! Isso vai demorar horas, porque quando Glória lava o cabelo a noite, precisa secar, precisa escovar, fazer bobs... Ela está depilando as pernas? É isso o que estou vendo? E as axilas também! É hoje que ninguém dorme nessa casa.
JEREMIAS fica olhando esse banho demorado e resolve desistir de demovê-la dessa idéia. Glória sai do banho e vai fazer escova, passar hidratante, esfoliante, óleo de amêndoas. E uma hora e meia depois coloca um vestido beeem casa, como quem não quer nada. Vai até o escritório e antes de abrir o I CHING pequenininho, ela reza três Aves Marias, um Pai Nosso e a Oração pro Anjo da Guarda e o Menino Bom Jesus, depois pede licença pra mamãe Oxum e papai Oxóssi e se ajoelha no chão fazendo a tão desesperada pergunta:
"Eu devo me encontrar com o José?"
Abre o I CHING. Lê.
A RETIRADA
O movimento sugerido por este Hexagrama é o do poder obscuro que vem chegando e o do poder luminoso que vai-se retirando para uma posição segura. Deste modo impede que a escuridão possa alcançá-lo. O momento é de preucação, evitando o esgotamento. A retirada é uma atitude correta e nobre. Você deve procurar um lugar seguro onde possa proteger-se. Com isso estará dificultando o avanço e crescimento das circunstâncias desfavoráveis.

Pronto. Mais claro impossível, não é Glória? Deixa o José pro ano que vem, vamos dormir.
O problema é que Glória estava toda perfumada, toda tratada, toda esfoliada, ia gastar a escova dormindo? E estava um tanto quanto excitada com a idéia de José, violão, serenata, enfim, flamenco, tudo aquilo na sua conturbada cabecinha e ainda meio tonta com o Rei, o que não saia de sua cabeça era você foi a mais linda história que eu nunca esqueci só assim sinto você bem perto de mim outra vez. O I Ching estava perdendo pro Rei, ai meu Deus, perigo! Sinal vermelho. Hora de gastar os últimos créditos do celular para ligar para Veridiana. Conversa vai, conversa vem, Veridiana diz que é dificil opinar assim, de longe, mas que ela é sempre a favor de viver a vida. Glória diz:
"Mas e o I Ching? Você não ouviu suas palavras? Eu posso me esgotar! Olha a minha saúde."
VERIDIANA é categórica:
"Por que se esgotar? Você TEM que vir pro Rio? Você não está de férias? Então. Esquece um pouco o I Ching e viva."
Glória anda de um lado pro outro da casa, está numa indecisão absoluta, o Especial do Roberto Carlos acabou e agora ela está sozinha, sem o Rei pra testemunhar a favor. Ela come umas pipocas velhas, umas uvas passas, olha pra Jeremias, Jeremias olha pra ela. Nada. Ele não dá nenhuma dica, gato desgraçado.
Jeremias pressente que o pesadelo vai começar. Glória olha o I Chig grandão na estante, aquele que só pode jogar uma vez por mês, o Sagrado. Começa a defumar a casa. Desfaz a bagunça da mesa de centro. Acende o incenso, pega a Lavanda de Alfazema, passa no corpo todo, vai lavar as moedinhas, perfuma as moedinhas. Pega o I Ching coloca na mesa de centro, defuma o I Ching, reza, pede licença, corre até a cozinha pega um copo de água, coloca na mesa ao lado do Oráculo. "A macumba começou!" pensa Jeremias e se afasta vagaroso até o quarto.
Glória pede desculpas, muitas desculpas pro I Ching, sabe que não devia estar se consultando assim, dias seguidos, mas a pergunta de ontem era de outra área de sua vida, não tinha nada a ver e essa era importante. Sua saúde estava em risco. O menino tinha ligado eram umas onze e meia da noite, agora já eram uma e meia, mas tudo bem, antes tarde do que nunca, o importante é decidir certo, Glória pensava.
Depois do prólogo com suas satisfações e pedidos de desculpas pro I Ching, ela faz a pergunta. Tem que repetir cinco vezes a mesma pergunta, pede pro I Ching ser objetivo, a resposta tem que ser clara! Faz tudo com fé, está cheia de Alfazema, a casa tem incenso, defumador e óleos essencias, Glória toma umas gotinhas de floral de Bach. Sai o Resultado. Ela lê:
50. TING/ O CALDEIRÃO
"As linhas que compõem este hexagrama formam a imagem do caldeirão; abaixo estão as pernas sobre as quais está o bojo, em seguida as alças e acima as argolas usadas para carregá-lo. Esta imagem sugere a idéia de alimentação. O caldeirão de bronze era o utensílio que continha os alimentos cozidos no templo dos ancestrais e nos banquetes. Cabia ao anfitrião servir os alimentos do TING nas tigelas dos convidados."
Glória lê e relê o hexagrama: "Ai meu Deus, saiu o hexagrama mais abstrato de todo o Livro!! E é claro que ele está falando de outra coisa, porque no fundo e o Velho Sábio Chinês não é bobo, no fundo, Glória continua só pensando em trabalho, ela "acha" que quer sair, ela "acha" que consegue se divertir, mas está lá, colada na sua pele, toda sua obsessão com os caminhos a trilhar, sua viagem pra França, as aulas, o emprego, o outro emprego, o patrão, os empregados, será que não dá pro Velho Sábio cooperar?
JULGAMENTO: O CALDEIRÃO. Suprema boa fortuna. Sucesso.
Tudo o que é visível deve se expandir para além de si mesmo, até penetrar no âmbito do invisível. Desse modo alcança a sua verdadeira consagração e clareza, enraizando-se firmemente na ordem cósmica.
"Ai, ai, ai! Não respondeu nada. O que quer dizer esse alimento? Que comida é essa? E essa ordem cósmica? Eu estou toda desordenada! 'Se expandir pra além de si mesmo'... Peraí, estou pensando numa coisa aqui...Vou respirar.(pausa) Esse hexagrama... É um hexagrama positivo,sim, diz suprema boa fortuna, então é isso o que importa. Eu pedi pra ele ser objetivo... Agora então eu preciso pesar, o negativo do pequenininho e o positivo do grandão, mas ele não parece responder a minha pergunta e sim a outra, aquela que eu não pronunciei, eu queria deixar essa, a mais grave pra Janeiro, mas que idéia de Jericô jogar I Ching nessa altura do campeonato!"
A hora está passando e Glória reflete e reflete sobre as Sábias palavras e tão abstratas do Oráculo. Olha Jeremias que passa:
"Vem aqui, vem neném, vem ajudar a mamãe". Jeremias dá de ombros. Glória escreve num papelzinho ver, não ver, ver, não ver, corta e dobra bem pequenininho e joga pra Jeremias sortear. Jeremias nem olha. Deita e dorme. Glória está eufórica, sacode o gato, joga os papelzinhos todos no fucinho dele, pede com carinho pra ele escolher um, é só olhar pra um. ele vira a cabecinha pro outro lado. Glória pula, faz festinha em Jeremias, faz cosquinha nele, bilu bilu, Jeremias sai e vai pra cozinha, ela corre até o escritório, se ajoelha em frente ao altar, reza mais quinze Pai Nosso, dezesste Aves Marias e Doze Oração ao Bom Jesus Menino e sorteia um papel. Deu que é pra ver. Pronto. Dois a favor e um contra, vou ligar.
GLÓRIA - Alô, oi José, nossa que voz de sono, te acordei?
JOSÈ - Eh... Mais ou menos.
GLÓRIA - É que eu desisti de viajar hoje.
JOSÉ - Percebi.
GLÓRIA - Vou ficar.
silêncio
JOSÉ - Achei que você já estava dormindo.
GLÓRIA - Não, estava terminando de arrumar as malas.
JOSÉ - Sei.
GLÓRIA - Então, se quiser passar aqui.
JOSÉ - Putz, agora eu já estou dormindo. Deixa pra depois.
GLÓRIA - Tá bom, então tá. Boa noite.
JOSÉ - Bom dia. Tá amanhecendo.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

NATAL _ HEXAGRAMA 18

"O ideograma chinês KU representa uma tijela em cujo conteúdo proliferam vermes. Isso significa o que se deteriorou. Isso ocorreu porque a suave indiferença do trigrama inferior uniu-se à rígida inércia do trigrama superior, resultando em estagnação. Como isso implica em culpa, tal condição exige a remoção da causa. Por isso o significado do hexagrama não é simplesmente "o que se deteriorou" e sim TRABALHO SOBRE O QUE SE DETERIOROU."

Natal. Toalha manchada de antigo vinho na mesa. Jeremias escondido dos fogos.

Plano I Sequência II

Glória senta-se na mesa, onde, ao invés de panetones e castanhas, existe apenas um copo de água quente. Ela pega uma imensa colcha e um coador de café com a bundinha cortada e faz inalação.
NATAL NA CASA DE GLÓRIA: 2008
"Ainda bem que esse ano vai acabar logo, não por causa desse Natal fazendo inalação e sem panetones, pois que panetones me dão azia e inalação é um pouco assim; colo de mãe, biscoito molhadinho no café fresco; e sim por causa da tijela cheia de vermes, que o Velho Sábio (I CHING) sentenciou. Estou me sentindo realmente assim. Em putrefação."
Jeremias sobe na mesa, quer fazer inalação também.
"O que esse gato quer agora, meu Deus? Sai daqui Jeremias, senão não funciona. Não pode entrar nenhum vento pra inalação funcionar."
Ela olha a carinha de JEREMIAS embaixo da colcha, seus imensos olhos castanhos pardos, e é ela quem resolve responder, pois na ausência de seres falantes,é ela quem soluciona as possíveis dúvidas de Jeremias e de si mesma.
JEREMIAS (o gato vira-lata) - Mamãe, eu não quero ficar doente, eu só estou me escondendo dos fogos, você é que fica aí, igual doida, respirando essa água quente.
GLÓRIA (a dona vira-lata) - Preciso melhorar logo Jeremias, pra viajar. Agora sai daqui.

Os fogos explodem, Jeremias olha assustado ainda dentro da colcha, essa pseudo cabana que Glória fez para sua inalação.

GLÓRIA (saindo da cabana) - É NATAL neném! É Natal! Está ouvindo esses fogos?
JEREMIAS - Não. Eu sou surdo.
GLÓRIA - Mamãe comprou patê de salmão pra você, é o primeiro Natal que passamos juntos! Vamos comemorar, neném!!
JEREMIAS - Quanto romantismo, pra que isso? Me dá esse patê e pronto, precisa ser Natal pra você abrir a mão e me dar um patezinho? Sovina que nem só ela. E pra que todos esses fogos, eles estão comemorando o que?
GLÓRIA - O nascimento de Jesus.
JEREMIAS - Eu sou judeu, não comemoro o nascimento de Jesus nessa data.
GLÓRIA - Desde quando você é judeu?
JEREMIAS - Desde aquela última visita, lembra? Aquele seu amigo veio aqui e me converteu.
GLÓRIA - Que amigo? O...
JEREMIAS - É. Esse mesmo. Nem vamos falar o nome porque eu já percebi que é só eu me apegar em algum cara, pra ele sumir na sequência.
GlÓRIA - Não é culpa da mamãe.
JEREMIAS - E é de quem então? Minha? Não foi pra mim que saiu o hexagrama 18, "com uma tijela cheia de vermes"...
GLÓRIA - Ai, meu Deus agora você quer um pai.
JEREMIAS - Um pai de verdade e não um pai de santo que nem você deseja. Nunca vi ninguém jogar tantos oráculos no mesmo dia! Até pra beber água tem que jogar um tarozinho... E além do que, você vive prometendo. Eu queria mesmo um irmão, que você também prometeu. Disse que ia buscar num lar de doações de gatinhos, chegou até a escolher um que tinha uma bola preta no nariz, lembra? Me mostrou a foto. Horrível. Deprimente. Queria ele porque já estava envelhecendo e nada de conseguirem doar...E eu é que teria que conviver com esse complexado. Parecia um palhaço.
GLÓRIA - Nós vamos pra França, lá mamãe vai te dar muitos irmãozinhos...
JEREMIAS - Eu não quero ir pra França, que coisa! E a Dona Irene?
GLÓRIA - É a síndica do prédio o que é que tem? Lá também vamos arrumar alguém pra cuidar de você quando eu não estiver.
JEREMIAS - Mas eu me acostumei com a Dona Irene. Não quero outra pessoa. Duvido que você arrume alguém como ela, até oráculo ela substitui. Fica respondendo as suas dúvidas... Além do quê foi ela quem me salvou quando eu engasguei e você ficou histérica pulando de calcinha pela casa!
GLÓRIA - Tá, agora a gente não vai poder viajar pra França porque você não vai conseguir viver sem a dona Irene!
JEREMIAS - A dona Irene, o Evilásio, a dona...
GLÓRIA - O Evilásio? Você morre de medo dele.
JEREMIAS - É o porteiro mais gente boa do prédio e nunca me dedurou quando eu sumia.
GLÓRIA - Claro, ele estava dormindo.
JEREMIAS - E a dona Georgina?
GLÓRIA - A velhina de oitenta anos, você nem conhece ela.
JEREMIAS - Você quem pensa, eu sei muito bem que nesse prédio os únicos moradores que passam o reveillon sozinhos somos eu e ela. E mesmo não estando juntos, um dá força pro outro, telepaticamente.
GLÓRIA - Deixa disso, você não acredita nessas coisas!
JEREMIAS - E a casa?! As plantas, meu quartinho, meus brinquedos, a vista que temos, temos uma janela imensa. Eu moro num país tropical!!
GLÓRIA - Por isso mesmo. Quente. Insuportavelmente quente. Paris é frio, Jeremias, neva. Lá nós vamos encontrar um pai pra você de verdade!
JEREMIAS - Pra mim ou pra você? Só faltava essa, ser criado por uma biba francesa! E o gato Urano? Foi ele quem me ensinou tudo, ele quem me iniciou na malandragem das ruas.
GLÒRIA - Pois é. Ótima influência, você sumiu cinco dias com ele e eu quase morri.
JEREMIAs - No dia em que me achou, me castrou.
GLÓRIA - Por favor, não vamos falar nisso agora. Hoje é Natal.
JEREMIAS - Se não fosse o Urano eu não teria nem tido o gostinho... Enfim, eu já me acostumei com a vizinhança, com a casa, meu trabalho, adoro o que eu faço.
GlÓRIA - Você pode continuar vigiando o estacionamento todos os dias na França,
também. Ou você acha que só aqui tem estacionamento?
JEREMIAS - Do Hospital São Camilo? Você não entende, eu não vigio um estacionamento qualquer, eu vigio o estacionamento do HOSPITAL SÃO CAMILO, é muito mais útil. Mais importante!
GLÓRIA - Jeremias, pare de me morder, dói. AAI!
JEREMIAS(rosna) - Cadê meu patê de salmão?
GLÓRIA - Só meia noite, na hora do Natal.
JEREMIAS - Que coisa mais ridícula! Vai por um cd com a música Noite Feliz também?
GLÓRIA - Meu amor, é o nosso primeiro Natal juntos!!

OS FOGOS EXPLODEM/Glória fecha as janelas

JEREMIAS - Que pesadelo. Nessa hora eu estaria dentro do armário, me escondendo dessa comemoração infantilóide e consumista, mas como você quer companhia, tenho que ficar na sala. Você pode finalmente me dar o meu patê?
GLÓRIA - Não faz essa carinha que eu não aguento, Jeremias...

Glória corre até a cozinha depois de proferir seu décimo quinto espirro da noite e coloca uma colher generosa de patê na tijela de Jeremias, que nem agradece, ela não fez mais do que sua obrigação. Afinal é Natal.
"Não sei muito bem o que o I Ching quis dizer no JULGAMENTO: É aconselhável atravessar a grande água. Que grande água? Está relacionado ao trabalho ou ao dinheiro? Ou ao amor? Será que eu devia ter ido pro Rio mesmo com febre? Ah, mas tá tão bom aqui com o Jeremias... Tadinho, vai passar o reveillon sozinho, mas o Natal, não, né Jeremias?" Glória se abaixa e pega Jeremias no colo, o aperta fortemente em seus braços, lhe dá ainda estalados beijos na testa. Jeremias salta.
Glória pensa nisso tudo enquanto limpa as formigas da tijela dele, sempre quando tem patê, elas fazem uma festa!
Glória lavou toda a louça, fez as mãos, comprou água de côco e rosquinhas, comprou todos os remédios de gripe e a pílula também. Até traduziu um americano na padaria,
mal e porcamente, claro, mas foi tão bom servir de mediadora, traduzir algumas palavras praquele homem que precisava de ajuda com as sacolas cheias, toda a sua ceia ali e o dono da padaria querendo ajudar sem saber dizer uma palavra. Nessas horas que eu penso nas aulas do IBEU que matei. E era esse sentimento de estrangeira que Glória tinha e não a deixava em paz, ela também viu as luzinhas de Natal nos prédios, toda essa decoração insurdecedora, viu uma família toda combinando nas roupas e o pai com um imenso saco de presentes nas mãos. Viu a chuva e de novo as ruas secas, tomou banho, colocou perfume, passou batom. Olhou pra Jeremias em seguida e sorriu depois desse gesto patético. Até parecia que esperavam alguém. Glória gostava de imaginar que sim.
E Jeremias também.

PRIMEIROS PASSOS
Quais serão os primeiros passos de Glória?
Depois dessa tijela cheia de vermes e justamente no seu Natal. O Velho Sábio não poderia ter sido mais generoso?
Meia-noite. Jeremias senta ao lado de Glória na mesa do computador, eles assistem
juntos alguns vídeos no YOU TUBE, Jeremias dorme e Glória escreve.
Muitos tilintares de taças de champagne da vizinhança, até seu vizinho taxista está dando uma festa de verdade. FESTA DE VERDADE?
?
Mas Glória não vê nenhum problema em passar o Natal sozinha. Ops! Sozinha não, com o JEREMIAS! E quer companhia mais maravilhosa, silenciosa, amorosa, elegante, independente, cheio de bom gosto, fiel! E quando Glória se sente muito sozinha, faz uma pergunta e olhando com atenção pra Jeremias já sabe a resposta. Seu olhar de desdém, sua cumplicidade, seus medos, ansiedades, iras e desejos camuflados, seus vexames internos, de repente está tudo ali, em sua pupila. Glória aprendeu a responder às próprias dúvidas, e está certa que é ele quem responde. É bom, porque assim as brigas nunca se prolongam muito e nem o silêncio, a não ser naquele dia em que ela trouxe um homem muito esquisito pra dormir em casa, com cara de alemão! Ele quase chutou Jeremias no escuro e fazia um barulho muito estranho enquanto dormia. Era peludo e sujo. Muito aquém de Glória. Jeremias se afastou na semana seguinte e não conseguiu nem encará-la. Por que ela se maltratava tanto? Jeremias nem ousava perguntar, muito menos censurar. Como seu compositor preferido escreveu: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é."
Jeremias presta muita atenção nas escolhas amorosas de Glória e até se convenceu certa vez quanto a determinado sujeito, muito apessoado inclusive, que depois infelizmente sumiu. Jeremias nunca perguntou nada, mas ressentiu-se profundamente e até hoje amarga essa perda. Ele era alto e usava camisas xadrez, dormia com ele quando Glória expulsava os dois da cama. E quando Glória viajava - e ela sempre viajava - era ele quem vinha lhe dar comida. E ele não lhe dava apenas comida e sim fazia companhia durante todo dia. "mamãe dizia que ele era vagabundo, mas eu acho que ele tirava fotos muito bonitas, ele até ganhou um prêmio e tinha um quadro enorme aqui no corredor de uma estrada que um dia ela atirou no chão." Usava umas botas de cowboy e vivia com um cigarro de palha pendurado na boca. Jeremias nem ligava praquela fumaceira toda na sala, pois o que importava é que ele deixava-o se aninhar à vontade em seu colo. Já o músico não. O músico não ligava muito pra ele e Jeremias um dia até o expulsou de casa. Olhou-o com tanta força e raiva que o músico comentou com Glória:
MÚSICO - Noooossa! Que olhar!
silêncio
GLÓRIA - Por que? O que você acha que ele quis dizer?
MÚSICO - Ele disse: saia daqui!
E era isso mesmo, Glória percebeu que Jeremias o expulsava. Jeremias não via sinceridade naquele homem, só no de camisa xadrez. Jeremias tinha o dedo podre.
Glória lembrava disso tudo enquanto fazia as malas. Passaria o fim de ano fora e tão longe de Jeremias. Se sentirão falta um do outro?
Pois que já são a mesma coisa.
E quando Glória brindar ao novo ano que entra, é em Jeremias que vai pensar...
Pois que os amores passam, os de camisa xadrez e cigarros de palha na boca e suas promessas rurais, os violões e serenatas comprometedoras, os empregos, alguns amigos que se revelam menos amigos do que antes e às vezes mais exigentes, tudo passa.
Menos o gato Jeremias. Ele está agora bem aqui, ao meu lado, e estamos ouvindo juntos Yo Yo Ma tocando Piazzolla.
FELIZ NATAL JEREMIAS!!!
Brinda Glória com seu perfume de Alfazema na mão.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

OS PRÓXIMOS ANOS

Quando Glória chegou em casa, sentiu o peso do silêncio das plantas. Elas não se moviam. Silenciou também. Estava mais estranha do que o normal. Sua enorme necessidade de abraçar Jeremias, culminou em dor de barriga. Queria agarrar esse gato, morder, engolir, tamanha era essa necessidade, que se afastou perigosa. Jeremias também sentia falta de Veridiana. Glória olhou o seu altar, mistura de imagens bíblicas, Budas, Santos Indianos e claro, mamãe Oxum. Já era final de ano, algo terminava. O Natal e suas luzinhas irritantes impreganavam a cidade. Uma vontade de... Ela não conseguia nominar a sua vontade. Estava tão cansada, dores nas costas e nos ombros, o buraco do dente continuava ali. Não teve tempo de ir ao dentista, de caminhar, nem de sonhar. Jeremias, solidário a esse começo de dor, nem saiu. A porta da casa continuava aberta, ele espiou, ensaiou alguns passinhos e retornou carinhosamente pra dentro de Glória. Deitou ao seu lado, ela continuava olhando os santos. Queria rezar e não sabia o que tão urgentementemente precisava pedir.
Agradeceu.
A dor não passou.
Não era dor, era uma poltrona branca no canto da sala.
Glória entendia alguma coisa do que se sucedia dentro dela, esse mormaço imenso, mistura de sonhos perdidos e a urgência de conseguir tocar ainda os poucos que sobravam e que pareciam querer escapar. Sentiu uma vontade tão grande de invadir o mundo... Outras florestas, outros suores.
E de repente despertou, descobriu.
Esse vazio um pouco grande demais para uma sexta-feira, era algo que tinha a ver com as palavras. Entendeu assombrada de delicadeza que ela era criminosa consigo mesma, pois que tentava se explicar aos outros, tentava se fazer compreender e quanto mais insistia nisso, maiores os equívocos. Hoje no jantar, conversara e tentara se explicar, se convencer para que o outro a compreendesse. Isso a tinha deixado exausta e agora descobria que não era coisa de um único jantar e sim de anos a fio.
Saudade de alguém que não precisasse tocar com palavras, que o simples gesto da mão que enrolava um interminável fio de cabelo no restaurante fosse suficiente para um sorriso cúmplice.
Reconfortante.
Saudade do pai, da mãe que não teve e que ansiou, do irmão que viria e que ela negligentemente, afastou.
De Veridiana que encheu sua casa de alegria e juventude com suas histórias mirabolantes e fantásticas. O seu frescor praiano.
De Jane, Andressa, Thiago, Marcelo, Débora, Daniel, Vinicius, Tiaguinho, Wilson, Dona Elza, Priscila, Thaís, Bruno e todos os alunos do Ceu que encheram o seu ano de...
Afeto.
Glória teve vontade de se olhar no espelho e ver o que o tempo fazia.
Se reteve.
Contemplou a falta de quadro em uma das paredes.
Contemplou seu cansaço.
Os cartões que caiam da estante com o vento que entrava.
Sussurrou algo no ouvido de Jeremias.
Pensou que a melhor resolução pro novo ano que entrava, seria calar mais e não explicar mais nada.
Ser mais organizada.
E mesmo cansada, não evitar as visitas.
Veridiana veio e foi único sol.
Viraram a noite conversando, lembrando coisas, chegando a conclusões descabidas, repudiando as conclusões no momento seguinte e rindo das histórias que cada uma contava sobre -cada uma a seu modo - suas tentivas inconfessáveis de sobrevivência no mundo.
Glória refletiu se era possível viver a vida sem colo.
Saudade de uma porção de coisas Glória teve e agora seu irmão desistira de vir pois que não tinha mais passagens aéreas baratas.
Glória sentiu o peso dessa ausência.
Mesmo cansada, mesmo esgotada, nada seria mais reconfortante do que a presença fraterna do irmão.
Decidiu tomar um banho e fazer planos para o próximo mês, o próximo ano, os próximos anos e viu que tudo isso eram jogos mentais para sobreviver a esse minuto.
Esse minuto, onde ela existia no banho. Com Jeremias na janela esperando o banho terminar para dormirem juntos, mesmo que por pouco tempo, pois ele logo seria expulso.
Glória tentou então existir nesse momento.
Sem culpas, sem arrependimentos, sem medos ou possíveis coragens.
Glória tentou existir nesse momento.
Com culpas, com arrependimentos, com medos e as possíveis coragens.
Tudo doía muito, então pensou em coisas boas como: jujuba, paralelepípedo, nuvens que parecem bichos, o gosto salgadinho que fica no corpo depois do banho de mar, uma massagem relaxante nos pés, ler "A menina sem estrela" ao pé do ouvido, ler as poesias da Ana Cristina César com os pés na grama e ora mirando o poema, ora mirando a paisagem, lembrou de uma coisa da infância chamada Maria Fumaça, os girassóis de Van Gogh, o barulho do envelope sendo rasgado misturado com a ansiedade de receber uma carta sem remetente.
Os olhos de T. O sorriso de E.
O medo de S.
Tomou o banho e não se secou. Ainda molhada e em pé de frente pra janela da sala, abriu os longos braços e deixou que o vento entrasse.
E a cobrisse.

domingo, 14 de dezembro de 2008

O RATINHO ARTISTA

Indiretas e diretas. Ele disse: "Existem agressões diretas e indiretas" depois de esbofeteá-la na cara. Acho que ele foi bem direto, não foi? Prefiro então as agressões indiretas, elas doem menos e não deixam marcas, refletiu Glória.
E agora para se vingar das possíveis agressões indiretas que ele contabilizava em sua infindável lista imaginária, resolveu solucionar a questão metendo a porrada? Achei que eu fazia teatro e não jiu jitsu.
Existem ratinhos e ratazanas um pouco menos explícitas e simplórias.
Ele ferve em raiva, ele tem muita raiva dentro dele, mas de manhã colhe batatas e cenouras em seu sítio angelical. Que ele construiu com as próprias mãos. Quanta nobreza, que ratinho mais engenhoso e trabalhador! Aplausos... Clap, clap, clap. Outro dia mandou Glória tomar no cu mais de quinze vezes, uma espécie de obsessão com o cu, esse orifício tão enigmático. Quase uma divindade pra ele, tamanha repetição da palavra! Acho que ele queria que baixasse ali a própria entidade do ânus. Glória nunca tinha ouvido essa palavra tantas vezes, foi dormir e sonhou com ele, o tão proclamado cu. Esse "ser' solitário, omisso e que se tornou palavrão por ser nossa via mais direta de explosão, esse orifício, na extremidade terminal do intestino, por onde saem os excrementos. É melhor pensarmos não possuir tal nojura! Nada contra os viados, mas uma pessoa que manda a outra tomar no cu quinze vezes está precisando dar algo, não?
Ele é um artista. Tão amável e sincero quando esbofeteia atrizes cadelas como Glória, é uma raiva de mulher que esse mundo tem que chega a ser engraçado. Ele faz tudo pela arte, chega cedo no teatro, prega os fios, carrega cenário, sua a camisa e se mostra sempre muito eficiente e disponível para o trabalho braçal. Ele faz tudo pela arte. Até esbofetear pra ele é um gesto muito digno e necessário, pois que tapas, chutes, joelhadas e puxadas de cabelo fazem parte de nossa chamada "Arte Teatral". Tudo pela arte.
Ele nunca erra. Está acima do bem e do mal pois teve uma infância humilde e ajuda os pobres, além de ter horta, galinhas e cachorros mancos, cegos e surdos. Ele é definitivamente uma pessoa acima de qualquer suspeita, planta seu feijãozinho com as próprias mãos e leva ervas e ovos fresquinhos do cu da galinha, olha o cu aí de novo, não estou dizendo? Vocês devem conhecer um sujeito como esse, eles se escondem atrás da cordialidade humana e da bondade para com os outros, tem um ar humilde e um olhar de cão sem dono. Cuidado meninas, quando virem um sujeito assim, fujam: "Run Forrest, run" , "Corra Lola, corra". E se ainda o sujeito tiver horta em casa, é sinal vermelho na hora, só falta morar com a mãe, aí é melhor matar. Nem precisa perguntar o signo, fazer a numerologia porque o bicho é complicado e neurastênico. Esse, por exemplo, não oferece risco nenhum porque gosta da fruta mesmo, e é um desses ratinhos artistas que não se enrustiu, pelo menos isso, assumiu alguma coisa em sua vida. Mas a raiva da mãe está ali e entre um gesto amável e outro ele esbofeteia uma atriz que está atrapalhando o seu caminho. "Devia ter dado mais forte" ele disse olhando nos olhos de Glória. O foda de nascer mulher é isso, homens e mulheres foram criados por.... mulheres! Nasceram delas e cresceram e se tornaram pessoas traumatizadas por... elas. E quando a relação é mal resolvida e quase sempre ela é, eles querem meter a porrada em quem? Nas mulheres, claro. Por isso os crimes passionais, por exemplo, a mulher sofre quando leva um fora mas não joga ácido na cara do namorado por causa disso, né? Nascer mulher é saber que pra sobreviver tem que ser um pouco macho, pois o mundo VAI cobrar, Deus também deve ter tido uma mãe qualquer. É uma inevitabilidade a hostilidade do mundo em relação as mulheres, pois que mulher e mãe são quase a mesma coisa. Por essas e outras, nada de ballet ou jazz, nem sapateado que só mata baratas, tem é que fazer kung fu mesmo, vejam Glória, não fez kung fu e agora está em casa com uma compressa de água fria no rosto. Muito deprimente. O ratinho boxeador, leva todas as semanas hortaliças para as atrizes que tem filhos, pois essas ele não esbofeteia porque dão de mamar, viu como ele é cuidadoso?
Se ele achou que Glória lhe mandava indiretas agora ele vai saber muito bem o que era um direta no queixo, as palavras são as minhas melhores armas, Glória pensou.
Ele é tão generoso dentro de sua amável cordialidade com porteiros e manobristas, camareiras ou recepcionistas de elevadores. Socorro que o diga.
Eu nunca conheci alguém tão correto, pontual, trabalhador e que esbofeteia com tanta dignidade. Ao sair do teatro, o rosto de Glória ardia em brasas e ao reclamar sobre o excesso de agressividade em cena, ouviu do ratinho artista:
"Ah, não vem não, foi até leve, eu acho até que eu devia ter dado mais forte!"
Glória então, respondeu acuada: "Me dê um murro logo."
O ratinho artista sempre imerso em sua indiscutível nobreza e dignidade atacou: " Mas não dá pra eu fingir, vocês não me deixam entrar, o que eu posso fazer, vocês estão demais, eu não consigo entrar na cena."
Perplexa e abobada Glória refletiu: "Mas se foi ele quem ensaiou a cena assim (o ratinho artista além de ator-boxeador é diretor também) e sempre nos pediu mais explosão, mais densidade, justamente pra ele (o personagem) se sentir agredido e entrar..."
Mas depois concluiu com seus botões, ratinhos artistas são assim mesmo, pedem mais e quando damos, se apavoram e saem esbofeteando por aí.
Engraçado a carapuça que alguns artistas vestem de dedicados e sensíveis enquanto não passam de medrosos vocacionais.
De dentro do seu medo crescente de enfrentar Glória, ele a esbofeteia e assim, cala à sua maneira, qualquer revelação de coxas e pernas e seios que escapam. Ele a manda tomar no cu, mesmo sabendo que quem gosta de dar o cu é ele e não Glória.
Ela tentou se defender do ratinho artista: "Eu não entendo toda esssa sua agressividade comigo, eu não entendo o que eu fiz, às vezes me sinto culpada pensando: eu dou o meu sangue por essa peça e ele lida comigo como se eu estivesse contra."
O ratinho artista foi taxativo: "Há agressividades diretas e há agressividades indiretas."
Glória retornou: "Você já parou pra pensar que você pode estar equivocado quanto às agressividades indiretas?"
Nesse momento o ratinho calou-se como bom ratinho que é e foi... adivinhem, para onde?
Arrumar o cenário como um nobre artista operário e trabalhador. Coitado, trabalha tanto e essas cadelas ficam me dando indiretas em cena.
Glória temeu: "Será que vou chegar aos quarenta anos assim? Revidando as possíveis e talvez imaginárias agressões "indiretas" esbofeteando os atores em cena?"
Respirou fundo.
Era uma despedida. Conviver com a loucura e a histeria sempre foi o cotidiano de Glória, desde a infância, desde que se entende por gente. Mas, ela cresceu. Glória finalmente cresceu. E como crescer demora! E como crescer dói e rasga. Ainda durante a peça, essa peça em que atua e escreveu (talvez esse seja um dos ódios do ratinho operário, ele nunca escreveu uma linha e Glória ainda tão nova se arriscava a vomitar em palavras todas sua mazelas e anseios, por mais precárias e famintas que elas fossem, Glória enfrentava, nisso Glória não foi covarde, ela deixou-se Ser). Durante a peça e ainda no escuro, quando ninguém a enxergava, Glória chorou, mas não foi de tristeza, foi de alegria. "E eis-me inteira..." Lembrou o trecho do texto de Ana, protagonista da peça que retorna ao lar apenas para se despedir dele de vez e quase fica presa pra sempre.
Glória viu que aquilo ali, o seu entorno, o ratinho artista agressor, os outros - nem todos - os outros artistas agressores, eram todos eles uma saudade genuína de casa, da família, de...
Mamãe!! A castradora e dominante Mãe.
A rata mor.
Ali, com o rosto em brasas, Glória renunciou.
Enquanto Ana dizia:
"Amar na minha família é a porta de entrada pro sanatório. Você já atravessou essa porta?"
Não, Glória não queria atravessar essa porta e antes que fosse tarde, teria que sair. Teria que arrancar de dentro de si todos os artistas ratinhos que a seguiam em sua jornada tão propícia ao suicídio e à loucura. Era uma despedida e Glória chorava. Em cena.
Doi, doía, doíria muito arrancar os ratinhos que se alimentavam do gato recém nascido.
Seria praticamente uma cirurgia sem anestesia e talvez Glória fosse sofrer por um tempo indeterminado essa ausência, sofreria também de abstinência. Como uma drogada Glória sentiria falta desse tapa na cara, das joelhadas, das feridas, das discórdias, dos beliscões, dos arranhões, de toda essa hostilidade tão familiar.
Mas era inevitável a separação. Pois acontecera o milagre:
Glória crescera. E crescer é se libertar da família interna, do lar, dos ratinhos pais, mães, irmãos e tias, dessa tão conhecida crueldade, que te ofende passando a mão em sua cabeça, que te castra dizendo que é pro seu bem, todas as acusações que você não conhece a causa, é sempre um motivo invisível como o próprio ratinho operário disse: "agressões indiretas", é sempre um motivo abstrato o das suas falhas então você é agredida sem saber nem mesmo o por quê, fica trancafiada por meses, anos, a vida inteira, pagando por um crime que você desconhece, como 'O estrangeiro" de Camus levamos a vida assim muitas vezes sem percebermos.
Glória teria que se separar e toda separação acarreta uma dor imensa, inexplicável, profunda, olharia com amor todos esses bloqueios, boicotes, mordidas que a impediram de continuar mesmo continuando, sempre a duras penas, Glória teria que se despedir do que lhe era tão familiar: a loucura e o seu ambiente pesado e sufocante. Ela teria que saber deixar tudo isso pra trás, se despedir dos artistas sensíveis e tão criminosos que com sua pseudo honestidade e bofetões tentam tirar de você a única coisa que não é possível doar:
sua integridade física.

sábado, 13 de dezembro de 2008

LÚCIO

Glória diz:
"Como chegar em casa, tarde da noite e sorrir ainda, mesmo que seja minimamente, sorriso oblíquo pro gato que ronrona a seus pés?
Chegar e encarar os cacos de vidro da noite anterior, espalhados pelo chão da cozinha, ameaçador. Todo aquele sal, eu não consegui jogar fora.
Toda aquela trilha de sal...
Para comer, um resto de sanduíche da padaria Real, metade dele, já mordido, esperando ansiosamente pra ser devorado.
Olhar os cacos de vidro enquanto eu como o pão velho. Orégano de ontem.
Olhar os cacos de vidro e todo aquele sal.
São duas da manhã, diz Glória pra si mesma enquanto observa o cuco da cozinha.
Um pseudo cuco.
Um relógio de parede onde está pintado um passarinho gritando.
Cacos, pseudo cuco, sanduíche antigo, e a consciência.
Consciência desmoralizante.
Saber que se vive em um corpo que se pretendia outro e mais ameno.
Ser uma pessoa mais amena, polida, desgraçadamente calma.
Ao invés disso, essa avalanche hormonal.
Quando Glória chegou ao trabalho já era de tardinha pois seu "expediente" começa às 18:00hs. No caminho, colocou a mão no coração, batia rápido e os braços pesavam-lhe a alma.
Estava com o corpo moído e o coração também.
Mais tarde ainda teria entrevistas, apresentações, enfim uma sucessão de trabalhos que exigiam a sua integridade física.
Glória temeu: É hoje o dia da minha morte.
Juntando todas as peças de um quebra-cabeças recente, começou a perceber que existiam avisos que só confirmavam isso, na noite anterior tinha quebrado o vidro de sal e ainda esqueceu o gás ligado, foi dormir com todo aquele gás escapando, só não morreu porque sentiu sede e foi a água quem a salvou. Levantou vagarosamente da cama, quase uma morta viva e foi até a cozinha no escuro mesmo. Ao abrir a porta do quarto já sentiu o cheiro. Um cheiro terrível de gás inundava a casa.
Quando chegou na cozinha já não lhe era possível respirar. Prendeu o fôlego e desligou o gás, olhou ao redor, todas as janelas fechadas, não entrava um único ar. A noite estava fria, então teve todo o cuidado de fechar todas as janelas, uma por uma, ela morava em um apartamento cheio de janelas, tão bonitas, compridas e emendadas, tinha ido morar ali justamente por causa delas.
~Depois de abrir todas e respirar o ar de fora, Glória tomou um merecido banho quente.
O vidro quebrado e todo aquele sal continuava espalhado no chão da cozinha, depois do banho ela pegou a vassoura e juntou, fez um montinho de cacos e sal, mas não teve disposição para jogar no lixo. Aquilo se transformou em uma instalação. Sim, uma obra de arte contemporânea no centro de sua cozinha. Aquilo substituia de alguma maneira o Pato. Vestino, o pato de vidro do antiquário, que Glória não conseguiu comprar mesmo depois de tanta insistência e que custava toda a sua vida.
O montinho de sal e vidro também era algo assim como o Pato; um reflexo no lago azul arredondando pro verde. Ela também poderia se ver ali, toda uma sinopse.
Refletiu no banho sobre aquele quase último dia e pensou que se tivesse morrido ali, nessa quinta-feira de lua cheia e fria não teria tido tempo de viajar, de conhecer Berlim, Paris ou Moscou, coisa que ainda faria um dia, e morreria cansada, borocoxô, não saberia o gosto que possuia a carambola, pois ainda não tinha tido a meninice de experimentar carambola, não teria escrito um livro, não teria lido Vidas Secas ou Ulisses do Joyce, teria deixado vários trabalhos pela metade, não teria falado com Verediana, sua amiga de infância sobre os últimos acontecimentos, não teria dirigido uma peça com quatro atores, chamada "Enfizema", não teria ido com seus alunos ao Museu da Língua Portuguesa, não conheceria seu novo professor de francês, e o pior e mais grave, não teria amado ninguém. Só uma pessoa, mesmo assim pela metade, pois o namoro desfez-se antes de completar-se.
Não teria tomado o seu último banho de mar e agradecido a Yemanjá pelo ano, pelos anos ou mamãe Oxum pelas vidas, todas elas vividas como esses cacos e esse sal exposto no canto da cozinha. Vidas de outras pessoas, desenhadas no palco, ou em folhas de guardanapo de uma cefeteria qualquer.
Se Glória tivesse morrido ontem, não teria feito a mínima diferença pois a morte é isso, não faz a menor diferença, só para os amigos. Os amigos sentem. Parente, não.
O parente fica aliviado daquela incumbência de amar, de fraternidade, o amigo é fraterno sem consciência ou esforço, sem agressão, ele é sempre um vocacionado pro amor.
Glória não teria dado essa entrevista de rádio, que deu hoje, e isso teria sido até um alívio, um peso a menos, pois que falar sempre massacra a coisa dita.
Depois desse banho e já no dia seguinte, no ônibus, indo pro trabalho às seis da tarde, com os braços pesados, Glória percebeu que a morte continuava a espreitar, pois que não a largaria facilmente, seria assim até o fim, essa convivência diária, e os braços pesando e a palpitação aumentando segundo seu pânico. Entendeu que aquele era o seu último dia.
Não foi. Chegou ao trabalho esticando os braços e avisando a todos muito grave e solene:
"Talvez hoje eu morra. Terei muito provavelmente um ataque do coração" um colega que passava, sem dar-lhe muita atenção sentenciou: "Vá na farmácia e tire a sua pressão."
O outro: "Quando é ataque cardíaco a dor não é nos dois braços e sim apenas no do lado esquerdo."
A mulher de batom rosa: "Você é muito jovem, raríssimo alguém da sua idade morrer do coração... Mas pode acontecer. Nunca se sabe." O outro sem tirar os olhos do relatório e que também passava, enfileirou as perguntas distraídamente:
"Existem casos na familía? É hiper tensa? Já teve problemas no coração? Fez exames recentemente?"
Diante das respostas negativas, sentenciou ainda concentrado nos relatórios:
"É bom verificar, é bom verificar."
Diante de todas aquelas intervenções, só lhe restou ir até a farmácia e tirar a pressão.
Solitária em uma máquina de tirar pressão e que esmagava friamente seus finos bracinhos, Glória ouviu a determinação robótica:
"Não foi possível nenhum resultado, pouca informação para concluirmos sua pressão. Repetir a operação, mais uma vez.
Ela comprou outra fichinha e ouviu a mesma coisa umas cinco vezes. De quem era aquela voz?
Uma mulher foi lá e gravou aquilo? Como o computador chegou naquela voz específica? Ele tem memória emotiva?
Glória foi comer um sanduíche ainda no intervalo do expediente e enquanto comia um pastel integral, chorou. Tocava uma música da sua adolescência dentro da lanchonete e naquele moemento ela sentiu fundo aquela despedida. Mesmo cansada e esmagada dentro de suas obrigações diária, Glória colecionava algumas recordações que faziam lembrar de uma época ensolarada e boa. Lembrou de momentos mais amenos de sua vida, onde ainda não tinha dores no braço que lembravam ataques cardíacos ou cacos de vidro no chão da cozinha e sal.
Teve vontade de pisar na grama, de dar um mergulho em Ipanema, em comer sundae com castanha e cereja e ir ao cinema ver "A rosa púrpura do Cairo".
"Se eu morresse hoje ou amanhã ou mesmo naquela semana, não daria tempo de fazer nada disso". Então depois de enxugar as lágrimas e pagar a sua conta, Glória pensou no que era fundamental fazer antes de morrer. Ao subir a ladeira encontrou um amigo de sua terra natal e que conhecia há muito tempo. Ele era ator e iria se apresentar logo mais no teatro. De imediato, ele a convidou para irem juntos depois do trabalho em uma apresentação do Lucinho, amigo em comum de ambos - veio um flash na cabeça de Glória, um relâmpago, onde passava os melhores momentos de sua convivência com Lucinho: perdidos no Sana, bêbados; ela nervosa antes de entrar em cena pela primeira vez e ele super tranquilo beijando a loirona gostosa na coxia, São Tomé da Letras, Visconde de Mauá, eu e o Lucinho vimos o sol rodar, suspirava internamente.
Se despediu dizendo que provavelmente não poderia ir, pois tinha trabalhos pra entregar e uma entrevista numa rádio de madrugada para divulgar a empresa. Se despediram e Glória encaminhou-se para o trabalho com os braços menos pesados.
Enquanto subia a ladeira, tentava reconstruir o pensamento sobre as coisas fundamentais a fazer antes de morrer, sem perceber que o destino lhe respondera tão delicadamente:
Ver os amigos.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

terça-feira, 22 de julho de 2008

A MULHER DO VIGÉSIMO ANDAR

"Em conjunto, estas páginas falam, talvez, de uma tentativa de convivência literária: divagações e reações do cronista, no exercício sem método, misturadas ao eco de obras alheias, recolhido com a necessária simpatia. E como este sentimento se vai tornando escasso, gostaria de transmiti-lo ao leitor. Vale por um convite à ilha - não deserta, embora pouco povoada".
Carlos Drummond de Andrade

CENA I
PERSONAGEM: A MULHER DO VIGÉSIMO ANDAR
LUGAR: UM PRÉDIO QUALQUER DESBOTADO
ANO: ?
TEMA: ENCRUZILHADA

Sentada no parapeito da janela da minha ilha-casa, no décimo quarto andar de um edifício que é uma espécie de Carandiru repaginado, vou tecendo dúvidas sobre.
Vou tecendo dúvidas.
O título desse blog seria:
"Antes do Sono"
mas não estava disponível.
Nunca está...
Disponível.
Esse título seria como uma janela aberta de uma casa térrea, de pedra-Infernal, desenhada em rua ladrilhada, acessível e clara. Um risco de sol atravessaria o vidro fosco e desceria até a entrada da casa, todas as manhãs, quando eu ainda estivesse na cama, desavisada, entregue aos uivos do sonho recente, ainda amansada por sua corrente sanguínea que transborda no mar, na praça ou em ruas paradas e sem retorno, em lugares sem nome, fatigadas de infância. Insensível ainda ao risco alaranjado que entra por essa janela, eu relutaria insistentemente em continuar dormindo, zelosa pelos prenúncios dos sonhos, somente me tornando intratável aos poucos, mantida nessa luta entre o dormir e o acordar.
Que esperanças me restariam naquele começo de dia?
Nenhuma.
Porém, penso...
imagino,
estou vislumbrando apenas,
que esse risco seria como a última força, a grega,
a da fêmea negra,
parindo,
ansiando um filho quase morto,
quase cego,
um maldito filho pequeno como uma cruz de um rosário,
ele vêm,
ele invade, a luz alaranjada entra e eu tenho que.
devo,
não, eu tenho que.
Levantar.
Esse risco alaranjado seria motivo suficiente, seria na verdade, o único motivo, para esfregar os olhos e encarar aquela mancha arquinimiga no teto, e finalmente pisar em tacos de madeiras com xícaras de café na mão e sorrir um pouco sem jeito porque se acordou e isso por si só já basta.
Esse continuar atravessado. A contra-gosto. Ela bebe o café sem açucar.
Me interrompo agora e penso: Preciso lavar roupas. Colocar o lixo para fora e comprar comida para o gato. Preciso ser objetiva, prática e pensar no essencial. E é justamente quando penso no essencial a caminho das aulas que vislumbro uma digressão no cotidiano ao ver na vitrine de um antiquário; um pato.
O PATO
Lá esteve ele, estéril de tão rouco, mudo e nervoso embaixo de sua transparência, me pedindo socorro, enquanto eu passava...
Era um pato de cristal. E eu tive amor por ele, pena, medo, aflição, nervoso, compaixão, queria aquele pato pra mim, queria cuidar daquele pato, ele tinha o rosto bravo, porém, erguia-se no mais alto de seu cristal, num piscar de olhos e se desmancharia em cacos e ele bravo quebrando, morrendo, lá se ia um pato.
Vou comprar esse pato. Sou eu, esse bicho nervoso e exaurido, exigindo pra si uma existência grandiosa, dentro de sua frágil transparência, sou eu!
Entro e vejo em uma de suas patas, uma etiqueta onde se lê: R$ 1, 450,00
O Pato era meu aluguel, condomínio, luz, gás, telefone, enlatados e Ades, pão e jujuba, ele era todo o meu mês! E eu quase cometo uma loucura, estava prestes a... iria me endividar pelo resto da vida, mas aquele pato era um sinal, só podia ser, logo agora que eu estou quase chegando em... mim mesma. Estou sentindo, falta pouco pra descobrir quem eu sou... É só mais uns passos em direção a ... e eu chego. Pelo menos alguma coisa de mim eu descubro ainda esse ano, e agora esse pato me atravessando o dia, ali, bem perto das minhas mãos, ele é a própria claridade, vi trechos da minha infância em seus olhos, das minhas músicas preferidas, dos filmes, namorados, papai, mamãe e o galo que morreu, Juiz de Fora, meus livros, areia, sal e mar, vovô abrindo a garrafa de coca-cola furando a tampinha, o cachorro do tio Simundo me cheirando e eu fazendo xixi nas calças. Tudo ali no Pato!!! Finalmente eu teria um resumo de mim mesma, da minha vida, uma sinopse. É só isso que faltava pra eu ser feliz, um pequeno sinal. Um reflexo idiota qualquer. O Pato continua me olhando e pede socorro, ele odeia esse velho que usa roupas de inverno em pleno verão brasileiro, pelo amor de Deus, alguém avisa pra ele que não dá pra usar meias de lã e cachecol num sol de quarenta graus. Até o pato está suando. Ele está me deglutindo inteira, e agora já me vejo, vomitada pelo Pato e I-N-T-E-G-R-A-L.
Sem ele, continuarei sendo esses fragmentos, acordando sem rastros de luz alaranjados, um quebra cabeças onde as peças centrais foram recolhidas pela Comlurb no último Carnaval! Devolva-me a mim mesma, por favor, mundo, mundo, vasto mundo.
Calma. O velhote dono da espelunca está lá atrás. Vazio e rabujento, lendo algo em francês.
Os franceses são grossos, seja razoável, pensa no Pato e no que a sua vida será daqui por diante com ele. Vocês dois tem um futuro lindo pela frente. Fica firme. Acredita.
Vamos combinar um sistema de créditos, talvez ele divida em seis vezes, dez, quatorze, em mil vezes. Abaixa esse decote, respira funda e faz aquela voz rouca, a voz aguda afasta.
Voz grave e sombria, intergalática.
Estou decidindo quem de fato sou eu, estou tentando descobrir meu bicho nesse mundo, agora finalmente resolvi me resolver, então velho, vê se não me atrapalha, estou em plena transição, não seja um boicotador de destinos, não queira levar esse karma pra sua outra vida! Faça um precinho razoável pelo Pato e saíremos ilesos dessse encontro.
Mas pensa bem, Glória - esse foi o nome que resolvi ter desde então, desde o encontro com o Pato - pensa bem, se você comprar esse Pato, talvez, é bem provável, sua vida toda mude. Sua vida vai mudar, vai ser só olhar pro Pato, para você se reconhecer, pronto, algo que te defina em uma piscada, algo que você olhe e está lá; tudo o que erra em você, os antigos acertos, as encolhidas, as omissões, as frias, os medos, feridas abertas, tudo naquele olhar enviesado do pato: bravo e de cristal.
Resolvi comprar, tinha que comprar, quinze anos de terapia não revelariam uma visão como aquela, o mundo inteiro escondido naquela transparência, escoltado por ela, vigiado.
Pato, pato, pato! Eu quero esse Pato! O velho de meias xadrez e andar sorumbático chegava, me olhou espantado, meu Deus, eu gritei? Eu gritei três vezes, ele disse: TRÊS VEZES: QUERO ESSE PATO! QUERO ESSE PATO! QUERO ESSE PATO!
Preciso tomar meu remedinho fitoterápico, estou um pouco ansiosa. Soube hoje que sou histérica, preciso parar de repetir que eu quero esse pato. Será que alguém na rua me viu? Será que tem câmeras gravando, qualquer coisa eu digo que estou menstruada e saio.
Não, eu não posso sair sem o Vistante, esse é o nome dele, falei na hora pro vovô: "Quero o Vistante", ele continuou me olhando intrigado. Corrigi. "Quero esse patinho, tá bom? Aqui aceita cartão de crédito, não aceita?" Ele não respondeu.
Ele continuava me olhando e não respondeu. Meu Deus, eu querendo esse pato com urgência e esse vovô fica paralisado no meio do meu dia, no meio do meu destino, boicotando esse encontro?
"O senhor pode embrulhar esse pato pra mim?"
Ele continuou me olhando.
"Por que você quer esse pato?"
Não entendi. Ele estava me perguntando por que eu queria aquele pato ou era impressão minha? Agora eu precisava encontrar argumentos plausíveis para comprar um objeto em uma loja que vende objetos? Por que na minha vida tudo é assim? Difícil? Agora eu preciso fazer vestibular pra comprar o Pato, preciso falar francês também?
Eu - Por que... o que?
VELHO - Esse pato não está a venda minha filha, é enfeite da loja.
Como não está a venda e esse preço absurdo, e isso aqui em sua pata, essa etiqueta, o que é isso?
Ele olhou.
VELHO - Isso está errado, quem colocou isso aqui? Deve ter sido a nova funcionária, esse pato é de estimação, não podemos vender.
Era só o que me faltava, uma porra de um Pato sem graça, quase escorregando e quebrando, morrendo de reumatismo de tão lascado e esse velho dizendo que é um Pato de estimação!
Eu disse enfurecida:
"Não pode errar, não! O senhor nunca ouviu falar disso, se eu entro numa loja e o preço de algo está errado, problema é de vocês. O cliente não tem nada a ver com isso."
"Olha, minha filha, se você quiser chamar o Procon pode chamar, faça o quiser, mas o Pato eu não vendo. Seu Firmino é nosso desde a abertura da loja em 1930, tem nos dado muita sorte, dele eu não me desfaço."
Velho maldito! Pato maldito!
Por que é sempre assim? Quando eu descubro uma solução, ela é desativada na mesma hora?
Seu Firmino... Isso é nome de Pato? Só porque eu gostei, ele resolveu hipervalorizar esse pato, também, quem mandou gritar dentro da loja? Agora estou aqui, perdida outra vez. É só eu me achar um pouquinho que já aparece um velho de meia xadrez e boina pra estragar a festa.
"Esse é um pato muito valioso, valor inestimável, desde 1930, vêm trazendo sorte pra loja".
Ele poderia ter sido mais generoso, quem está precisando de sorte agora sou eu! O senhor já se aproveitou bastante desse Pato não foi não? Não dá pra dividir um pouquinho as suas bençãos? Velho nojento. Ainda cuspia enquanto falava e tinha cheiro de guardado.
Ando pelas ruas chutando pedrinhas...
volto pra minha antiga e recente realidade.
Sem nome, sem títulos, sem patos e em pleno desatino.
Acho que vou comprar um chiqlete. Mascar chiqueles desmoraliza a existência.

Por causa desse Pato, fiquei plantada num antiquário do centro da cidade por quase duas horas e lá se foi meu dia. Assim tem sido. A objetividade parece tão distante quanto essa ilha-casa onde envelheço.
"Antes do Sono"
Esse título colocaria um teto na casa que chove. Que tem goteiras. Esse dar nome as coisas, me preenche de algum modo incerto. Colocar um nome, um endereço, dar uma carteira de identidade, foi o único modo vil de sobrevivência que encontrei, pois desconheço outro.
Então vou dando nome as coisas que vejo ou pressinto.
Os nomes que coloco nas coisas estão sempre de ponta à cabeça. Por isso eu colo.
Eu ouço o nome que o passageiro ao lado disse que deve se chamar aquilo: árvore, grama, igreja, homem, criança, mocinha, vermelho e copio.
Eu colo.
Se as palavras não existissem e eu tivesse que nominar as coisas eu simplesmente não conseguiria porque me é impossível escolher apenas uma coisa. Por exemplo o vermelho:
Eu iria ficar em dúvida quando visse a cor vermelha entre palavras como:
quente, pérpetuo, oblíquo, música, porta
Pra mim essas palavras também são vermelhas. Seria uma eterna dúvida e a comunicação impossível.
Esse prólogo é para dizer o quanto me é dificil dar nome a este blog.

DAR NOME__________ ESCOLHER UM NOME ENTRE MIL ___________
FICO COM AS RETICÊNCIAS.

De qualquer forma a procura pela palavra que vai traduzir aquilo que me escapa e que eu anseio transmitir já me é essencial.
O QUE EU ANSEIO TRANSMITIR?
Isso. Essas indagações são as únicas coisas que anseio dividir. Compartilhar. Ainda não sei se essa palavra realmente existe. Compartilhar.
Ela acende uma cigarrete.
Cigarrete é mais sonoro que cigarro.
ANTES DO SONO
Essa tentativa de organizar a serpente que escapa, as impaciências insones que saltam ferozes entre as folhinhas do calendário... Preciso escolher palavras para continuar a existir. Talvez a escolha desse título nesse espaço virtual público, seja uma tentativa de engolir melhor esse pequeno espaço privado, nada virtual, essa casa, essa ilha.
Seria
- quem sabe -
essa possibilidade de dar nome a uma coisa, uma espécie de salvação-título, um nome acolhedor para o que vem transbordando, algo que me guiasse junto à correnteza de volta para a terra firme.
Estou procurando.
Essa terra firme.
Esse nome, esse blog, talvez sirva - não gosto dessa palavra, desde criança, não gosto de palavras que começam com S. Senhor, senhora, servil, serviço, sacrilégio, sapo. De qualquer forma ele - o nome, o blog - não servirá para nada, mas talvez, quem sabe me ajude como uma espécie de dama de companhia. Eu sempre quis ter uma dama de companhia. Agora eu tenho.
Uma dama de companhia cibernética.
Enfim - esse nome, esse blog, essa espécie de dama de companhia - servirá como um antídoto de uma insônia crônica onde o Rivotril só não basta.
Tenho medo de escrever Rivotril. Páro. Penso melhor. Olho o meu gato, Y. Ele não diz nada. O nome dele deveria ter sido X. Talvez o X e não o Y me enviasse sinais mais claros, foi um erro esse nome, erro grave. Um erro de cálculo quase fatal. Se ele fosse o X seria um salva-vidas e responderia as minhas perguntas com um simples olhar. Das metafísicas as mais banais. Esse gato Y não me dá uma indicação, esse gato não é um sacerdote oriental. O da vizinha é. O Velho Sábio.
Voltando...
Está muito na moda o Rivotril, a insônia, enxaquecas e depressões. O senso-comum da infelicidade contemporânea é fastidioso.
Fui contaminada. Tenho todas as reações e confusões e ecos dessa enfermidade chamada mundo contemporâneo ou seria mundo pós-moderno?
Dúvidas. Um blog onde só há dúvidas, só perguntas e nehuma resposta.
O interfone toca. Ela atende.
VIZINHO ASSEXUADO - Diz para ela que ela TECLA ALTO.
Meu Deus, alguém já ouviu falar disso?
É melhor escrever tudo aqui. Organizar esse excesso de palavras, ter uma companhia para a insônia, minha dama de companhia puta e cibernética blogueira que é, vai organizar esse caos interno, vai fazer com que eu me controle e não exploda no meio da rua com o primeiro terno-azul-marinho-discursso-burocrático-não senhora-sim senhora-sinto muito, senhora, está em manutenção - que aparecer.
Porra o caixa-eletrônico não está em manutenção. Eu estou em manutenção.
Escrever tudo aqui para amanhã quando eu for barrada pela porta giratória do banco, estar livre de excessos, calminha, controlada, um Rivotril só não basta. Eu não vou mais estapear o guarda, eu vou aceitar as regras da vida, ser menos exigente, falar baixo, sair mais da minha caverna-casa-útero-prisão-solidão-bunker-biblioteca-saguão hospitalar, meu pronto-socorro.
Preciso de uma companhia que seja concreta, palpável que me ajude a não gritar sempre que sinto sede, que ajude no meu controle psíquico maníaco-obsessivo compulsivo. Compulsão por palavras, jogos mentais, explicações, descrições, palavras e mais palavras que estão me soterrando, uma porção delas, enfileiradas, todas caçoando de mim - malditos cães de guarda- ninguém me entende, querem acabar comigo, preciso diminuir essa paranóia de perseguição mesmo quando ouço o Woody Allen dizer: "Não é por que eu sou paranóico que não tem ninguém me perseguindo". Tem sim, olha só atrás da árvore, atrás da vidraça, do espelho, da janela anterior a mim.
EU
estou me perseguindo. Vinte e quatro horas por dia eu me sigo. Estou atrás de mim como uma sombra encarcerada em sua condição de sombra. Me sigo, me constranjo, falho, sempre o erro à espreita. O medo do outro, do invasor, o eterno medo de ser invadida.

Preciso sempre me lembrar porque eu me enfio nas coisas. Estou sempre me enfiando nas coisas erradas como forma de castigo. Acredito que eu tenho muito a pagar.
Muitos telefonemas não dados, muitos almoços fiado, muita desconcentração, esqueci muitos aniversários, aluguel de orelhas, punições no macho, egoísmos e mais egoísmos.
Então me puno. Mas é sempre uma punição sutil.
É um desejo algo assim como um velho cão manco tentando coçar a parte
decepada.
Horrível essa palavra. Bate na madeira um, dois, três, isola.
Ou Isola um, dois, três.
... horrível, preciso me proteger de mim, dessas palavras, da minha presença velada e tão constante. O meu cérebro é uma cilada. O meu cérebro é uma cilada. Uma máquina registradora, eu registro tudo, constantemente, estou sempre pronta: lápis apontado, caderno em mãos. Eu quase não penso, eu peso. Eu peso o ambiente, a minha mãe já dizia eu devia ter uns cinco anos. Ela pesa o ambiente. Essa menina. E eu sou lenta. As coisas acontecem lentamente para mim. Um
peixe-cego. Estou aqui a teclar, o que mais eu poderia fazer? Para quem queria...
E o que isso tem a ver?
Meu lado B me pergunta.
O C responde: "É melhor perguntar para o D porque esse papo me dá sono" Então meu lado C vai dormir e o meu lado D fica acordando o C o B e o E.
Simplesmente eu queria ser uma pessoa só. Como aquelas que vestem um uniforme de manhã, saem para trabalhar, voltam, tiram o uniforme e já está na hora de dormir. E dormem. Eu não queria ser tão compulsiva. Na rua pergunto pra alguém:
EU - É aqui que passa o Praça Ramos?
DESCONHECIDO CANSADO - É.
EU - Sabe, hoje eu ia até o veterinário para examinar meu gato mas aí o veterinário disse que era melhor eu pagar a última dívida...
Pronto. Lá vai eu. Estou contando a minha vida só porque enxerguei uma orelha, eu não posso ver uma orelha. Podia ter uma profissão assim: Alugo orelhas para ouvir dúvidas e dívidas de pessoas carentes. Ficariam ricos comigo e eu pobre. Mais pobre.
Preciso de uma companhia além do Adolfinho - meu ventilador.
O nome do blog seria : "Como latir sem pôr em dúvida o latido"
OU
"Free Digressão"
OU
"Eu amo digressões"
Mas aí não é mais um blog, é um manifesto.
Todos os manifestos já foram feitos, todas as palavras já foram ditas e eu não beijei todas as bocas...
De qualquer forma esses nomes também não estavam disponíveis.
Com quem estou falando? Tenho a nítida sensação de que estou falando com alguém. É estranho.
Isso é uma ilha e eu estou dentro dela no vigésimo quinto andar de um edíficio que é um Carandiru repaginado onde um vizinho assexuado me multa porque eu faço barulhos... não posso dizer quais.
Antes. Eu quase não falava. Só o essencial. Agora não. Agora tudo é essen-cial! Comecei a falar numa noite e só parei três dias depois. Eu não dormia porque precisava falar e se eu parasse e não me distraísse com as palavras, viria um buraco, um imenso buraco negro que me devoraria para sempre.
O silêncio era o buraco.
Eu precisava me distrair de mim.
Do meu pânico.
Do meu pântano.
E foi então que fiquei assim.
Magra.
Num blog a gente não fala de si-mesmo, não é confessionário. Você tem que falar sobre o mundo, a sua visão de mundo, a política, a reforma agrária, dívida externa, a solidão do homem contemporâneo, a legalização do aborto, drogas, violência, abuso infantil.
Foda-se. Já tem muita gente falando sobre tudo isso, o que não falta no mundo hoje são opiniões.
Eu estou salva.
Sim.
Outro nome do blog seria: Toda essa minha/nossa destruição plugada no décimo primeiro andar sem óculos que proteja do frio.
?
Talvez tenha sido melhor o primeiro título:
"Fugindo de mim antes que alguém me ache e devolva".
Esse título era mais propício. Não.
Aqui é um espaço para os insones, solitários, ilhados em seus vigésimos andares com dores de cabeça sem fim e que sabem que estão sendo mumificados pela moda contemporânea da depressão que gera essa dor de cabeça sem fim e tão real e simbólica.
Para os que acham elevador uma coisa corriqueira e tão transcendente, que sonham que sobem num elevador que não pára nunca mais e que atinge Deus que solta um palavrão assim que te vê, enquanto o caminhão de gás toca aquela musiquinha deprimente e você acorda sem ninguém ao seu lado para te dizer:
"Foi só um sonho, meu bem".
Para os que acham delicioso ter alguém dizendo isso no ouvido de manhã e que ao mesmo tempo, pensando bem, aquele hálito dormido, a cara amassada, a cerveja anterior, o ronco a noite inteira, e esse "meu bem", assemelham-se mais a um pesadelo.
É melhor o sonho sem o "meu bem" depois.
Enfim esse é um espaço para quem sonha obsessivamente com mar e não vai nunca a praia, para quem quer compartilhar dúvidas, as mais imbecis como por exemplo
Hoje - um sábado - eu saio de casa ou é melhor não sair?
Para quem joga I Ching para responder essa pergunta e se revolta quando este responde:
Hexagrama 4. A insensatez juvenil "Há muita insistência em obter respostas que, quando conseguidas, não são assimiladas nem aceitas".
No mesmo dia esse hexagrama saiu para mim quatro vezes.
Esse espaço é para quem já passou por isso e também para quem tem tantas dúvidas que é incapaz de se mover. Para quem a dúvida não é uma visita mensal ou diária, como quando surge um momento decisivo na vida. É para quem tem dúvidas em todos os minutos e segundos e pergunta para o porteiro se deve ou não ligar a batedeira e fazer um bolo, se deve ou não aceitar aquele emprego, se deve ou não mudar para outro bairro, se deve ou não ter mais um gato...
Eu queria casar com um Pai de Santo.
Ter um I Ching real, uma autoridade da premonição diariamente na minha casa, na minha cama. Não, na minha cama não. No quarto ao lado.
Esse blog deveria se chamar:
"Funeral de um sol barrigudo"
Eu preciso dormir. Tomar meu Rivotril e dormir. Mas eu ainda não fechei a questão. Eu sou supersticiosa, se eu não fechar a questão não durmo.
Que questão?
O NOME. OU: O QUE ESTOU FAZENDO AQUI? NESSE ESPAÇO PÚLICO CONTANDO UMA MALDITA VIDA PRIVADA DE UMA CADELA NO CIO QUE AMA ELEVADORES?
Esse espaço existe para os insones que acham elevador uma coisa assim como um elo entre o profano e o divino, para aquele que se sente um eterno estrangeiro subindo num elevador incompreensível.
Para quem não gosta de compartilhar elevadores e quando sente que alguém está indo na direção do mesmo bloco que o seu, sai correndo e sobe as escadas para não ter aquela conversinha insuportável de elevador.
Para quem adora um cochicho no ouvido mas prefere que depois do cochicho a pessoa que cochichou "vaze", "dê área". Melhor dizendo: "Caia fora"
Para quem é multado pelo vizinho assexuado, que ao invés de pegar uma carona em sua lua-de-mel, te passa uma multa de cem reais e toca a campainha quando você está naquela fase beta, alfa, gama com aquele ex-beta-alfa-gama-Romeu-de-botequim.

Para aqueles que não gostam de se expor mas se expõem. Para quem promete que vai fazer uma coisa e faz outra. Para quem protela a vida o tempo inteiro e não segue os manuais de instrução. Para os que cometem gafe e tentam
consertar.
Para quem sente frio e medo e desamparo quando apaga a luz do quarto antes de dormir e o desamparo é tão grande que dá dor de barriga e você tem que acordar e ir ao banheiro.
Para quem o desamparo é tão grande que Edgar Allan Poe é fichinha e para quem ama Corvos e Nosferatus e sente no desamparo uma espécie de purificação idiota, para quem tem a síndrome do vítima-salvador nas relações amorosas. Para quem tem medo da morte, horror da morte, da inexistência, pensa muito nisso, quando virá, como será, com quem será, e pensa na passagem que é o que mais amedronta e reza baixinho pra não sentir dor.
Todos os sonhos tem morte e sal. Cheiro de mar e um gato caindo da escada, elevadores subindo e trens que não páram na estação.
A minha sensação é que a minha vida é um trem que não pára, que não pára, que não pára na estação. Nenhuma estação.
Esse deveria ser o nome, o título do blogue:
" Nenhuma estação ".
Eu quero descer mas o trem não pára. Eu querendo descer, conhecer alguém, conversar despretensiosamente, descansar, esticar as pernas para cima e não pensar em nada, para aqueles que não querem pensar em nada e sentem falta de palavras antigas como "cousas" ou "dous".
Para quem não acha Machado de Assis chato.
E pra quem divide a existência com personagens como o Migulim de "Campo Geral" de Guimarães Rosa - pra quem chorou na morte do Dito.
Para quem teme a morte e quer morrer na primeira crise. Para quem diz que não acredita em nada e reza. Para quem pensa que a vida talvez seja apenas aquele corrimão da infância na casa da avó. Para quem acha que a vida é um pensamento estilhaçado assim como a MEMÓRIA DE UM GATO.
Para quem duvida de si, para quem ama os mais velhos, quer ouvir histórias, quer ser embalado na rede por uma história antiga de avó e que ao mesmo tempo ferve de raiva no metrô porque precisa levantar para ceder espaço para esses velhinhos que deveriam estar em casa e não me fazer levantar cheia de sacolas, malditos anciões com cara de cachorro abandonado.
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Para aqueles que sabem que escrever não é ser politicamente correto.
Para aqueles que escrevem uma coisa politicamente incorreta e se culpa em seguida, para quem cria um blog e depois se arrepende. Para aqueles que sempre se arrependem. Do que fizeram e do que não fizeram e do que ainda vão fazer.
Para quem tem medo de palhaço e de mágico. Para quem não sabe bater palmas ao cantar "Parabéns para você".
Para aqueles que amam gatos.
Para os que querem amar e não sabem como.
Para quem não vai revisar o texto pensando que talvez se revisar, apagará.
Para os filhos-da-puta.
Para os que não foram amados por falta de tempo.
E espaço.
Esse espaço, de escrever, a palavra que treme, mas não sai.
Ela nunca sai.
É um crime.