Sinfrônio. Arrancara de súbito, essa carta da manga. Sinfrônio. Ao arrancar, assim um nome do meio das lágrimas de incenso, restituiu o caráter humano e possível.
Sinfrônio era o encanador. Que maravilha! Um mundo que possuía, lírios, lágrimas e um Sinfrônio encanador. Lembrara ao ouvir o nome nascido de dentro do animal – era Jeremias quem cantava um nome – que um dia tinha desejado se transformar numa pianista clássica.
Sim, oito anos e as mãos trêmulas sobre o piano da avó. Seu Leopoldo, um vetusto negro de crânio nu, era de uma rigorosa didática musical. Batia-lhe com os caroços das mãos nos dedos hesitantes da menina magrela e estrábica. Ela ria, pois via em sua braveza uma zanga interpretativa.
Era fácil discernir, naquela época, a braveza real da ilusória. Só depois, mais tarde, pareceu-lhe ter ficado difícil e mesmo torturante, adivinhar a real intenção dos diálogos. Aos poucos foi perdendo o jeito, a ginga da convivência. E em tudo falhava. E em tudo, respingava o mal entendido das circunstâncias. Com os hematomas nas mãos, não sentia em Seu Leopoldo – cabeça grande, arrendondada, brilhava em sua calvície negra o deboche à qualquer tipo de afetação, era o próprio homem da terra, da luta inicial, resistente como o tronco antigo aos ataques da natureza – não sentia nele um mal-querer, nem a aridez de um desprezo. Seu Leopoldo a tinha em boa conta, a garota branca e zarolha, finíssima em sua constituição contrastante, e apenas forçava – na sua dureza laboriosamente enraizada – a abertura de um lírio atrasado.
E eis que lembra-se de novo de Sinfrônio, o encanador era a própria antítese para este instante nebuloso. Nada mais cru, nada mais trânsito, sol sobre a sacada, do que um encanador. A infância lhe tragava para o redemoinho das sensações. Não podia enveredar-se, impotente que estava, para esse emaranhado de luzes e sombras. O que precisava era de um encanador brutal, oleoso, nada gago e até um pouco vulgar.
Sim, ater-se em Sinfrônio, sua figura plástica e tangível a ajudava a nunca perder o fio, a enrascada era perder o único fio que a ligava ao tijolo diário e que nem sob as lágrimas que desciam do sofá para o assoalho banhado em fossa, poderia perder. Até as lágrimas precisavam reconhecer-se em algo, no caso, a fossa. E agora, Glória reconhecia-se em Sinfrônio, o velho bajulador, apenas um nome a mais no maremoto de rochas locatárias.
Um prédio estancara-se em sua mente. E rodopiava com seus quatro blocos ornamentais sobre sua imaginação. Via debruçadas nas pequenas janelas toda uma fauna de moradores.
Do vigésimo andar algo se desintegrava. Os ossos de Seu Leopoldo – pois que já morrera certamente, sendo um velho desde aquela época – sua caveira devia possuir uma ossatura larga, tão impávida quanto colossal dentro de sua solidez africana.
Viu como estou com medo? E como tremo! Uma pirraça, teimosia insone dentro do vestido vermelho. E o correio? Ainda sou a antiga destinatária de mim mesma? Se não me falha a memória, tinha chegado ao vértice da história, quando me vi parada e absorta dentro de um correio. Porque se parei nesse ponto, poderia escrever agora uma carta a Leopoldo. Da altura de um vigésimo andar e na aquiescência da obscuridade, só poderia clamar aos mortos.
Lembrara que antes de se ver paralisada, tinha-se prometido assistir a uma exumação. Iria assim, de gaiata, assistir a exumação de um desconhecido. Foi Vadim, o dentista, quem recomendara, já que na época, ela escrevia um texto sobre o retorno do homem morto. E agora já nem se lembrara que rosto possuía esse morto.
Que dias contavam? A vida não se conta em dias e sim em anos, alguém cochichou. Então lhe restara um correio, apenas? Cartas aos mortos? Sim, era a resposta.
E a tempestade formou o seu bote.
terça-feira, 28 de abril de 2009
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