Jeremias se prepara.
Da janela, ele observa o movimento dos gatos noturnos e festivos. Quer sair e ao mesmo tempo não pode.
Está compenetrado no assovio das coisas, naquele som ínfimo que precede o grande acontecimento, o prenúncio fatal, bote necessário. Os gatos também escondem seus segredos.
Há em sua vida a suspensão e o silêncio para uma pausa.
O Abacateiro cresce em silêncio, ao seu redor, resta a desconfiança.
Quando existe o silêncio e a pausa as pessoas logo pensam em estagnação.
Ou em desistência.
Dentro da escuta submissa também pode morar a ação disfarçada.
Que não se suspeita, nem o próprio ser que se move numa inércia programada.
Intuitivamente programada.
Jeremias sente no ar o sorriso interno e maligno de Glória.
Que arma tudo com a maior das veleidades. Toda meticulosa e de unhas vermelhas.
Pra que tudo dê certo.
Pra que ele prove o artefato de um lirismo.
Domingo denso e lírico,
Sobre o guarda-sol.
Jeremias espera com a integridade do gato.
Está dormindo e sonhando com a espera da espera que Glória prepara tão minuciosamente com mãos de Santa. E não de Fada.
Estica o blanquet de Peru pra ele, melíflua e orgulhosa, como se este fosse a hóstia consagrada.
Só falta passar o fraque de Jeremias. E escolher a gravata.
No andar de baixo, uma gata estrábica esconde-se no último andar do armário.
Nada embutido.
Ela porém, nada sabe e resiste perplexa ao movimento da casa sempre animada.
Jeremias, no andar de cima, ignora o plano traçado pela dona, ignora sem ignorar totalmente, farejando entre os passos de donzela, uma predisposição nova. Ele então ensaia sua entrada dentro da arapuca preparada. Gatos são médiuns.
E por que Líria não sabe?
Porque está morando atrás e por detrás do sonho e o estrabismo provoca uma intuspecção amolentadora.
Glória foi estrábica. E cresceu atônita dentro dessa visão perpendicular.
De uma colcha enrolada, por cima do cobertor xadrez e no último andar do armário de uma gaveta minúscula, saltam dois olhos oblíquos.
Lá de dentro, nem os médiuns dos médiuns captam os sinais.
Mas pressinto que ela já sente o cheiro de mudança.
Por isso enrodilha-se ainda mais gravemente sob o cobertor xadrez.
Jeremias na sua inviolável compreensão destemida e fastidiosa da vida, finge nem desconfiar de nada.
Dentro de sua descrença atônita e ausência de expectativas, mora um amante ardente e virtuoso. Seus bigodes trepidam involuntariamente diante da prova que se inicia.
Ainda sementes do pensamento de Glória.
Ele sabe que algo está traçado.
Entre os olhos abertos e atentos de Jeremias e os estrábicos e timidamente sensuais de Líria, um corredor e dois lances de escada, os separam.
Em cada porta um número que ameaça.
35 ou 43
Quem baterá na porta de quem?
35 gata
43 gato
E assim termina um verso
ou um espaço.
Entre a espera e o fato.
domingo, 12 de abril de 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
É incrivel!! Você descreve com tanta riqueza de detalhes, que tenho a leve intuição de que a história é sobre outra coisa e não o tema que fica na superfície.
Ontem Líria se aventurou pelos jardins. Permitiu-se, ainda que desconfiada, ler histórias nos cheiros dos cantos, sob os olhos nem tão atentos de Diana.
Beijo, Dona Ilha, está tudo bem por ai?
Enviar um comentário