Glória acordou assustada ao ouvir o estrondo forte dos fogos de artifício. Depois de uma noite exaustiva de trabalho, foi dormir já de manhã e com a cabeça imersa na peça que terminava. Acordava ainda sem saber se o estrondo fazia parte do sonho ou se realmente existia. A última imagem: uma mulher nua perdida no quintal da própria casa, encaixava-se devagar ao turbulento começo do dia que já gritava a sua presença. Como dormira já de manhã, não parecia de jeito nenhum que adentraria agora em alguma coisa semelhante a um início e sim que continuaria a existir de um modo vago, esgueirando-se pelas paredes e entremeada pelos sonhos. Entre a narração - marcada pela cadência vigorosa do sonhador - e as palavras afobadas pela respiração desestruturada da mulher perdida no quintal, sobravam ainda restos de palavras sem qualquer elo, aquele final tímido das confissões quase inaudíveis, faíscas soltas, lâmpejos que misturavam-se com trechos de livros e frases que escrevera já com o dia amanhecendo. Sentia que não dormira, apesar do peso das marteladas que como um bate-estacas, furava a sua cabeça com símbolos, sílabas novas que não formavam nem sequer uma palavra e tudo isso fazia parte de seu sonho que era, este sim, prova inconteste de seu descanso. Ela erguia vacilante os olhos para os dois focos de luz sobre o quarto, o sol que por pequenas brechas se adiantava sobre a cortina: um dos focos abrilhantava a moldura do porta-retrato vazio e o outro iluminava uma foto do mural: o cachorro Gaffe de sua mãe.
Mas os fogos de artifício obrigaram-na a levantar-se de vez. Jeremais miava do outro lado da porta. Era preciso levantar e voltar ao trabalho, faltava pouco para finalizar a peça. Queria ainda permanecer um pouco na cama, imersa na armadilha do sonho, com essa mulher perdida e nua e tentar convencê-la a achar a saída e a casa, e isso quem sabe salvasse o seu dia. Ou a sua vida. Os fogos inviabilizavam a proximidade entre as duas mulheres. Será ela a outra rocha? A que silencia, a que aguarda? Ela pode ter alguma coisa importante para me dizer e se eu levantar daqui, nunca vou saber. Mas Glória levantou-se exaltada ao ouvir o chamado do telefone, e ao ganhar a sala ouviu os gritos de comemoração. O telefone já não tocava mais e foi então que teve a impressão assustadora: de que o tempo não passara. Era ainda o mesmo dia.
E o mesmo.
Será então que Glória desde a extração dentária não havia percorrido novos dias? Será que simplesmente os dias deixaram de a seguir quando parou de dar corda no relógio da sala? Seria uma catástrofe absoluta se acontera justamente o que sempre desejou: a doença de infância.
Sim, a doença que a libertaria da sobreposição frenética dos dias, a doença da infância, o retorno ao útero, o dia repetindo-se, alargando-se e sempre o mesmo como se fosse uma justaposição. Tudo retornaria como que por um milagre. Todas as memórias, todos os cheiros, as minúsculas intuições, os velhos desencadeamentos. Um dia que retornava sempre ao começo dele próprio abarcando assim todas as oscilações vindouras, pois ele se consagraria ali num movimento único e elástico e Glória poderia relembrar-se e relembrar-se e relembrar-se, como a boneca russa, retirando-se de dentro dela mesma a cada dia e diminuindo cada vez mais de tamanho até chegar à Origem, ao começo de tudo. Como quando colocamos uma camisa em cima da outra em dias de frio. As várias camadas em volta de um único meridiano, a própria Via-láctea. Um dia que recomeçava sempre no mesmo ponto e que novamente se desmanchava para continuar o mesmo. Seu sonho se realizava? Mas como seria isso? Ficar agora presa no mesmo dia? Tanto ela quis chegar ao xis da questão, na raiz das coisas que acabou chegando. Raiz quadrada, raiz cúbica? Tanto ela quis ser uma linha reta que acabou sendo. Tanto desejou deixar de circular em volta dos dias como se circulasse em volta do próprio rabo, que parece ter atingido o rabo. Chegou ao ponto.
– Ei Glória! É esse o ponto, você chegou. Mais rápido do que imaginava, hein? Sim, é aqui. Parece muito com um correio, você não acha?
Por vinte e nove anos recebi cartas que nunca abri e que agora sou obrigada a ler. E até vislumbro, veja só, planejo um álbum de cartas. Cartas antigas, novas e até as que ainda não foram escritas. O correio, esse ponto onde estou agora pode ser chamado assim: Correspondência, sim, é assim que o vejo, é o título do xis da questão, não, um título seria como colar uma etiqueta e engoliria todas as cartas, mascarando-as. Não é um título, é apenas um nome transitório, sim um nome que muda conforme o dia cresce, morre e recomeça. E aqui, neste correio onde estou, remetente e destinatária, encontrei sem saber a raiz que procurei para reafirmar esse buraco do dente. Um buraco que instalou-se em mim após a extração. Trabalho, almoços no restaurante à quilo, inundações no banheiro por causa do ralo entupido e jogos de futebol com os mesmos gritos e apelos. É sempre o mesmo time que vence. Fui tragada pelo dia que passava, como uma nuvem é tragada pela tempestade que desaba. Condensei-me. Estou agora aqui, bem dentro dele, como numa bolha. É a mesma mariposa que passa minutos antes do alvorecer, o céu tingido pelas mesmas cores de ontem ao se despedir do dia e nessa mesma ordem: carmim, laranja, amarelo, cinza e azul. Acho que nunca mais verei o lílas do crepúsculo outonal. Vou permanecer aqui, um eterno verão. Agora entendi o soluço pontual das quinze para as sete da noite. E os rochedos. Estou exatamente ali, junto aos outros e para sempre paralisada na pintura.
– Glória, não se engane. Mexa as pernas, os braços, estique-se e saia desse sonho!
– Não adianta mais, todas as vozes são a mesma e o que escuto nasce perpetuamente dentro dessas paredes, atravessando-as para estilhaçar no apartamento vizinho, até parece que janto com eles, que mastigo na mesma velocidade, muita couve e pouco talher, enquanto entreolham-se e dão suas gargalhadas cúmplices. E é neste prédio onde todos os blocos são iguais, que me restringi à meia dúzia de pessoas, são elas as outras rochas, habitantes do mesmo quadro. Aportei neste ponto único, irremovível. Foi um apelo, uma oração desde sempre ansiada e o eco tardiamente cedido. E eis-me para sempre no último prédio da rua Tavares Bastos como em L’Estanque.
– Rocha Glória. Lembre-se dessa meia-dúzia de pessoas e interfone. Alguém deve te render sem mais demora desse pesadelo.
– Pedi tanto a doença, coisa boba, febre ou apendicite, sonhei durante muito tempo com a tuberculose, a peste branca como se chamava na época. Não me atrevi a interromper a maquinaria da vida com minhas indagações ou sugestões. Estaria ali no alto da montanha e liberta da culpa pela licença médica. Continuam os fogos de artifícios, é um jogo sobrenatural. O que isso quer dizer? Estanquei em um ponto onde a multidão tem um único grito e esse grito é o nome de um time de futebol.
– Não sair mais daqui, chamar as pessoas que são as outras possíveis rochas. Meus vizinhos. O edifício eterno e compacto: Edifício Margarida, em sua transfiguração de moradia para prisão.
– A doença, não posso perder o fio, ainda mais agora, presa em L’estanque. Foi de tanto observar as rochas, eu sei, está claríssimo. Ou talvez não, talvez tenha sido o Rivotril. Tomei muito ontem à noite? Além da conta?
– Preciso sair agora desse sofá em que de novo me ancorei de vestido vermelho para me certificar sobre as gotas. Teria tomado mais do que o necessário para uma boa noite de sono?
– Desde menina pedindo, implorando uma parada. Para ficar ali entre uma sinfonia de tosses e apenas ouvindo, sem julgamentos ou análises críticas, sem me preocupar com a excelência dos enredos e liberada por mim mesma de fazer anotações. Como se a enfermidade me libertasse finalmente das exigências que me esmagavam diariamente, o culto do aperfeiçoamento, como se houvesse desde o nascimento, um piano em cima da menina. Lá, nesse sanatório seria como no quadro. Rochas ainda não geometrizadas radicalmente, rochas que são a transição para o pintor, um anúncio que ele ainda não sabia do quê. Estou aqui, sou Glória, vinte e nove anos e presa, encarcerada dentro de uma quitchinete, cheia de palavras na boca, mas muda. Uma contusão dentária, posso dizer assim? Contusão? Parada e muda cheia de palavras na boca e muda, esperando no sofá esfarelado da sala, um sofá que se desintegra parcialmente e eu em cima dele vestido vermelho, tentando uma organização interior. E exterior também. Prefiro a exterior, olho agora meu rosto no reflexo do vidro da janela, a noite toda iluminada e percebo aliviada a ausência de contração na face. Estou encarcerada e sóbria. Nova. Reinaugurada dentro dessa repetição. Perpetrando um gesto. Apesar de ser apenas o anúncio de um gesto. Preciso aceitar. Preciso aceitar. Preciso aceitar. O correio. Recebo constantemente várias cartas de um remetente desconhecido. Seria eu mesma? E tem também as cartas antigas, essas devidamente registradas, categoricamente registradas. E escrevo também, no momento escrevo para um desconhecido, alguém que disse que vinha e não veio. Se houvesse esse alguém, existiria A História, mas como já disse, não podemos conversar com as paredes.
– Glória fica assim, imóvel e olho fixo no relógio da sala, aquele que parou de dar cordas, que idéia de jerico essa de ter calado os ponteiros, agora mesmo poderia conferir o horário e isso seria tão consolador, visto que está visivelmente abatida diante desse silêncio.
– Mas não é imobilidade, Glória. O dia passa sim, ele não está parado. Só que retorna. E fingindo naturalidade todos na rua sabem e estão fingindo naturalidade. Ou seria alguma espécie de Conspiração só autorizada aos cargos de diretoria? E os outros, reles mortais, estarão anestesiados? Outro dia Glória viu no jornal uma entrevista com um professor de psicologia e ele dizia que as indústrias farmacêuticas não tinham interesse em descobrir a cura do câncer porque mercadológicamente falando, isso não interessa, e dizia isso assim num tom algo muito natural e o entrevistador também reagia muito tranquilo, como se aquilo já fosse uma verdade compreendida e aceita.
– Não adiantava descer agora e achar alguém para lhe responder algumas perguntinhas, até porque se isso fosse verdade, a maioria das pessoas não saberia de nada ou se soubessem, esconderiam para não correrem risco de vida.
– Glória pegou a bolsa ao seu lado no sofá e ficou ali, procurando. O que? Não sabia, quer dizer, sabia ao pegar a bolsa, mas o gesto a distraíra, pode-se mesmo dizer que a corrompera, sim o gesto a corrompera, pois havia algumas horas em que não movia um músculo. Anoitecera. Ela estava a procura de um papel. É isso. Um papel com nomes. Mas nomes de quem? Continuou procurando dentro da bolsa.
– Isso só pode ser efeito da noite mal dormida e também não devia ter tomado tanto café de manhã.
– Sim, Glória tomou duas enormes xícaras de café para poder sobreviver ao dia e aos fogos de artifícios e depois sentou-se no sofá destruído pelo gato para não retornar mais dali. E agora essas conjecturas abomináveis e irracionais repercutiam em seu cérebro ainda em construção, todo o seu desenho de corpo e rosto, quadriculado. “A gente nunca chega no que se é realmente.”
Foi uma escavação. Tudo isso, o dia retornado, foi consequência de uma laboriosa escavação. Ela queria o mistério da Esfinge e acabou sendo sugada por ela. Deveria ter adivinhado, não iria ser fácil. Era justo. Uma retaliação divina. Arrumou o vestido, ajeitou os cabelos, passando os dedos entre eles e deu um tapinha de leve na cara. Precisava acordar desse sonho. Era apenas um esgotamento nervoso, sim devia ser isso e não o Rivotril. Efeito ainda da extração dentária, provavelmente. Efeito de tantas anestesias nos nove dentes (faltavam oito) do recente tratamento. E também tinha a sinusite crônica, a insônia e a pneumonia recém-curada. Essas noites mal dormidas, essa peça que não ata nem desata em sua cabeça, durante a vida inteira circulando de lá pra cá, daqui pra lá como uma batata no meio de tantas outras e dentro de um saco, rolando de acordo com a demanda. E agora deixava de ser batata. Depois da extração deixou a antiga identidade para se converter em ... Rochas? Rochas em L’Estanque. Um quadro. O anúncio de uma alvorada, dali surgiria o Impressionismo, o Cubismo e todos os Ismos. Glória estava nua no quintal da própria casa a procurar a saída ou a casa, antecipando nas rochas o que só mais tarde se concretizaria. Esperaria até o fim da vida a alvorada proclamar-se? Será que vivemos sempre assim a construir e destruir alvoradas? Esperando sentados por elas? E quando não estamos sentados, estamos trabalhando e fazendo e construindo casas, somando novos tijolos aos antigos e os dias interpondo-se uns sobre os outros como os recém-nascidos que se amontoam nas maternidades? Sim, Glória tomara algumas gotas de Rivotril e mais tarde, depois de revirar-se na cama por algumas horas, decidiu tomar mais uma dose para finalmente relaxar do dia exaustivo e mergulhar no sono. Quantas gotas teria tomado a mais?
Com muito esforço, tentou levantar-se do sofá. Não conseguia. O fato desse sofá estar todo esfarelado, faz com que o indivíduo que ali senta, afunde cada vez mais pra baixo e sem conseguir retornar. Glória seria tragada por um sofá? Era esse seu fim? Consertou com algumas caretas as feições do rosto que se estilhaçavam, não conseguindo mais manter o auto-controle da expressão inicial, derramando os cacos pelo chão da sala. Ajeitou esse rosto como se fosse o próprio Doutor Ignácio da Conceição - era esse o nome do cirurgião plástico de Dona Edith José Fernandes Coelho, não era?
A campainha tocou. Agora era obrigada a levantar-se rapidamente. Não. Poderia ser uma ilusão sonora. E novo toque, agora mais forte. Ela precisava reunir todas as forças que tinha para sair desse sofá. Jeremias ignorava esse esforço. A campainha insistia. Quem será? Com um único fôlego reuniu todas as forças que possuía para sair do sofá e quando conseguia um equilibrio para erguer-se, tombou de vez ao início de tudo. Então começaram a bater na porta. E ao baterem com mais força, a porta se abriu. Glória lembrou que esquecera de trancá-la. Ouviu um murmúrio de homem.
“Quem é?”
“Vim ver o chuveiro.”
Era Doda - O Gago.
domingo, 19 de abril de 2009
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2 comentários:
É impressionante como o verbo sai fácil por aqui. eu com a palavra engasgada, invejo a verborragia...
O Doda, ah, o Doda... Não ouse perguntar seu nome. quero seguir acreditando que ele é a inocência em pessoa.
Esqueci de anotar seu telefone, pensei em deixar um bilhete na porta. Amanhã eu deixo.
Beijo, Dona Ilha.
P.S.:Acabei de sair do cinema, vontade de conversar sobre o filme.
Mais impressionante ainda é que não há nenhum vestigio de vaidade ou orgulho.Muito pelo contrário, a força que vem da fragilidade, isso é de fato, muito lindo.
Há uma vontade de compartilhar, de doar...essa é a linha tênue que separa os medíocres dos verdadeiros artistas.
O ritmo é intenso...não sei muito sobre vidas passadas, mas essa menina devia estar em NY nos anos 40 tocando com Bird e Dizzy...não me canso de repetir, porque é como me sinto toda vez que eu leio, é como ouvir um músico de bebop improvisando.
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