domingo, 5 de abril de 2009

O Porteiro do Radinho de Pilhas

Eu sei porque o domingo dói. É uma questão de proporção.
A segunda-feira é poesia pura. Concreta. Poesia-concreta. É trânsito, cotoveladas na na Avenida Primeiro de Março, o empurra-empurra do metrô da estação da Sé, e tem a presença maciça do amplo motorista de ônibus, possui o cheiro dele, uma mistura de óleo diesel com cachaça matinal, seu Josias, que agora berra por uma água gelada ao ambulante que passa, tira os trocados amassados do bolso, depois escarra. Quando Deus me perguntar como é a vida, eu vou dizer: Uma pura e brutal segunda-feira anedótica. Do semáforo à sirene, estar vivo é compartilhar com os outros desse súbito primeiro dia semanal. Nada mais diáfano e obrigatório do que uma segunda-feira. Pão e leite. Café e jornal. E levantamos pura poesia-concreta. O Haroldo de Campos é a própria segunda-feira.
A terça-feira, tem um leve esgar de sonho, um sorriso manso de querubin, duas asas partidas, lembra as histórias de Hans Cristian Andersen, O Rouxinol, A menina com sapatos de pão. A terça-feira ainda enrubesce diante de um elogio, possui sopro no coração - ou tuberculose - e uma candura típica de menina contrariada. Rouca, a voz da terça é rouquinha, como a da carioca notívaga, chamada Diana. Quando a terça dói, é uma dor semelhante à primeira cólica, aquela dorzinha com uma pontinha de orgulho, sutil sorriso nos lábios. A terça escorrega entre os dedos, é ao mesmo tempo sereia lasciva e normalista tímida. Uma delicinha. Palavra que contém ambos significados. Terça-feira terna. Personalizando, pode-se mesmo dizer que é a melhor amiga, rosto de fada madrinha, e no ar, sobrevoando a paisagem, alcança-nos o canto da lavadeira de beira de rio, àquela primitiva, quase índia, que recolhe a roupa do varal, assobiando todas as músicas regionais.
Quarta-feira é a intriga, aquela que diz que não gosta de fofocas, enquanto perfila os podres dos desafetos. É belicosa a quarta. Amordaça. Me lembra uma tia velha e oxigenada. Loura oxigenada, essa é a quarta-feira. Ah, e pinta as unhas dos pés de vermelho. Uma coisa que abomino. Principalmente quando olho para o dedo mindinho. Dedo mindinho, tão discreto e absorto nos outros dedos - tive uma amiga de colégio, que dizia: "Se me fosse possível escolher, pediria sem pestanejar: pode me tirar o dedo mindinho do pé, Deus, mas em troca, dê-me uma pele boa, sem espinhas. Nenhuma espinha, lisa, lisa." Tamanha a aparente inutilidade desse dedo - e agora, talvez o mais cristão dos dedos, tão amordaçado está, pintado nesse ordinário esmalte vermelho, impotente e rebaixado. É sobrepujar demais um dedo, pior que arrancar, como pedia minha amiga em troca de uma pele lisa. É igual vestir um pequinês com aquelas roupinhas infelizes. Por que não colocam logo uma bola vermelha em seu focinho? Assim, ao menos ele tem um cargo e pode ganhar uma renda mensal. Todo pequinês desvia o olhar quando está vestido com aquele macacão de bolinhas - ou ursinho, como queiram - que as donas dos pés pintados de vermelhos insistem em vestir nos pobres-diabos. E ainda dão mamadeira pro cachorro, chupeta e floral de Bach. Esssa é a nossa quarta-feira. E lá vem ela, a tia-avó oxigenada, sorriso fantasioso no rosto, apertar nossas bochechas no berço, com força, e cuspindo ao dizer: "Que gracinha...deixa eu ver essa coisinha". Depois do almoço, enquanto escorre pó-de-arroz velho na lentilha, ela conta sobre suas aventuras com o tal viúvo da Martinica. Agora senta com a xícara de café nas mãos - pintadas de vinho - e deixa aquele dedinho saltado pra cima, sabe? E começa a escorrer seu veneno sobre o sobrinho-neto que parece, não gosta mesmo de mulher e sobre a cunhada drogada que anda misturando bolinhas com anfetaminas. Não sobrará um parente intacto, até terminar o fim do dia.
Quinta-feira é finalmente o dia da reconciliação, até Deus e o Diabo fazem uma trégua e um churrasco no Inferno. Depois de umas e outras, entram na fase do: "te admiro muito, cara. Você é realmente importante pra mim. Se não fosse você..."
Dia de ver o sol nascer, de rever amigos, de ir ao cinema, de falar pouco, dia de não falar nada, só observar a tarde que cai. A quinta-feira é o dia preferido de Glória. Na quinta, dá pra sentir aquele prazer quase perigoso em estar vivo. Não sei por quê, mas me lembro de Olinda neste instante. Quinta-feira é uma espécie de Olinda utópica. E diante dos arranha-céus, peço uma tapioca no Centro da Cidade. Quinta: Sebo, Teatro Municipal, Viaduto do Chá, pedra do Arpoador, Biscoito O Globo com Mate Leão, patins na orla e filme do Woody Allen. De preferência: "Annie Hall"
Sexta-feira, é quando Glória começa a ficar lamentosa. Ela se torna meio oca na sexta. E sexta-feira deixa todo mundo oco, mesmo. É o tal choppinho. Que Glória não toma, diga-se de passagem. Mas que está lá, em todas as cabeças que circulam, que desejam terminar logo o serviço pro tal do happy hour. Me deprime essa expressão Happy Hour. Parece que tudo o que fazemos, que lemos, as viagens, as descobertas, um grande amor, tudo é pra terminar na conversinha do Happy Hour. E essa é a nossa implacável sexta-feira. Cheia de espuma.
O significado de um sábado é transcedente. Na memória, vejo um parque. Veja bem, parque e não praça. E entre eles, existe uma diferença abismal. O sábado é um parque, o domingo é uma praça. No parque ainda é possível, um sentimento de esperança. Tem verde, muito verde, pessoas correm, se exercitam ao ar-livre, existe a mistura de gerações, uma convivência harmoniosa. Na pracinha obscura e deserta, os velhos jogam dama e uma ou outra criança assustada, está tentando uma alegria no vai-e-vêm do balanço torturante. A criança está em plena agonia, quase em convulsão. Os velhos, estão morre-não-morre, se atracando às pedrinhas do jogo. Não existe uma mistura de gerações e nem uma convivência harmoniosa. Numa praça - a Antero de Quental, por exemplo, na rua Bartolomeu Mitre, no Leblon - a velha geração não abre uma concessão à mais nova e vice-versa. Há inclusive o ódio às gerações passadas, presentes e futuras. Mas vejam, já estou antecipando o domingo.
Sábado também é dia de casamento. E vejo sempre, ao sair de casa, aqui mesmo, na Igreja Nossa Senhora do Rosário da Pompéia, noivas e noivos que se aproximam do altar. E fico horrorizada com a disparidade estética dos casais. A meu ver, a relação amororosa exigiria um certo apelo estético, não no sentido rigoroso da beleza perfeita, e sim da proporção, da harmonia entre dois indivíduos que se entrelaçam. Mas nossos casais são horríveis, tenebrosos. Mulheres muito mais altas que os homens e gordas, e eles esmirrados e japoneses. Outro dia mesmo, vi uma senhora de ancas largas, cheia de furúnculos nos ombros - era uma noiva de tomara-que-caia - e um jovem tímido e receoso - intimidado talvez, pelos furúnculos, ou pelas ancas - com um terno curto, não sei se emprestado, mas que expunha suas canelas finas e desprotegidas. A impressão que dava é que durante a lua-de-mel, o finísssimo noivo seria tragado pela senhora dos furúnculos e jamais devolvido para a face da terra.
E assim resume-se o sábado: uma orgia incompreensível entre a senhora dos furúnculos e o timido japonês das canelas finas.
O sábado tem finalmente, essa aura de sonho de fim de tarde no parque e a falta de poesia dos jogos olímpicos e seus saltos ornamentais. Ao mesmo tempo, existe uma trágica realidade envolvida, como nesses casamentos descompassados. E eu penso que no amor deveria existir sim, um rigor plástico.
Domingo chove. Pra mim e pra Glória também, todo domingo chove. E faz frio, mesmo que nós duas transpiremos debaixo de um calor de quarenta graus. Domingo faz frio, sempre. E tem futebol. Domingo é o dia mais atemporal com seu áudio de goleadas. Lembro-me dos almoços de domingo na infância, eu, uns oito anos, toda vestida de lycra amarela, meu irmão de óculos e camisa regata, pai de barba e ainda com cabelo e mãe num estilo Jane Fonda, franja e chapéu. Todos reunidos no restaurante "A Polonesa", em Copacabana, comendo strogonoffe - nada mais dominical - e tirando fotos com a Dona Josepha, a própria polonesa. Ainda não sei bem o por quê de tantas fotos com Dona Josepha e na porta do Restaurante. Parecia até que fazíamos a divulgação do local. Eu estava para todo o sempre marcada como a garota do conjunto de lycra amarela - como minha mãe tinha coragem de me empurrar aquilo goela abaixo? -e Dona Josepha, dona do restaurante, cheirando a strogonoffe, me comprimia com a sua gordura, no entusiasmo da confraternização do abraço familiar.
E existia ainda, um ser mais espectral e que já era por si só, o próprio símbolo do domingo: O porteiro do radinho de pilhas. Ele fumava um cigarro atrás do outro, de uma marca que até hoje me lembro o nome: "Campeão". Suas unhas eram de um amarelo ocre, quase marrom. Quando ouço a palavra pigarro, penso nele. Ele era a própria personificação da palavra. Era um senhor, já calvo, que ficava sentado em frente ao prédio residencial, colado ao restaurante. Era ali, que eu ficava a maior parte do tempo. Aqui abro um parênteses. Nunca gostei de comer e ao nascer, tomava leite no conta-gotas por rejeitar o leite materno. Comida sempre me pareceu um tipo de obrigação abominável e um momento especialmente difícil do dia, quase uma tortura. Durante certo período, meu pai nutriu um ódio silencioso pela criança inapetente e não saía da mesa enquanto o prato não se esvaziasse. Num país onde muitos passam fome, convivi desde a infância com uma espécie de culpa ancestral por rejeitar uma coisa quase inalcansável à maioria dos brasileiros. E me comprimia em pesadelos, fantasiando algum martírio que me libertasse do crime. Fecho o parênteses. Depois de enfrentar as garfadas de strogonoffe, eu saía feliz, pra fora do restaurante. Vivía uma cálida e merecida libertação. Ali fora, sentada no canteiro, eu observava abismada aquele ser solitário, que segurava com ambas as mãos, um radinho de pilhas, melancolico e enternecido ante a locução futebolística. Essa cena, o áudio e seu frêmito quase inaudível, me deprimia até as raias da loucura. Eu não entendia essa adoração pela narrativa esportiva. A minha sensação era de um cego em agonia diante do espetáculo impossível. Fato interessante: quando eu era pequena, todas as pessoas me interessavam e principalmente os velhos pobres diabos. Eu sentia amor por eles e alimentava um afeto desproporcional ao meu tamanho. Detestava as outras crianças e aqueles jogos infantis: banco imobiliário, amarelinha, war - havia um jogo chamado "war" - queimado, vôley, enfim tudo isso me intimidava. E ali, diante de meu amigo Arlindo, era esse seu nome, eu revivia a ilusão auditiva da velhice. E quanto mais doía, mas eu observava profundamente suas unhas, mais queria guardar aquilo, não a imagem apenas, mas o sentimento que a acompanhava. De alguma forma, era assim que me alimentava, uma pequenina Vampira. Até hoje sinto o cheiro desses domingos. Cigarro, pigarro e strogonoffe. O dedo mindinho de Seu Arlindo, de novo ele, tinha as unhas compridas. Como os cobradores de ônibus, ou o nosso Mojica Marins. Mas era só o dedo mindinho, e não existia sensação mais terrível do que quando ele retirava uma das mãos do radinho de pilha - um eterno Vasco-Fluminense - e coçava o ouvido esquerdo com aquela unha comprida. E o locutor da rádio - e isso era realmente aflitivo - narrava euforicamente os passes de bola e eu mal conseguia respirar junto... Arlindo não largou o rádio em nenhum dos domingos que lá estive. Em nenhum momento e nem uma única vez. Nunca foi ao banheiro, ou falou alguma coisa, apenas tossia. Não perdia um único lance e mesmo sua tosse - curta e rápida - era odiada pelo próprio fumante. Assim nasceu pra mim, a nostalgia do radinho de pilhas. E ele nunca esteve em outra posição senão esta. Sentado em frente ao prédio 665 e de radinho de pilhas nas mãos, ele seguia, quer dizer, os dias o seguiam. Era corcunda. Seu corpo se dobrava sobre o radinho. Depois alguém me chamava e lá íamos nós, de bugre, pra casa. E a chegada em casa era ainda pior, todos iam dar seus cochilos, alguém ligava a televisão pra assistir o final do jogo, e eu me trancava no quarto. Ia pra janela, as nuvens caindo do céu, o azul claro transformando-se vagarosamente num azul escuro glorioso e fatal.
E eu me despedia do domingo como quem se despede de si-mesma. Louca pra ser Haroldo de Campos novamente. Louca pra voltar a ser o tijolo nada metafísico da segunda-feira.
E o radinho de pilhas chiando dentro de mim, com seu frêmito vertiginoso.
Ainda posso sentir seu apelo.
Só que agora, dentro de Glória.