domingo, 10 de maio de 2009

Mariposa

Se Sinfrônio aparecesse agora, e mesmo que nem a ajudasse, e ainda, que a ignorasse descaradamente – como os outros faziam, na sua solidão irremediável – já seria para ela um bálsamo e a palavra ao ser desenhada com todas as sílabas no pensamento, perdeu imediatamente seu encanto e sentido.
Sinfrônio apareceria e não Dona Miriam com sua pochete cheia de ferramentas e a disposição dionísiaca em arrancar paredes. Algo sobrevoava neste instante, o teto do apartamento. Jeremias acordou de seu sonho, atento a visita que entrara. Na realidade não entrara nada de novo, era o quadro que se despedia da parede para ganhar uma expressão de vôo pálido. A mariposa abria e fechava as asas com uma incompetência desconcertante. Um dia, alguém lhe dissera: “Você se parece mais com uma mariposa do que com uma borboleta.”
Quem lhe dissera isso, causando uma impressão tão dolorosa?
O rosto veio imediatamente em seu socorro: era Eugênio, dono do restaurante Vó Sandinha.
Sim, ali almoçara nos últimos cinco anos e apegara-se de maneira inusitada à família proprietária. Foram também os últimos com quem falara. Eugênio, a meia-voz, apelara-lhe febril: “Tenho desistido. Desisti de tentar me entender. Nunca mais retornei ao hospital. Aquela psiquiatra não fala nada!... Só disse que eu tinha que largar o berço!”
E ele achava pouco.
Para alguns, noventa palavras não formam uma sílaba. Para outros, meia sílaba é suficiente para um epitáfio inteiro. Ou para esmagar de vez com todo o significado.
E Glória, qual seria o seu epitáfio? Mas se ainda procurava um prólogo... Balas de gengibre. Era o que precisava agora. Desde que a pneumologista indicara balas de gengibre para camuflar a vontade de fumar, Glória ficara viciada nelas. E ainda mais nos cigarros. Um vício alimentava o outro, numa simbiose abominável. E o que enganaria a fome? A garganta seca? A vontade de entregar-se de corpo inteiro quando já não havia mais o risco de um corpo? O que camuflaria o abandono e a lucidez?
E nem se despedira desse corpo. O que a trepidava era uma alma apocalíptica. Rangendo, ao fundo, como uma cadeira de balanço, onde o recém-nascido sucumbe esmagado pelos olhos da mãe e asfixiado pelo leite materno.
Os olhos da mãe.
A alma intacta. O corpo deportado.
E mais água se formava aos solavancos, atravessando a fronteira entre o sangue e as vias respiratórias para boiarem sardônicas, dentro do par de olhos ungidos. Envelhecera. Glória estava bem velha. De repente, uma anciã suspirava em sua carne. Já sabia a temperatura jocosa que amornaria os próximos anos, depois da temporada infernal. Pois ainda não havia estado lá. Só colocara os pés na beira e muito amiúde. Com a fantasia de odalisca lhe enfeitando a face, fanavam escondidos os olhos estrábicos. E mesmo anos depois de realizada a cirurgia ocular, o desvio continuava incorporado a sua presença integral. E Glória pressentia que a operação empregara um outro efeito, ainda mais devastador. Alcançar com os dois olhos o mesmo ponto no espaço era usurpar algo da criança. Pois que matava, numa tacada só, a coisa vista. Antes, não. Havia certa discrição e até uma solidariedade intrínseca. Um olho enxergava as coisas de fora, a vida, o mundo, os bichos, as pessoas, e o outro concentrava-se no ponto de dentro, um medo, um espanto, uma alegria. E quando levantava e mirava o horizonte, havia uma contramão integrada, destituída de critérios, espantosa na sua descoberta do mundo. A paisagem ganhava um aspecto dilacerante, mais real que a própria vida – pois a vida não era esse tráfico ininterrupto de idéias e sensações flagrados pelo mundo exterior? O que via e percebia antes, era assombro e paisagem. Obliquidade e veemência. E assim, formara-se a criança ciente da simultaneidade das coisas. Agora só restara a tirania da visão direta. A visão objetiva e exata.
E tudo mudou, findando a ambiguidade que a despertara. E logo o pranto retrocedeu e deu lugar a um sorriso estriônico e estagnado. A bruma a receptara para aplacar a insensatez. Desaprendera ao longo dos anos a ser o vórtice de si-mesma. E como uma compensação, os olhos novos, agora firmes e implacáveis, localizavam certeiros o ponto desejado no espaço, destruindo uma apoteose infinita de possibilidades. Com o tempo Glória passou a olhar em demasia pra fora e perdeu o contato com o mar de dentro.
Foi uma perda incomensurável, e via-se nos últimos dez anos na tentativa desesperada de restituí-lo.
A fronteira entre o que era; a tenra infância e o que haveria de ser. E o que haveria de ser?
Não interessava no momento, já que estancara no entremeio.
Ela era a própria fronteira.
Crisálida. Crisálida. Crisálida.
Não deveriam interromper um processo como este! Seria uma violação, um crime. E este crime não seria seu, não poderia somá-lo aos outros, inomináveis. Era o crime divino que a atormentava. Deus acaso cometeria a injustiça de abortar uma transição que mais adiante a revelaria diante de si-mesma?
Escute Glória, tentava convencer-lhe baixinho o olho vesgo que procurava; nada se interromperá. Você precipitou-se ao virar o espelho contra si, só isso. Agora, aguenta o tranco! Algo virá depois disso. Espere.
Algo virá, algo virá... Nada virá.
Nada vem até de nós, nada. Havemos de ser nós mesmos, os únicos a trazer a vida nova, a melhor. A verdadeira.
Então está querendo de novo, querendo não, já está fazendo com esta frase, a atrocidade impermutável de abrir com as próprias mãos, as pétalas dos lírios.
Sim. E não.
Devemos buscar essa vida melhor. Arregaçar as mangas e ir até lá, com gana de tigre e espírito de lenhador. E outras vezes, reflexiva, percebo que é mais fecundo o esperar. O lânguido deslizar sob a noite de náuseas, mar de espumas duvidosas, o mar.
Velha mansa arregalada.
Deixar a cargo do destino, sim.
A cargo do destino, a cargo do destino...
Você não decide, Glória. Ou estamos de um lado, ou estamos de outro.
Vamos lá.
Mexa-se.
E tentou acarinhar o gato. Outra tentativa inútil, pois os gestos, todos eles, haviam lhe abandonado de uma só vez.
E isso não seria a resposta? A Resposta à sua Pergunta? Continuava o outro olho, o interceptado.
Se eu mal esbarro numa conclusão – que seria uma possível Resposta à imobilidade em que me encontro – e logo em seguida percebo muito claramente – e isso é o mais terrível, essa clarividência aterradora – que essas lágrimas não são minhas e os gestos, – quando ainda os possuía – tampouco eram meus. Estátua falsa, de alguém que se treinou e se perdeu. O andar e uma certa maneira de olhar, por vileza – ou embaraço – também surtados.
O susto, roubado. O medo, roubado. A melíflua brandura, o gato, roubados. E a própria dúvida, usurpada de outrem. Tudo e todos, sonsamente saqueados, para existir precisei experimentar tantas formas e andrajos, arrancar risonhamente tantos tesouros alheios que o meu, inerte, desconhecido, permaneceu desligado, como um fio sem o interruptor. No fundo da xícara, um resto de erva fenece, esmagada pela exuberância da louça fina e importada.
E agora dou-me conta de que aos poucos, e sorrateiramente, todos os disfarces roubados estão sendo devolvidos aos donos, dia após dia. Sem deixar um único vestígio.
Até eu me transformar num indício.
Ou numa vacância.

1 comentário:

Nysa disse...

Pri, q lindo texto! Quão rico, verborrágico, densamente narrado. Parece q a vejo gigante nas idéias, voluptuosa nas palavras. Fantástico! Fiquei emocionada e com saudades.