terça-feira, 31 de março de 2009

A NOSTALGIA DO INTERLOCUTOR

Glória sofre a nostalgia do interlocutor. É capaz de confessar a padeiros, jornaleiros e açougueiros, as humilhações mais abjetas, os desejos mais hediondos.
Está em casa. E logo já começa sua obsessão. Pode ser apenas isso: Está lendo, quietinha no seu canto, conseguiu se manter calada por alguns segundos... Agora, ri. E a gargalhada aumenta, soltando labaredas prodigiosas sobre o apartamento. O gato acorda. Glória sente o coração disparar. É o aviso, o gatilho de que precisava, como um vício. O mesmo processo. Você se anima, quer fumar. Você desiste, quer fumar. Você, descobre ou se lembra de coisas óbvias como: um gato dura menos que quinze anos e lá vai correndo, em disparada, requerer o ombro amigo do finíssimo e tão altivo, cigarro.
Do mesmo jeito, leu algo que a fez rir, chorou de emoção com uma frase lapidar do autor, ou fez não sei que descoberta extraordinária, e logo já está ela à caçar uma orelha.
Liga.
Ninguém atende, ou pior, atendem. Ela é capaz de ler o livro inteirinho e ainda retrucar: "Por que você não riu? Isso é engraçado. Você está dormindo? Está no computador ao mesmo tempo em que me ouve? Tenha reação. Tenha reação."
E obriga o interlocutor, a ter uma reação pungente, febril, entusiástica, ou no mínimo à altura da leitura. E se o pobre diabo se distrai, ou simplesmente não reage, ela solta fumaça pelas ventas.
"Assim, não dá. Assim não dá. Você parece um morto. Estou lendo para um cadáver."
O outro insiste: "Estou prestando atenção Glória, só acho que isso que ele escreveu, foi injusto. Volpi é muito bom e sinceramente, está bem acima de Portinari."
Glória está uma fera: "Você é bobo, isso não importa, o que importa na crônica não é isso. É o que está por trás."
Está chata, está chata.
E depois, no dia seguinte, lá está ela, de prontidão, o mesmo livro nas mãos, os olhos vítreos, pronta para puxar pelo braço a primeira orelha que reconhecer na rua.
Ainda não aprendeu a ser interlocutora de si-mesma.
As pessoas já fogem.
Ela tem um caderninho na outra mão, para anotar as reações de fulano à leitura. E logo, vai começar o parágrafo. Como na noite anterior sofreu a decepção de um lívido aceno, volta-se esfuziante para a mulher gorda, da fila do banco. Quer ler a crônica pra ela. Já se conhecem. Ela é uma das donas da papelaria em frente. Chinesas geralmente são sábias, Glória pensa. Quer que ela ria ou chore como Glória chorou e riu. Quer ver no rosto da gorda chinesa as grossas lágrimas de cumplicidade. Ou, se a pobre viúva, apenas se calar, ficar por um momento em silêncio e o olhar perdido, já será um belíssimo acalento. O que ela precisa é sentir a vibração dessa nota no outro, da mesmíssima nota. Um instante de vida, oriundo de um acontecimento comum. O acontecimento comum pode ser a crônica (pretexto) ou um atropelamento presenciado por ambas. Pode ser até uma observação minúscula, mas que se dá no momento exato em que acontece. Uma velha de seus oitenta anos está tentando atravessar a rua, um jovem, no balanço da música do seu i-pod, passa lampeiro. A bengala da velha cai, ele rapidamente se abaixa e a devolve sem olhar pra velha, ou não pega, não importa, e ao longe vemos que ela lhe pede uma informação, ele não ouve, ela grita, e sem nenhum reflexo, como se a música do i-pod de repente, lhe tirasse toda e qualquer coordenação motora, ele simplesmente esquece de tirar os fones. Ela está gritando o endereço que procura e não percebe seus fones de ouvido, pois está quase cega, graças à catarata. Ele chega perto e tem boa-intenção, mas virou um débil mental graças ao modismo implacável que assola o país. O mundo todo está plugado no aparelhinho. Ele encosta o ouvido na velha, estão cara a cara, mas o rock vence. O muro que os separa não é um bloco de concreto, imóvel e ideológico, como nos velhos tempos o era o muro de Berlim. Não.
O muro que nos separam uns dos outros, está em plena convulsão de axé. Ou funk. Ou mambo, que o seja; esse muro dança e não admite qualquer ameaça de silêncio. O silêncio é o inimigo mortal hoje. E o sujeito, de gravatas e bigodes fartos, chega em casa no fim do dia, e antes de tirar os sapatos, ou dar um beijo na esposa, ou qualquer outra ação que prenuncie um contato com seu mundo interior, liga desesperado, olho rútilo, a televisão, o rádio, o computador, tudo, ao mesmo tempo, agora. A gorda de varizes, está ao mesmo tempo num bate papo com um possível amante, ex-policial da Febem e em sites de relacionamento. E obviamente, tudo isso embalado ao som de sua banda preferida: Calypso. Os filhos jogam "Combat" em seus mini-computadores e todos na casa conversam através dos seus laptops, pois cansaram de gritar e não serem ouvidos. (é o que declara a dona da casa).
Bom. Volto à cena. O garoto do walkman, que hoje não é mais walkman, não ouve a velha, pois se converteu num completo imbecil, graças à Shakira. Ou ao Leandro e Leornardo (que já morreu). Bem. Que o seja. O muro está lá, invisível, em acordes dissonantes, ninguém a ouve. De repente o jovem desiste e aparece uma mulher, salto alto, cabelo crespo num rabo, tailleur. A velha acena com sua bengala, aponta o endereço em suas mãos, não sabe onde está, precisa de ajuda urgente, tem hora marcada no dentista, ou geriatra. A mulher passa, não a vê, a velha desequilibra e cai, nem assim a mulher a enxerga. Uma senhora tombou ao seu lado como um saco de batatas e ninguém viu. A velha, D. Antonieta está sangrando. Os transeuntes passam, de um lado para o outro e nada. Ela não existe. De repente Glória, do outro lado, sem conseguir atravessar a rua, com o sinal que não fecha, e um movimento assombroso de carros, vê tudo, sabe tudo e não pode fazer nada. Nesse exato momento, antes do sinal fechar, ela olha pro lado, e na outra esquina, vê um outro pobre ser aflito e atento à cena. Ele a olha. No seu olhar está a mesma aflição, revolta e impotência. Também assistiu a tudo, e na imaginação está correndo. É o único ser do planeta, além de Glória, sem os fones de ouvido. Não, isso não é uma história de amor, de filme de sessão da tarde, nos moldes de "Love Story". É pior. Esse encontro, esses dois minutos, porque a cena toda não durou mais do que isso, já foi pra Glória o momento sublime. Uma daquelas experiências que a gente não esquece e que anseia por toda uma vida. O desejo de não sentir-se implacavelmente só. Ali, se realizava o encontro com certo tipo de interlocutor. E juntos, resgatam a velha.
Glória a leva pra casa e lá faz o curativo na pequenina senhora, como se tivesse feito isso por toda a vida. Ao passar pelo corredor, espia os porta-retratos. E ao entrar no banheiro, no segundo andar da casa, abre o armário e vê vários vidros vazios de remédios e perfumes. Volta pra sala. Está quase tirando o livro da bolsa, obsessiva por outro encontro daquele. Quer repetir a façanha.
Mas, ali entre Dona Antonieta - do alto de seus oitenta anos e não sangrando mais - e de Dona Lurdes, sua irmã de oitenta e três, que a oferece bolo e café, Glória de repente adquire uma calma. Edson, o homem do resgate, também parece calmo. Pois que no tumulto da multidão, os dois tiveram um momento. O momento sublime, em que duas pessoas vêem, o que ninguém vê.

domingo, 8 de março de 2009

UM CONTO DE GLÓRIA

O FIM



A mãe a ensina como escovar os dentes. Francisca está em cima de um tamborete, cheia de espuma na boca. A mãe passa a escova de cá pra lá, daqui pra lá, com delicadeza. Aproveitando um intervalo, a menina faz a pergunta:



"Mãe, todo dia tem que escovar os dentes?"

"Sim, minha filha.Todo dia"

pausa.

"Todo dia tem que tomar banho?"

"Sim, todo dia. Agora cospe. Cospe direito, não no espelho né, Francisca?"

"Não sei cuspir."

"Cospe com força, vai! Meu Deus, nunca vi uma pessoa não saber cuspir, até seu irmão já sabe!"

"Tá certo?"

"Melhorou, vai de novo, mas é pra acertar o ralo!"

"Mãe, todo dia tem que cuspir?"

"Todo dia, ou você quer engolir pasta de dente?"

"E todo dia tem que ir pra escola?"

"Sim, claro."

"E dormir, mãe? Todos os dias da minha vida eu vou ter que dormir?"

"Vai."

"Comer?"

"Também."

"Fazer xixi?"

"Todo dia, Francisca. Agora enxuga a boca e vai fazer o dever de casa, que seu pai já está chegando."

"E o papai? Ele tem que fazer tudo isso, todos os dias, também?"

"Claro que tem. Todos nós, eu, seu irmão, a Maria...

silêncio grave

"Mãe...."

"O que é?"

Francisca enche o pulmão de ar, levanta os olhos num impulso de coragem e faz a pergunta de uma vez, sem pensar.

"E tem que morrer?"

silêncio

"Tem, minha filha. Tem que morrer"

A menina desce do tamborete e nem enxuga a boca de tão impressionada. Seus olhos são duas jaboticabas, que rolam perdidas, no gramado de um Maracanã enlutado. Fica olhando pra mãe num pavor inacessível. A mãe está andando de um lado pro outro da casa, ocupada em seus afazeres domésticos, a menina está com o coração aos arranques, fica andando atrás dela, tão absorta quanto perplexa.

"Mãe..."

"Já está tarde, Francisca, vai dormir."

"Você não acha impressionante isso?"

"Não, não acho. É a vida. Todo mundo morre."

"Você acha normal, eu, você, papai e Lucas, morrermos?"

"Ué, todo mundo morre, por que não a gente?"

"Mas você não fica chocada com isso?"

"Não."

"Não tem jeito, mãe? Não tem uma maneira de... E se eu rezar muito, todo dia, sem faltar?"

"Não vai adiantar nada."

"Meu Deus, como pode isso? Deve existir um jeito, algum sacrifício que."

"Nenhum."

"E você fala isso, assim? Você acha natural que?"

"Menina, agora chega!"



Durante três meses, ininterruptamente, Francisca só falou disso, na escola, no ônibus, no prédio, na rua, em todos os cantos, ela perguntava muito afobada pra alguém: "Você não fica muito impressionado que um dia vai morrer?" A resposta era sempre igual: "Não."

Ou as pessoas estavam fingindo ou eram loucas. Como achar tão natural uma coisa assim? Inapelável...?

Em todos os momentos de sua vida até a velhice, Francisca evitou o fim.

Escrevendo, falando, tendo insônias e sendo sempre a última das visitas. Resolveu em certa altura, não namorar mais, pra não viver também essa morte, tão dolorosa pra ela. Não lia os livros até o final, deixava sempre as cinco ou seis últimas páginas para um dia desesperado. Até hoje não sabe como terminou Madame Bovary ou qual foram as últimas palavras do Príncipe Miskin em "O Idiota", ou o que Ana Karerina fez ao chegar na estação. Quando ia chegando nas últimas páginas, dizia para si mesma "Outro dia, continuo." E assim se seguiram os dias, os anos e essas páginas continuaram intocadas. Saía do cinema um pouquinho antes da cena derradeira, porque nada mais triste, mais enfadonho, do que o final de uma sessão de cinema num domingo! Começou a frequentar o cinema às segundas-feiras, mas não adiantou... Namorando então, era pior, o melhor momento do encontro, era aquele!! O dia todo, desde o café na cama, almoço no parque, sesta, crepúsculo de mãos dadas, banho de chuva na varanda, era pra culminar ali. Chegaram ao Cine Odeon. Juntos, mãos dadas, olhos nos olhos, depois de escolherem o filme no jornal, com um olhar cúmplice e dividirem um café, era chegada a hora de entrar na sala escura e embarcarem juntos, lado-a-lado no desconhecido. Depois de alguns beijos e sussurros emocionados, o filme termina. Se olham ainda amistosos. Saem da sala, já nascendo um pequeno rancor e ao procurar o carro, na próxima esquina, o pânico irrompe. E agora? Uma pizza? Um choppinho? O que fazer? Já tinham namorado o dia inteiro e o ápice daquela felicidade tinha sido a história vivida por James Stewart e Kim Novak. E o que resta depois de Kim Novak caindo da torre?

Sentia aquele fastio pesar-lhe a alma e pensava: "Deve ser assim, morrer." Nem olhava o rosto do namorado. Sentia, pela sua respiração o mesmo apelo: "Me salvem disso!"

Ela, o filme, a pipoca e todo o crepúsculo de mãos dadas, tinham abarrotado o estômago do rapaz, a única coisa que lhe restava fazer, era sumir. E assim começava, com a voz mais doce:

"Murilo, eu também gosto muito de você e é justamente por isso, por gostarmos muito ainda um do outro, que é melhor, mais digno que terminemos tudo agora. Assim a decadência do sentimento não nos separará de vez. É bonito assim; terminar, amando, desejando. Tendo sonhos eróticos com o ex. Continuaremos sendo amigos, ok?"

Os homens ficavam sempre um pouco decepcionados, mas aceitavam, pois que o homem não foi feito para grandes reações. Às vezes, um ficava mais choroso que o outro, ou, no pior dos casos, batiam a porta, num doloroso despeito. Depois de algum tempo, telefonavam, achando que aquilo afinal, não era sério. Francisca mantinha-se firme em sua decisão, mesmo febril de amor.

Os anos passaram. Francisca tornou-se uma senhora bonita, mantinha certa voluptuosidade nas formas, porém adquiriu uma dureza no olhar. Não ia mais ao cinema e nem fazia as coisas de que mais gostava, como sentar-se numa cafeteria e olhar as pessoas, existirem. Parou de escrever, pois o término de um livro lhe era por demais doloroso. Passava meses como uma morta, sem comer, sem sair de casa. Até que num santo dia qualquer, lhe soprassem no ouvido, o clamor de uma nova idéia pra colocar-se novamente de pé. Parou de ver os amigos, pois esses, casavam, se mudavam e ela acabava sempre de novo sozinha e exposta aos horrores da despedida.

Até que um dia Francisca morreu. E evitou o quanto pode o céu e o inferno. Ao encontrar Deus fazendo a barba, implorou o purgatório, mas Deus, não entendia, pois ela tinha sido uma boa menina, até demais, nada havendo de reprovável em sua conduta. Ela chorava, arranhava o rosto, exigia o purgatório e já começava a xingá-Lo, quando Vosso Misericórdioso, tão comovido, colocou a mão em sua cabeça e disse:

"Pode ir, minha filha. Eu também passei por lá, uns tempos..."

"É como o Sanatorinho em Campos do Jordão? Tem aquela sinfonia de tosses?

"Sim, pode crer que tem."

Feliz, Francisca amanheceu em uma cama estreita que ficava de frente pra uma vista branca. O Purgatório era todo branco. Sem princípio, nem fim. Ela ouvia as tosses e os gargarejos e não via os rostos de ninguém. Nem o dela. Ninguém conversava, não havia assunto ali, pois que todo assunto termina. Tinha sonhos brancos, e não sorria, nem chorava mais. Ali, parecia um pouco com a Terra, depois de surgirem os ansiolíticos. O purgatório lhe era tão familiar, que nem se queixava. E dali não quis nunca mais sair, nem quando Deus lhe chamou para juntar-se a sua família que já havia subido. Deus entendeu, pois que também não gostava de despedidas.

FIM?

domingo, 1 de março de 2009

O Rio de Janeiro da véspera

Glória está em débito com essas páginas, D. Antonieta vai ter que esperar. Preciso falar sobre ela, essa velha está entalada no gogó e não sai! Já adianto que quase morreu em meus braços. Preciso começar. Acendo um cigarro, tomo um café ou fico espantada? Sempre prevalecendo a última opção.
D. ANTONIETA: A ELEGANTE SENHORA QUE CAI.
De qualquer forma, Glória está muito entretida no livro de Nelson Rodrigues: "O Óbvio Ululante" e não consegue largar o livro. Beija o livro, chora de emoção ao terminar uma crônica, se masturba, fica relendo a mesma frase e varia a inflexão uma dezena de vezes e ontem se ajoelhou em agradecimento a Nossa Senhora de Fátima, mamãe Oxum, Papai Oxóssi, Crihsna e Ganesha, por ter colocado o livro ao alcance do olhar. Esse livro é conhecido pra Glória, já o leu e releu. Mas essa releitura está sendo transformadora e se não mata, ao menos agasalha a saudade de um Rio de paralelepípedos, segredos nas esquinas, preguiça da menina na tarde de sábado. Olha o pai, esse ser inatingível, bota o elefante em cima do barril de chopp e os vizinhos passam distraídos, compridos e que davam sempre três batidinhas na cabeça dela, como se pra conferir a habitação da locatária, a miúda, cabeça e olhos tão grandes e nenhuma palavra. Careca. Glória foi uma criança careca. Maresia alta.
Glória está embriagada, as duas mãos postas, como uma ex-coroinha regenerada.
"A grande dor não se assoa." Glória anda com o livro pra cima e pra baixo como se ele a defendesse de assaltos, olho gordo, possíveis crimes, temidas paixões, anseios inesperados e qualquer espécie de fome. Toma banho com o livro em cima de um banquinho, de frente pra ela, e esfrega os cabelos, sem tirar os olhos de sua capa amarela.
"Obrigada Nelson, obrigada Otto Lara", é o que Glória não se cansa de repetir.

"Saudades do Rio, do cheiro de maresia, do Bebê Lanches, da livraria da Travessa do Centro, da pizza de catupiry da Guanabara, dos patins que animavam a orla, daquela ilha, ali, bem no fundo, esquadrilha da fumaça e biscoito O Globo. Mate Leão. Saudades das casas dos outros."
Suspira Glória ao retornar a fuça de novo pra dentro do livro e sem olhar a bruma que cai por cima de uma São Paulo vertiginosa.
Aqui, estou no vigésimo andar, e ainda assim, sinto a areia do Leblon nos olhos.
Ela precisa retornar à vida e contar de Dona Antonieta.
D. Antonieta e D. Lurdes, suas vizinhas octogenárias, irmãs solitárias.