domingo, 8 de março de 2009

UM CONTO DE GLÓRIA

O FIM



A mãe a ensina como escovar os dentes. Francisca está em cima de um tamborete, cheia de espuma na boca. A mãe passa a escova de cá pra lá, daqui pra lá, com delicadeza. Aproveitando um intervalo, a menina faz a pergunta:



"Mãe, todo dia tem que escovar os dentes?"

"Sim, minha filha.Todo dia"

pausa.

"Todo dia tem que tomar banho?"

"Sim, todo dia. Agora cospe. Cospe direito, não no espelho né, Francisca?"

"Não sei cuspir."

"Cospe com força, vai! Meu Deus, nunca vi uma pessoa não saber cuspir, até seu irmão já sabe!"

"Tá certo?"

"Melhorou, vai de novo, mas é pra acertar o ralo!"

"Mãe, todo dia tem que cuspir?"

"Todo dia, ou você quer engolir pasta de dente?"

"E todo dia tem que ir pra escola?"

"Sim, claro."

"E dormir, mãe? Todos os dias da minha vida eu vou ter que dormir?"

"Vai."

"Comer?"

"Também."

"Fazer xixi?"

"Todo dia, Francisca. Agora enxuga a boca e vai fazer o dever de casa, que seu pai já está chegando."

"E o papai? Ele tem que fazer tudo isso, todos os dias, também?"

"Claro que tem. Todos nós, eu, seu irmão, a Maria...

silêncio grave

"Mãe...."

"O que é?"

Francisca enche o pulmão de ar, levanta os olhos num impulso de coragem e faz a pergunta de uma vez, sem pensar.

"E tem que morrer?"

silêncio

"Tem, minha filha. Tem que morrer"

A menina desce do tamborete e nem enxuga a boca de tão impressionada. Seus olhos são duas jaboticabas, que rolam perdidas, no gramado de um Maracanã enlutado. Fica olhando pra mãe num pavor inacessível. A mãe está andando de um lado pro outro da casa, ocupada em seus afazeres domésticos, a menina está com o coração aos arranques, fica andando atrás dela, tão absorta quanto perplexa.

"Mãe..."

"Já está tarde, Francisca, vai dormir."

"Você não acha impressionante isso?"

"Não, não acho. É a vida. Todo mundo morre."

"Você acha normal, eu, você, papai e Lucas, morrermos?"

"Ué, todo mundo morre, por que não a gente?"

"Mas você não fica chocada com isso?"

"Não."

"Não tem jeito, mãe? Não tem uma maneira de... E se eu rezar muito, todo dia, sem faltar?"

"Não vai adiantar nada."

"Meu Deus, como pode isso? Deve existir um jeito, algum sacrifício que."

"Nenhum."

"E você fala isso, assim? Você acha natural que?"

"Menina, agora chega!"



Durante três meses, ininterruptamente, Francisca só falou disso, na escola, no ônibus, no prédio, na rua, em todos os cantos, ela perguntava muito afobada pra alguém: "Você não fica muito impressionado que um dia vai morrer?" A resposta era sempre igual: "Não."

Ou as pessoas estavam fingindo ou eram loucas. Como achar tão natural uma coisa assim? Inapelável...?

Em todos os momentos de sua vida até a velhice, Francisca evitou o fim.

Escrevendo, falando, tendo insônias e sendo sempre a última das visitas. Resolveu em certa altura, não namorar mais, pra não viver também essa morte, tão dolorosa pra ela. Não lia os livros até o final, deixava sempre as cinco ou seis últimas páginas para um dia desesperado. Até hoje não sabe como terminou Madame Bovary ou qual foram as últimas palavras do Príncipe Miskin em "O Idiota", ou o que Ana Karerina fez ao chegar na estação. Quando ia chegando nas últimas páginas, dizia para si mesma "Outro dia, continuo." E assim se seguiram os dias, os anos e essas páginas continuaram intocadas. Saía do cinema um pouquinho antes da cena derradeira, porque nada mais triste, mais enfadonho, do que o final de uma sessão de cinema num domingo! Começou a frequentar o cinema às segundas-feiras, mas não adiantou... Namorando então, era pior, o melhor momento do encontro, era aquele!! O dia todo, desde o café na cama, almoço no parque, sesta, crepúsculo de mãos dadas, banho de chuva na varanda, era pra culminar ali. Chegaram ao Cine Odeon. Juntos, mãos dadas, olhos nos olhos, depois de escolherem o filme no jornal, com um olhar cúmplice e dividirem um café, era chegada a hora de entrar na sala escura e embarcarem juntos, lado-a-lado no desconhecido. Depois de alguns beijos e sussurros emocionados, o filme termina. Se olham ainda amistosos. Saem da sala, já nascendo um pequeno rancor e ao procurar o carro, na próxima esquina, o pânico irrompe. E agora? Uma pizza? Um choppinho? O que fazer? Já tinham namorado o dia inteiro e o ápice daquela felicidade tinha sido a história vivida por James Stewart e Kim Novak. E o que resta depois de Kim Novak caindo da torre?

Sentia aquele fastio pesar-lhe a alma e pensava: "Deve ser assim, morrer." Nem olhava o rosto do namorado. Sentia, pela sua respiração o mesmo apelo: "Me salvem disso!"

Ela, o filme, a pipoca e todo o crepúsculo de mãos dadas, tinham abarrotado o estômago do rapaz, a única coisa que lhe restava fazer, era sumir. E assim começava, com a voz mais doce:

"Murilo, eu também gosto muito de você e é justamente por isso, por gostarmos muito ainda um do outro, que é melhor, mais digno que terminemos tudo agora. Assim a decadência do sentimento não nos separará de vez. É bonito assim; terminar, amando, desejando. Tendo sonhos eróticos com o ex. Continuaremos sendo amigos, ok?"

Os homens ficavam sempre um pouco decepcionados, mas aceitavam, pois que o homem não foi feito para grandes reações. Às vezes, um ficava mais choroso que o outro, ou, no pior dos casos, batiam a porta, num doloroso despeito. Depois de algum tempo, telefonavam, achando que aquilo afinal, não era sério. Francisca mantinha-se firme em sua decisão, mesmo febril de amor.

Os anos passaram. Francisca tornou-se uma senhora bonita, mantinha certa voluptuosidade nas formas, porém adquiriu uma dureza no olhar. Não ia mais ao cinema e nem fazia as coisas de que mais gostava, como sentar-se numa cafeteria e olhar as pessoas, existirem. Parou de escrever, pois o término de um livro lhe era por demais doloroso. Passava meses como uma morta, sem comer, sem sair de casa. Até que num santo dia qualquer, lhe soprassem no ouvido, o clamor de uma nova idéia pra colocar-se novamente de pé. Parou de ver os amigos, pois esses, casavam, se mudavam e ela acabava sempre de novo sozinha e exposta aos horrores da despedida.

Até que um dia Francisca morreu. E evitou o quanto pode o céu e o inferno. Ao encontrar Deus fazendo a barba, implorou o purgatório, mas Deus, não entendia, pois ela tinha sido uma boa menina, até demais, nada havendo de reprovável em sua conduta. Ela chorava, arranhava o rosto, exigia o purgatório e já começava a xingá-Lo, quando Vosso Misericórdioso, tão comovido, colocou a mão em sua cabeça e disse:

"Pode ir, minha filha. Eu também passei por lá, uns tempos..."

"É como o Sanatorinho em Campos do Jordão? Tem aquela sinfonia de tosses?

"Sim, pode crer que tem."

Feliz, Francisca amanheceu em uma cama estreita que ficava de frente pra uma vista branca. O Purgatório era todo branco. Sem princípio, nem fim. Ela ouvia as tosses e os gargarejos e não via os rostos de ninguém. Nem o dela. Ninguém conversava, não havia assunto ali, pois que todo assunto termina. Tinha sonhos brancos, e não sorria, nem chorava mais. Ali, parecia um pouco com a Terra, depois de surgirem os ansiolíticos. O purgatório lhe era tão familiar, que nem se queixava. E dali não quis nunca mais sair, nem quando Deus lhe chamou para juntar-se a sua família que já havia subido. Deus entendeu, pois que também não gostava de despedidas.

FIM?

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