quarta-feira, 1 de abril de 2009

Bendita Insônia

para Vadim Nikitin


Duas coisas capazes de humanizar o homem: a insônia completa e irreversível e a extração do dente (na idade adulta, claro, não falo dos dentes-de-leite comemorativos).
No primeiro caso, a pessoa que não dorme, vive num emaranhado, uma espécie de curto-circuito com o mundo e consigo mesma. Passa por ela o entorpecimento dos que não conseguem alcançar o alimento em cima da mesa; peras, maçãs e uvas solidamente erguidas, não a comprazem e ainda encaram-na suspeitosas, como se colocando em xeque essa constituição tão complexa e racional, mas incapaz para a mordida. E o insone sente-se de repente, um impotente diante de qualquer ação banal e ordinária. Eles pressentem o oásis perto, mas seu movimento tem a inapetência da câmera lenta, não podem correr ou se arremessar ao primeiro táxi, metrô, ônibus que aparece. Esse ser desprovido de sonhos, pisa em ovos. Sua vista turva o impede de enxergar a mistura de nojo e indiferença do primeiro transeunte que passa. Boca suja. Com pasta de dente no canto superior da boca, ele atravessa a rua, não percebeu sequer que acabara de escovar os dentes, entretido que estava, com as novas formigas que saíam de um buraquinho minúsculo atrás da porta do banheiro. A pessoa que não dorme, vê as microscópicas formigas ignoradas até então, mas é incapaz de enxergar o próprio rosto. Os valores são trocados, esmorecem os da ordem do dia. Um vento mais forte, a ameaça de chuva, qualquer alteração de temperatura, como que desestabiliza o nosso humorístico zumbi e ele escorrega por cada cômodo, orgulhoso de cada passo dado. A infância, lá está ela, como um botão novo, despontando na aurora da memória e renascendo a cada instante. Ele ouve os passos da tia, o Piolho gruda na Gêmea e daqui há alguns dias teremos uma cadela prenha circulando pela casa, papai grita com Lucas, Manu se lambuza de manga e esconde os caroços debaixo do sofá, vou conferir a merendeira repleta de Mirabells. Preciso ir ao banco, pagar aluguel, gás, condomínio, tenho reuniões, prazos para entregar a nova planilha, almoço, dentista, encanador, eletricista.
O insone é um visionário. O único que consegue entender, sem compreender de imediato, que Juiz de Fora e os santos da Igreja, o gato Ronildo da professora de piano e suas orelhas inflamadas, o barquinho lá longe que Mirani aponta com os dedos melados de sorvete, estão aqui, neste instante, e não longe no tempo e no espaço. Não existe nenhuma distância. Absolutamente nenhuma e o menino é o adulto imaginário. O Banco do Brasil é a miragem. As contas, os apelos, a planilha, nada disso existe, são ilusões do adulto migrado para os assuntos considerados importantes. O insone tem as pálpebras pesadas e assim deve ser. Sempre. As pálpebras pesadas são a nossa única realidade e à elas devemos nos manter ancorados. O tempo não é mais o da folhinha nem o da caderneta de poupança. O tempo não existe. E somos engolidos e tragados pela onda do mar que quebra abrupta, bem no meio do crânio. Embrulhados, não conseguimos alijar um pensamento. E aí que a brincadeira começa.
O insone adulto se ressente da casa materna, dos poucos cochilos que dava, da resistência da criança diante dos maremotos da casa samba-canção, um ébrio em forma de casa, rodando no ar, como o furacão de Dorothy em "O mágico de Oz". O movimento circular do pensamento do insone não divaga, é a luz. Quem dorme mal é um ser em eterna repetição, vigilante. Como a própria natureza.
Agora a extração dentária. Glória por exemplo. Está de boca murcha e em seu semblante está pregada a máscara do desamparo humano. Enquanto seu dentista - Vadim, um russo elegante e com doutorado, mestrado e pós-graduado, todos os pré-requisitos dos doutores da categoria exemplar e inquestionável - enquanto ele arrancava - a sensação era de uma chave de fenda que arrancava seu dente - mesmo não sentindo dor na hora, pois estava amplamente anestesiada, havia algo de agressivo na ação, era uma violência, claro que concedida e autorizada. O dente se fora, partira, e o doutor perguntava se ela queria guardá-lo, como recordação. Glória titubeou, e no final, o próprio médico decidiu: "Melhor não, esse dente está todo partido". E Glória saiu dali como se fosse uma lata, uma vasilha, ou na melhor das hipóteses, um jarro. Não conseguia falar casa, mamãe, papai ou gugudadá. Todo o lado direito da sua boca estava comprometido ao infinito com a imprestabilidade. Seu sorriso parecia com o do Concunda de Notre Dame. E perdera a sua qualidade mais vital: a capacidade de se expressar, sua voz. E aí está, Glória ficou em silêncio. Um silêncio anestesiado, silêncio banguela. Ou seja, o pior silêncio. O silêncio dos impotentes, - não confundir com o dos inocentes, pelo amor de Deus! - Silêncio Vacum.
Agora quer fumar, quer fazer qualquer coisa que a distraía desse silêncio profundo, infinito. O efeito da anestesia está passando e aí entra o terceiro ponto fundamental do processo de humanização: a dor.
Glória está calada, muda como uma múmia, acorrentada nesse vazio da eternidade, vivendo esse intermezzo, vazado de não sei que antigas angústias e privações, e ainda sente algo de viril e concreto a ativar sua presença mundana: a dor lancinante. Esse incômodo-tortura que se dá desde a raiz do dente até a bochecha é algo que nos legitimiza enquanto seres humanos. E na maioria dos dias, entre o almoço e o jantar, esquecidos dessa posição no mundo: a humana, a máscara da apatia e da indiferença se crava em nosso rosto, com desesperado apreço.
Perdido um dente, queremos dar a mão. E na hora que Vadim, o doutor dos doutores do implante dentário, arrancava com uma chave de fenda seu molar, ela só pensava em alguém para lhe dar a mão. Ou que enxugasse o suor de sua testa. E andando na rua, já morto e sepultado o dente (o primeiro que nasce na hierarquia dos dentes), ela olhava as pessoas com abnegada aceitação. Não que todos fossem, ou ela desejasse que fossem homens santos. Não. Não havia ali, qualquer complacência em função da dor. Ao contrário, estava plantada na terra dos homens mais do que nunca, e o dente suplantado a lembrava disso. Os seres mais abjetos e monstruosos passavam por ela, com castigada intensidade, e Glória imaginava um por um, na cadeira do Vadim, com a chave de fenda a arracar-lhes os molares e pré-molares. E viu, que se isso acontecesse, seria um salto para a humanidade. Sua vontade era gritar-lhes: "Arranquem um dente! Arranquem um dente! Pelo menos uma vez na vida, pelo amor de Deus!"
Glória e suas duas metades: o lado gauche do rosto poupado e o direito humilhado e ofendido. E murcha como uma azaléia rejeitada diante das orquídeas - as orquídeas eram a massa volumosa de homens e mulheres com seus dentes lustrosos e perfeitos - parou, junto ao meio-fio e observou por um momento, o movimento de saltos altos e tailleurs da Avenida Paulista. Por exemplo: o tailleur. O tailleur é o tipo de indumentária que desumaniza. Faz exatamente o trabalho contrário. A fulana sai de casa de manhã, com seu tailleur cinza e do alto do salto alto preto e antes de fechar a porta à chave, já ouve imaginários aplausos. Não há nada mais distante da secretária de multinacional do que o dente extraído. Pela maneira de andar, Glória adivinhava: "Esse já viu seu molar morrer, essa não, esse está precisando urgentemente cair na cadeira do Vadim, chave de fenda em punho, já esse outro, coitado, já viu todos os molares, pré-molares e caninos, escoarem pelo ralo, numa hemorragia hedionda."
E volto à insônia. Quem já passou uma noite em claro - e não falo dos que estavam ocupados com contas, projetos gráficos, arquitetônicos ou filosóficos, e ainda muito menos daqueles envolvidos amorosamente, a chamada insônia afrodisíaca, ou da mãe do recém-nascido que grita o peito. Não. Quero falar das pessoas que passam a noite em claro, no vácuo perpétuo. Vivem e suam no combate gratuito entre o sono e a vigília, e ao começarem a dormir, ouvem a seguinte voz: "Hum... Está achando que agora vai decolar, não é? Está crente, crente que nesse instante, vai ser carregado pelos braços de Morfeu... Pois bem. Está quase lá e... Adivinha? Não, não e não. É hora de rever os crimes." Quem viu o rosto abominável do anjo maligno da insônia, sabe do que estou falando. Os outros não interessam. Os outros estão circulando por aí corados e do alto de sua onipotência sadia e sem complexos de inferioridade. Esses são os desumanizadores do universo e repito: se o Homem se distancia cada vez mais do Homem é porque este dorme bem e nunca extraiu um dente. É fundamnetal sentir-se impotente diante da dor e do sono. É fundamental sentir-se impotente diante de si-mesmo. E ser vencido.
O abacateiro nasce e cresce em silêncio. Ninguém se dá conta, e, de repente, milagre: Ei-lo!
Quem não dorme, não tem fome, não tem sede. São castos da vontade e se persignam antes de sair de casa. Temem a hostilidade do mundo, pois não estão preparados, a artilharia está dormente pelo débito de sono. E por isso, voltam a ser criança. Voltam a olhar o mundo pela primeira vez. É como se esquecessem a rotina dos mecanismos de defesa, o cinismo cai por terra e a revolta necessitaria da renovação do descanso noturno. São esses, os únicos homens, que percebem a fila de formigas microscópicas e tão ignoradas que se amontoam no fim do banheiro. E assim, se esquecem de conferir o próprio rosto. A gravidade os puxam pra trás, os calcanhares aterrizam, as pernas estão bambas e os joelhos são flexionados, eles se voltam para a terra, para os mortos. A insônia é uma ode aos mortos, é um retorno. Eles olham o mundo e não entendem, não estão ligados na tomada, lhes faltam alguma coisa, uma precisão, certa segurança. A estabilidade é a morte do homem, a morte da criatividade. E uma coisa de que o insone está muito distante, é dessa estabilidade fatal. Ele oscila, e a ação, urgente e utilitária, perde todo o sentido e desencadeia uma imprecisão. E essa imperfeição está repleta de vida. E ele tem contato com a fragilidade de todos os sistemas discriminadores. O insone é o mais lúcido dos seres e pode ver numa simples cadeira algo de transcedente. Seu pensamento é circular, não atuante, nada engajado, ele está perpetuamente em dúvida, pois a frequência das ondas cerebrais diminuem e ele deixa de ser o grande estruturador do mundo. Estão solitários entre os bem dormidos e tão eficazes, e por isso, mais humanos do que nunca.
Insone e banguela, Glória só deseja ficar como agora, olhos pardos e amenos, concentrados na dor da pequena mutilação: O buraco instalado em sua arcada dentária. Pendurada na janela e um pouco irritada com a dor, ela observa a rua apagada. Por algum motivo desconhecido o bairro está todo no escuro. A luz acabou.
Vê o movimento das ruas, do alto do seu vigésimo andar. Pessoas que saem de seus apartamentos e fazem pequenas reuniões na rua, perdidos que estão, na imensidão de seus apartamentos no mais puro e cálido breu. E por não suportarem esse pequeno recesso de luz, eles voam para a rua e levam junto, as latas de cerveja e a conversa fiada.
"Arrenquem um dente!" pensa Glória.
"Arrenquem um dente, pelo amor de Deus!"
O insone aguenta tudo, assim como o homem do dente extraído. Até mesmo a falta de luz. Só lhe resta esperar, com paciência, a noite que se inicia a libertá-lo do cansaço do dia. Calmo e atento. Como um abacateiro.

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