Novos fogos de artifício. Outro jogo de futebol e hoje ainda é quarta-feira. Na verdade os dias não passam. Nós é que circulamos em volta deles.
Por puro medo de ir, deixei que os dias me seguissem, sem lembrar que era eu quem circulava esbaforida em volta de mim mesma, como se houvesse alguma glória em atingir esse ponto do outro lado.
Procurei em torno, abri gavetas e ainda as abro. E me parece estranho que sigamos os dias sem nenhuma manifestação de queda.
A queda. Se os jogos de futebol e as arquibancadas silenciassem e os professores reagissem contra as velhas fórmulas e as pessoas largassem seus carros no meio do caminho, provavelmente tudo isso configuraria em alguma espécie de queda e poderíamos, talvez, enxergar o contorno vago do fim. Escuto o grito sobrenatural da multidão, sobrenatural porque tão distante e ao mesmo tempo imperiosamente audível. Compacta em seu círculo vicioso de existir. Quando os homens se juntam e evocam o mesmo grito, sou sugada imediatamente para um redemoinho de lembranças e sensações.
Mas tranquei a gaveta da memória e joguei a chave fora, para cair no terror do presente. Estou aqui, nessa cidade que não é a minha e paralisada internamente por um buraco de uma extração dentária.
Uma palavra que tem me intrigado muito ultimamente: raiz. A multidão, está eufórica, fogos de artifícios explodem por todos os lados e o mistério da palavra raiz abocanha o momento com maestria sombria. Ainda mais sombria sobre a casa e o gato acordados. A multidão continua, ela é o tijolo.
Raiz versus multidão. Assim, juntando esses dois cacos poderei formar um espelho inteiro? Comecei a escrever aqui por ansiar algum tipo de comunicação, a esperança utópica do diálogo. Não, não foi bem isso. O gatilho foi outro, eu precisava chegar em um ponto. O esboço que seja de um ponto. Alguma espécie de xis da questão, objetivar esse ponto, me despedir das curvas para finalmente adotar a linha reta. Preciso de algo que não seja vago. É isso. Que não seja o meu rosto turvo e envelhecendo condenado ao vidro embaçado.
E não vejo nada além da neblina. Mesmo o trabalho doméstico, a roupa estirada no varal, minha privada sem a tampa. Nada me parece sólido, tangível. Depois da extração, o dia e a noite adquiriram traços tão concretos de realidade, que ainda não percebo o desenho do todo. Então os detalhes sofrem uma ruptura e se deslocam das circuntâncias para ganharem uma dimensão nova. Por exemplo, as minhas botas. Vejo-as agora, estão aqui pousadas no chão de tacos e me parecem absolutamente distantes de mim. Eram minhas e deixaram, nesse instante de o ser. Se desligaram. Parecem inclusive como sendo de uma outra pessoa. Não. Na realidade, não parecem com botas que sejam de outra pessoa. Não. São apenas duas irmãs, sozinhas e independentes e sem nenhuma utilidade fora a de simplesmente existirem. Ufa! Que delícia deve ser nascer bota! Olhando-as, me parecem tão autônomas, quase cruéis dentro dessa autonomia toda.
Depois do dente extraído parei de dar cordas no relógio da sala. É preciso trabalhar, retocar a máscara e buscar Glória que tira uma sesta, mas o relógio já não existe mais. Como continuar sem o conselho de seus ponteiros? Glória dorme.
É preciso vestir-me e buscar o material de limpeza no supermercado, comprar comida pro gato e limpar a areia dele. É ainda preciso comprar uma nova tampa para a privada, desemtupir o ralo e aprender francês. Enquanto isso a palavra raiz faz acrobacias em meus pensamentos e o dente parou de doer. Preciso de pensamentos novos para pensar.
Oh, se ele doesse, se ao menos voltasse aquele incômodo latejante e ininterrupto, eu poderia até quem sabe juntar as duas coisas e chegar em algum xis de alguma questão.
Tenho vinte e nove anos e ainda não consegui chegar em nenhum xis de questão alguma. Aluguei Glória numa loja de conveniências e ainda não conseguimos fazer a junção de nossos corpos.
É preciso viver muito ainda, longos anos para dizer no papel tudo o que desejo viver.
O que me amedronta é não ter todo esse tempo - pois não tenho - para esperar, além de uma febre que não me deixa, tem Glória, que na falta de uma máscara tem me acompanhado.
Em algum momento de minha vida, algo aconteceu. Algo como uma paixão, um amor verdadeiro, coisas assim que gostaria de contar. Um dia. Depois vim para essa cidade cinza e começou a minha via crucis por um rosto.
Desde pequena sou falha nisso, não me habituei a nenhuma máscara. Não que não as use. Uso e uso muito, Glória é um exemplo, mas elas não grudam direito e caem. Desde pequena sofro dessa enfermidade. Estou em carne viva.
ÀS vezes compro roupas que tentam substituir o rosto, mas nunca são suficientes.
Depois que extraí o dente, uma revolução se operou em mim, como se a máscara fosse o dente que partira. E hoje ainda não sei o que fazer dessa descoberta tão recente.
Prefiro ouvir os gritos da multidão, daqui do meu vigésimo andar. E com muita paciência, resistir sem medo. Não. Resistir com medo. Não. Não resistir. Me deixar levar pelos gritos da multidão. Ser a multidão. Dentro de mim, sem arquibancadas para me amparar. Por um momento abro os braços e atinjo o grito conjunto. É indescritível não estar só. Ser um geral, um hino, uma vibração sonora. Sou agora uma vibração sonora e onisciente. Dura pouco. O êxtase dura pouco. Minhas botas autônomas mandam recados para meus olhos e a língua que encosta na raiz do dente, reivindica uma explicação. Não tenho nenhuma para dar. A não ser a de que precisava me jogar agora sobre o Estádio do Palmeiras e esquecer que preciso fazer algo. Preciso descobrir o essencial e não apenas ir seguindo, o círculo vicioso atrás do próprio rabo, preciso dar um basta nisso, alguém tem que dar, que seja Glória. Não quero apenas seguir o círculo como quem vai e sem medo. Não. É o medo que me aponta o caminho, é ele o mais fiel companheiro do escuro da noite, quando não resta mais nada o que fazer ou ninguém para auxiliar.
Preciso ir sozinha, sem as botas e sozinha. E deixar crescer a raiz que vai absorver um dente artificial. E então poderei ser esse dente artificial, frouxo, desqualificado, um mero substituto. Um objeto postiço e tão inferior. Serei esse dente inferior, que nem dente é, é um pseudo-dente. Será brevemente uma peça de aço. Invencível peça de aço. E nesse dia, as palavras não chegarão mais até mim. E nem eu precisarei ir até elas. Serei o próprio intervalo. E esse intervalo desaguará em queda e a queda desaguará em silêncio duro de multidão e a multidão se dissolverá em cinzas e essas cinzas cairão do último andar sobre o mar e a nossa queda será a própria glória. E um fio, reconectado em mim e na substância infernal que me guia, me alçará até a palavra inicial, ao xis da questão, a palavra que perdi quando deixei de amar. E só essa palavra existirá, como esse único dente tão inferior e mestiço e eu finalmente deixarei de ser eu mesma para ser um país e como um peixe cego tatearei a porta por onde entrei nessa história para dizer a única palavra que eu precisava dizer nessa única vida. E que me faz escrever trezentas páginas só para achá-la. Só para espiá-la. Hoje, sou só raiz. E a raiz me olha, transida de dúvidas. E eu sou a mais pura dúvida dentária. Que ninguém quer ouvir.
E mesmo assim, permaneço sentada, aqui no meu banquinho, esperando.
A Glória.
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Gostei e de certa forma me identifiquei com essa inquietação.
Beijo
Thadeu Peronne
a raiz... reflexo sombrio da planta, do dente.
o que mostraria a raiz (quadrada? cúbica?) de xis?
a raiz, a rainha do underground.
oi, priscila!
vagner (amigo da ana dundes, sua vizinha)
Enviar um comentário