De guarda-chuva na mão, muita acidez no estômago, o olhar num mormaço, um resto de fôlego que ainda não a abandonara em definitivo e a velha fadiga da convalescência e Glória saltou do elevador num pulo quando viu a luz do dia. A rua! Fazia um mês ou mais que não saía de casa, a não ser para ir ao Pronto-Socorro e mesmo assim, só à noitinha.
Agora Glória via pela primeira vez a luz do dia. E olhava e olhava abismada.
Então, eis o mundo.
E tentou respirar profundamente e num fôlego só. Respirar tudo o que existia.
Quase num receio, ela colocou o pé pra fora do elevador e desceu as escadas que davam para o corredor do prédio. Abriu o guarda-chuva. Não havia óculos escuros ou chapéu que a protegesse, apenas um capuz ainda em repouso. Glória queria enfrentar assim seu primeiro dia depois de tanto tempo fora - ou melhor dizendo, dentro - queria enfrentar assim: De frente. Os primeiros passos titubeantes foram substituídos logo por uma pisada enérgica e funda e lá se ia Glória para que todos soubessem: ela renascia. Todos viam e ouviam. De tosse em tosse, de fungada em fungada, ela ia passando pelos distantes blocos do prédio. Ouviu ou quis ouvir nesse instante uma ária de Mozart. Não. Algo mais impactante: Beethoven. Os deuses ofereciam à ela, a Quinta Sinfonia ou uma pequena serenata, tão modesta em sua essência, mas preenchida pela alegria dos trovadores. E para engrandecer sua passagem, um vento quente quase desarmou seu penteado: um coque feito às pressas e preso com um nó do próprio cabelo. O vento desprendeu os fios e Glória sentiu-se presa fácil da natureza que reclamava sua reação. Os porteiros e faxineiros do prédio a olharam assustados, depois sorriram um pouco constragidos pela sua palidez e magreza.
Ela não quis perceber esse esmorecimento geral e seguiu. Tinha que juntar todas as forças que possuía agora para enfrentar ele: o mundo aberto à sua passagem. O Impávido Colosso. A porta elétrica abriu-se. Ela respirou, puxou com alguma dificuldade o ar miúdo e virou a esquina.
Glória seguia.
E seguia.
E não vagava. Ela caminhava num passo firme apesar de quadriculado. Fazia algum tempo que as pessoas, coisas, objetos e a vista de sua janela - a árvore fatal - estavam para Glória, quadriculados e remotos, assim como uma imagem fugídia no computador. A ilha de edição dela não estava boa. Precisava de reparos. Aliviar a bagagem técnica. Tossiu forte e colocou a mão na nuca numa espécie de coceira nova à luz que entrava.
Espirrando, coração na mão, o pulmão uma bagunça, ou o contrário, pulmão na mão e o coração uma bagunça e Glória seguia.
É como num filme o andar de Glória.
A música de fundo agora era: Beirute da banda Elephant Gun. Glória caminha sem fôlego pela Afonso Bovero. É só fechar os olhos e ela estará lá. Mochila nas costas. Pneumonia, Miguilim no coração. Gregor Samsa lhe dá uma pequena piscadela, é um sinal de atenção, ela sabe-o bem, já que ele mora nos quartos dos fundos da casa. No meio dos entulhos, nos escombros de sua bicicleta. Rouca, ela pressente a voz temerária: "Se não se apressar a chuva pode aumentar e você não conseguirá chegar à farmácia." O que seria de Glória sem essas vozes esquálidas? Seus olheiros de plantão? Velhos amigos, tão conhecidos. Toda a sua família. Glória sorri agora para o jornaleiro, o velho Gepeto, Miguilim vai brincando com Dito logo à frente, Raskolnikov assovia, encostado ao muro, ele está ali há algum tempo, esperando Sonia chegar com seus passos curtos, um resto de sono, mochila nas costas.
Glória tosse.
Ela continua subindo a ladeira sem saber muito bem pra quê.
Passa pelo Hospital São Camilo. Não entra, resiste, mas uma leve melancolia se crava nela logo na entrada do Pronto-Socorro, seu velho conhecido.
Glória segue o caminho, palpitante. Entre remendos e moinhos, muitos castelos derrubados, ela não conhece ninguém nas ruas, ninguém a vê. Ninguém ouve seus passos. Nem no ponto de ônibus. O mundo a esqueceu, só o jornaleiro teve a bondade de lhe ceder um sorriso e um discreto aceno de mão. Mas ele era o Gepeto e não um jornaleiro qualquer. Talvez tivesse sido apenas uma gentileza e não um reconhecimento.
Nem eu, ela reconhece.
Pisa em pedrinhas, agora cumprimenta o segurança do hospital por força do hábito, ele a ignora. Gregor se arrasta na sua frente, Danton passa e dá uma batidinha em seus ombros curvados ou teria sido Sasportas? Úrsula e os Buendía acenam um leve bom-dia pra Glória de longe. Lóri, Macabéia e O Bebê de Tarlatana Rosa, também fazem um aceno com a cabeça. Glória está tão sedenta, há tanto tempo não sai de casa, não vê ninguém... Nesse tempo todo só se pousaram sobre ela, os olhos amarelos e destemidos de Jeremias. É como se agora visse o mundo pela primeira vez. Glória está na bolsa canguru da mãe, esmagada contra seus peitos e assiste a correria do dia: a folha que cai de uma árvore tão fina e comprida que toca o teto do infinito, a folha cai em câmera lenta para os seus olhos tão atentos, cai em cima do bueiro cheio, pronto pra entupir na próxima enchente, os olhos da menina Glória não exclui nada, tudo é tão bonito quanto esse cano enferrujado d'agua, o mar, o cano, o esgoto, o mundo me come viva e eu na bolsa canguru da mãe, esmagada, dentro de uma compenetração grave, quero ver tudo, não perder nada, a vida está gritando com seu vapor de locomotiva. Ouço um apito, todos à bordo, o trem vai partir. Cada um se assoa com um lenço de cada cor e se encaminha para um vagão. Eu vejo, espera por mim, um instante, estou chegando, é tanta coisa pra ver: a praça, os galhos secos, uma árvore acaba de morrer... E eu estou começando a viver. Desculpa árvore, mas eu estou no comecinho de tudo, agora é a minha vez de gritar e exigir, me recolher ou repartir, montar, estuprar, matar e incendiar a boca faminta que se abre pra mim e me engole sem susto. Posso colocar a cabeça pra fora da janela desse corpo que é um Cristo Redentor inteirinho e espiar a vista lá de cima, cada janelinha daquela ali embaixo é uma possibilidade de máscara. Posso olhar sem perigo para o abismo que se abre e expor o rosto ao sol, vem árvore, aproveita esse restinho de vida e se enlaça comigo. Morte e Vida Severina, árvore. Somos eu e você a criança e o selvagem do mundo. Cegos e indiferentes, pois é agora que o mundo se rompe e começa. O deserto é o espelho do mar. A árvore abraça a menina, essa árvore antiga, ela é toda a sua infância e a minha também. A árvore sussurra em seus ouvidos novos alguma coisa, eu não ouço, de seu hálito brota uma flor, e esse é o vapor que vejo em toda parte. São minúsculas as moléculas das coisas vivas e elas serpenteam como diabas na sua frente.
- Mãe, sempre é carnaval?
Dói tanto essa comemoração, tantas esquinas a desvendar, os freios, as contramãos, tantos espaços vazios, as multidões sem rosto, a mistura dos hálitos, o toque sempre
ameaçador da pele que se aproxima, seus olhares, as ondas do mar que não se atropelam nunca, um mar tão violento e organizado. A natureza é sempre tão organizada?
- Mãe, todo dia o mar vai ficar parado aí?
Um vento sopra a areia da praia e alguns grãos visitam meus olhos tão abertos.
O que são essas fagulhinhas que atravessam a vista e mudam a paisagem, desfigurando a nitidez tão intimadora que há nelas?
- Mãe, todo dia tem que escovar os dentes?
A mãe agora sorria levemente e a menina não entendia, encerrada que estava em sua
obsessão de saber as coisas principais que se amontoariam em seus dias.
Equilibrando-se em cima do tamborete e de frente ao espelho, passava de lá pra cá, daqui pra lá, a escova de cerdas macias que a mãe empunhava dentro de sua boca.
Lembrava de seu dia: um cachorro grande abocanhara um menor. O dono riu, achou muito engraçado isso, ele só se preocupava com a pontuação do jogo de vôlei. Estava perdendo, mas seu cachorro levantava a moral por ele.
O cachorro grande abanou o rabo de alegria por sua superioridade inquestionável.
Vou ser eu um cachorro grande ou vou crescer, crescer e crescer e virar um pequinês?
- Mãe, tem que dormir todo dia?
Olhos compridos e que não abarcam nem o primeiro eixo da imensidão do mundo. Quero tudo isso pra mim... Quero o cachorro, o gato, a coruja, o mato, o mar e os coqueiros, quero aquele abraço de pai no filho cego, o bueiro entupido, quero a ressaca do mar e o pequeno assovio do homem que limpa as ruas todas as madrugadas em frente à minha casa, quero o berro das vacas, quero o caminhão de gás, quero o grito das meninas histéricas, quero esse histerismo todo diante de baratas, quero as próprias baratas, quero beber, fumar, me estragar quando crescer. E ser um pouco de tudo. Estéril e virgem, magra e gorda, sardenta e ocupada, melancolica e atrevida, um touro e um bezerro.
- Mãe, e tem que morrer?
A mãe olhou grave para os olhos da filha que esperava receosa. Demorou um pouco, mas disse firme: "Tem. Tem sim, minha filha. Tem que morrer."
Agora lhe deu uma vontade tão grande de abraçar a mãe, de lhe dizer coisas, de enfrentá-la. Mas não teve coragem de chegar nem perto de seu rosto. Preferiu se encerrar no quarto e olhar a janela. Queria tanto abraçar à todos. Pena não ter braços compridos o suficiente, queria abraçar o mundo, homens e mulheres, crianças e velhos, a banca de jornal estaria agora inteirinha em seus braços. O Supermercado Pão e Vento, as manchetes de jornais, o ambulatório, a loja de Material de Construção. Ah... se tivesse costas largas, braços compridos e elásticos... Abraçaria a farmácia inteira. Seria uma epopéia esse abraço, duraria muitos anos e muitos milênios, atravessaria gerações e ela continuaria ali, após guerras e acordos de paz, após naufrágios e terremotos, presa ao mundo, enlaçada, coberta de neve e sol.
Aquele ali seria Justino? Glória pensou assustada ao se ver de novo mulher e tossindo
e mirar seu vulto numa vitrine da loja de chapéus e cigarros, que agora passava em frente.
Alaíde atravessa a rua sem olhar pros carros, Glória dá um salto. Zulmira ri de sua tosse e se ilumina toda por serem tão iguais. Capitu, o príncipe Miskin, Nastacha Filipóvna, Aglaia, Ivan Karamazóv passam rapidamente por ela. Bovary enflama o peito e corre. Glória cumprimenta a todos. E continua seu trajeto até a farmácia.
Glória vai. Está quase chegando. Na cabeça, a lista abismal:
1- Recalm (contra excitações nervosas)
2- Hipérico (para as depressões leves à moderadas)
3- Algodão (para retirar a maquiagem)
4- Pílula Yas (para evitar bebês)
5- Allegra (para alergia e tosse)
6- Omeprazol (para gastrite)
7- Pastilhas Valda (para escrever com um hálito bom)
Glória queria tanto esticar os braços agora, está feliz. Encontrou todos os remédios. Chove. Ela tem um guarda-chuva cinematográfico. De bolinhas vermelhas em cima de um plástico transparente. É bom estar assim embaixo da chuva e assistindo a chuva. Protegida, mas não escondida. Assim que deve ser.
A chuva aumenta. Ela cumprimenta Regina, Edna e Eloísa ao pedir as xerox na papelaria, as três irmãs japonesas são as donas e falam todas juntas, Glória não entende nada. Então elas brigam em chinês, coreano e japonês e depois voltam ao normal como se nada tivesse acontecido.
Glória compra ímãs; dois gatos amarelos. Vai pregar assim a foto de Jeremias dentro de uma bota em seu mural.
Glória sai. E vai.
E vai. Chuva, chuva fininha, um circo na cabeça, um quarto e Gregor Samsa está preso lá dentro, não sai. Ele está no meio de entulhos e sobe agora em cima de um grande dicionário preto, esconde-se lá dentro nas ondas das palavras que começam com C - castigo, canto, canal, crisma, calda, caminho, cano, crisântemos. Migulim continua a correr na sua frente de mãos dadas a Dito e Chica, Tomezinho ficou com a mãe lá trás e agora o quarto da cabeça aumenta e aumenta e explode, o carro buzina, Glória não vê nada, só a chuva que cai e cai na sombrinha transparente tão bucólica. Os olhos esbugalhados no vidro do carro. Glória num segundo pula pra trás e o carro passa veloz com um casal recém-saído do banho e com cara da Johnson e Johnson, tão corados.
O homem buzina e grita pela janela e a chama de puta. Filha da puta.
Sim, ela é. Ele é tão sábio e limpo, tão correto e cheiroso, tão inacreditavelmente perfeito na sua Cherokee cinza e com sua namorada loira de escova progressiva e adestradora de cães que até quando xinga é um consolo. Ele acertou em cheio.
Glória sabe que ser filha de uma puta é muito comum e doloroso, mas acontece e isso não é culpa dela. Não, dono da Cherokee, isso você não pode falar porque isso não é culpa minha!
As botas sempre em frente, capuz grosso, a mochila e a tosse. As pessoas não existem, elas não existem mais.
Está atravessando a rua quando percebe uma velhinha tentando pegar alguma coisa do chão, parecia tão custoso e difícil que Glória parou e por um segundo guardou a imagem daquela bunda azul que engolia a paisagem chamando toda a sua atenção. Ninguém via a bunda. Tantos passavam e passavem sem qualquer alteração de ritmo. A bunda azul continuava ali, empinada pro ar, uma cabeça inexistente sucumbia pra baixo, pra dentro de si-mesma e uma sombrinha esquálida, mal se equilibrava em suas mãos trêmulas. A bunda azul com seus braços que perscrutavam o ar e não alcançavam o objeto perdido, precisava alcançar algo.
GLÓRIA - A senhora quer uma ajuda?
A VELHA(imediatamente) - Quero sim. Segura esse saco pra mim?
Ela tinha várias sacolas nas mãos, além do guarda-chuva e a dificuldade de andar.
O nome dela? Dona Antonieta.
domingo, 15 de fevereiro de 2009
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1 comentário:
Não sei se é porque eu fiquei o mês inteiro de fevereiro também ilhado em casa porque estava doente (e ainda parei de fumar, o que deixa a gente transtornado), mas eu me senti igual a Glória ao sair de casa, até inauguraram uma loja nova na Afonso Bovero.
Gosto muito da personagem, escreve um roteiro...
Estou imaginando agora a primeira cena, Glória andando pela Avenida Pompéia, passando pelo São Camillo e levando um banho de um ônibus que parou naquele ponto em frente a igreja católica (a pompéia é um bairro tão cinematográfico..)já lanço a campanha:
"Pra que Amelie, se temos a Glória?"
escreve mais, escreve mais...
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