A vida é tão breve que a gente quer se agarrar em alguma coisa. Um trapo, um retrato, uma carta.
Glória se agarra às pernas da cômoda aberta.
Relê os bilhetes dos amigos que já se foram.
E agora adotou uma avó: Dona Antonieta. A da queda.
Glória reage e não dorme. Quer ver como a noite se comporta.
Banguela. Um buraco dolorido entre o pré-molar e o ciso.
Glória aguenta a dor.
Sem analgésicos, que só nos impedem de sentir.
Porque economizar sentimentos?
Por que subtraí-los?
Só felicidade, só alegria, só comercial de Margarina?
E o cu?
Onde fica o cu nessa história toda?
Eu defendo o espaço para aquilo que fede, para aquilo que não respeita as conveniências das salas de estar. Para os assuntos fora de moda.
Para a dor do buraco, o mau hálito, as asperezas das conversas entre casais, abro as cortinas à mandíbula caída, que passa.
O que fazer com um apetite insaciável, que foi domesticado durante toda a vida e em silêncio e hoje vive num vigésimo andar inacessível?
Glória quer comer o mundo, mesmo sem dentes. Mesmo com sinusite crônica.
Feridas abertas, vamos espalhar os segredos mais abomináveis.
Cochicha Glória no meu ouvido rouco. E eu aceito. Eu topo.
Glória é sagitariana, meu ascendente. Ela me corrompe fácil e sempre ganha. Mesmo quando me leva para o nada absoluto.
Vamos tomar providências para sair daqui. Consertar o chuveiro, desentupir o ralo, pregar o cabideiro antes da grande explosão.
A merda também tem a sua dignidade.
E os banguelas, as aberrações desse Music Hall ininterrupto, devem apresentar seu número.
Glória está pronta. De espartilho e plumas enfeitando a cabeça.
Ela sorri para um público apático. Eu, de fraque.
Ninguém percebe a falta de dente. Dela. O molar morto não recebeu nenhuma homenagem, nem o do tomate na cara.
Os tempos são outros. Glória não pôde decorar o texto, pois sua língua, ao raspar no buraco saltado, machuca e impede a dicção perfeita.
E o que impressiona é que mesmo quando sorri longamente, lentamente, essa boca imaginária, ninguém vê o buraco.
Só na tela do computador é possível existir hoje. Só no You Tube. Participando das conversas das celebridades de amanhã, de um realit show qualquer.
"Todo dia a insônia me convence que o céu, faz tudo ficar infinito."
Glória está deitada no chão, em frente à vitrola - gosta do chiado do vinil - e todos os discos do Cazuza estão espalhados, se estivesse vivo, Cazuza faria hoje cinquenta anos. Glória comemora cada frase do LP "Só as mães são felizes", até o dia nascer.
Não necessariamente feliz.
Rio de Janeiro, pedra do Arpoador, asfalto quente, mãe correndo pra lá e pra cá.
E o buraco entre o pré-molar e o ciso latejando com cálida ternura, cúmplice ao compasso da música.
A vida é esse eterno molar que se parte. Que está indo.
Primeiro nascem os medievais dentes de leite, depois eles caem - primeira despedida.
Depois você cresce e os definitivos começam a imperiosa escalada.
E agora Glória desce novamente a serra, o primeiro dos definitivos se fôra...
Segunda despedida.
Mas, nem tudo é dor.
Ali atrás, é só abrir a cortina do pensamento...
temos a pedra do Arpoador
E é pra lá que ela vai
Agora
Como quem foge da preguiça da noite mansa.
E se atira ao sonho.
"Essa é a vida que eu quis."
quinta-feira, 2 de abril de 2009
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2 comentários:
Na sexta feira, rolou uma onda Cazuza no ar. Deve ser porque passou o filme dele na Globo.
Mas logo pela manhã,ouvi as pessoas assobiando as músicas no ponto de ônibus, e juro por deus,que vi um adolescente com um paninho na cabeça, e não foi ilusão matinal provocado pela insônia, e nem pelos remédios pra dormir, que ultimamente, tem me deixado muito louco ao invés de ter sono. No meu ensaio, a gente brincava dizendo que a qualquer hora o vocalista ia tascar o beijo em alguém (por causa de uma cena do filme)
E até a Glória..rs
O Cazuza como compositor, era um gêniozinho, mas como ser humano, os teus delírios, excessos...ainda precisamos dessa figura mítica-romântica que é o artista genial auto-destrutivo que morre jovem? É claro que uma das condições pra torna-se mito, é morrer jovem.
Como Che, Charlie Parker, Jimi Hendrix, Janis Joplin.
Alguns dizem que essas pessoas viveram muito intensamente, por isso, não teriam como viver muito.
Sinceramente, eu acho isso um pouco de ingenuidade. A vida é sempre intensa, pra grande maioria das pessoas.
Sexo, drogas e rock n roll. Isso é tão ultrapassado. E tão ingênuo.
Por ex, a Amy Winehouse, que alguns até comparam com Billie Holliday ( ok, é como comparar um mangalarga com um bom pangaré), a mídia ao mesmo tempo que critica, cria uma aura de artista não hipócrita d atitude.
Cara, ela tem mais ou menos a minha idade, ela devia era senta a porra da bunda, diminuir a porra da quantidade de drogas e se dedicar a porra da música, porque a Billie se matou na heroína, mas ela deixou uma obra vasta.
Eu odeio esse endeusamento de artistas auto destrutivos, porque não é o meu ideal. Não quero morrer pela arte, e sim, viver...viver até a eternidade da alma. Vamos admirar a obra pela genialidade, e lamentar pela burrice, pelo desperdício de talento. Sensibilidade sem razão é um excesso, Razão sem sensibilidade é outro excesso, tudo se resume na busca pelo equilibrio.
O texto tá ótimo, e to adorando essa produtividade.
Ah, its rock n roll all night, and Glória everyday.
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