sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A ÁRVORE DO TERRENO DA FRENTE

O ano virou e Glória continua fazendo inalação.
De novo ela se esconde embaixo da "tenda" improvisada de lençois, corta o rabinho do coador de café, enche a xícara de água quente e ali mergulha com a alma entregue à Deusa da Purificação. Deus me livre! Sai desse corpo que não te pertence, mulher!
Entra ano, sai ano e Glória está na sala respirando água quente. Parece até algum tipo de ritual bizarro, uma espécie de seita.
Infecção pulmonar foi o diagnóstico dessa vez. Glória está se superando.
Além de velhinhos carentes e abandonados pela família o Pronto-Socorro se orgulha em ter entre seus pacientes usuais: Glória. Aquela mulher eternamente com a senha nas mãos e olhinhos marejados, a saia amassada feito embrulho de presente, papel salofane, é ela ali, sentada na recepção. Até que não é tão desagradável a recepção desse hospital, pensa Glória enquanto assiste um desenho animado na televisão muito mais de vinte e nove polegadas e tela widescrean. É assim que se diz? Enfim, é uma tv de plasma. Uma LCD, atenção não confundir com LSD como Glória já fez apresentando um evento importantíssimo e caretíssimo onde era Mestre de Cerimônias. Sua chefe queria lhe matar quando repetiu pela quarta vez:

GLÓRIA (de terninho cinza e sóbrio) - E no final do evento, sortearemos uma TV vinte e nove polegadas de LSD.

Todos os funcionários da empresa riram constrangidos. A sua chefe, muito correta e que adorava palavras como: conformidade, cauteloso, prudência, modos, sustentabilidade, gradativo, implementação, entre outras palavras onde nenhum improviso seria cabível, morria por dentro.
A mulher chegou perto do palco pela última vez e sussurrou pra Glória que teve que se abaixar para ouví-la.

CHEFE IRRITADA - Não diz mais TV de LSD, não, por favor. Diz TV de plasma.

Depois daquele evento, Glória nunca mais foi contratada como Mestre de Cerimônias.
Voltando ao Hospital:
O enfermeiro que a recebeu primeiro pra fazer sua ficha e medir sua pressão, deve sonhar em se tornar médico cardiologista e por isso mesmo, era metido a sabichão:

ENFERMEIRO METIDO A SABICHÃO - Você tem algum problema de saúde?
GLÓRIA (prontamente) - Não. Nenhum.
ENFERMEIRO - Faz uso contínuo de algum tipo de medicamento?
GLÓRIA - Sim. Rivotril.
ENFERMEIRO (numa tacada só) - E você toma Rivotril pra que? Depressão? Insônia?
GLÓRIA (erguendo a coluna e a dignidade) - Insônia.
ENFERMEIRO - Então você tem problema de saúde, minha filha.
Silêncio doloroso. Pra Glória. Gol pro Enfermeiro. Ela nunca tinha pensado por esse prisma, queria falar: "Mas são só três gotas, moço. Às vezes, na pior das hipóteses, quatro. E três gotas não são assim algo tão grave, não é? Vamos ser razoáveis. Tem gente que bebe, que fuma, que é viciada em sexo, em mentiras, em roupas, em roubar, matar, enganar, estuprar, em fingir afeições, pessoas grudentas, possessivas, intolerantes, inconsequentes, com cinco carros na garagem, eu só tomo três gotinhas de Rivotril. Isso é algum crime? É tão grave assim?" Mas preferiu ficar calada. Ela entendeu, ele era maldoso porque se sentia no lugar errado. Um homem que sonha em se torna neurocirurgião, só pode sentir-se mal tirando a pressão e fazendo perguntinhas idiotas. Ele não coloca a mão na massa, então, prefere humilhar os pacientes. Pôxa, ela já não estava bem. O peito tomado, a garganta seca, dores no corpo, sem ninguém pra lhe fazer companhia, sem eira nem beira e esse troglodita metido a enfermeiro ainda queria tripudiar? Agora ia entrar na sala de recepção num muxôxo.
Assim que entrou, Glória avistou um homem lindo. Além disso, estava brincando todo feliz com o filhinho, jogavam uma bola engraçada, tipo uma bexiga, só que com dedinhos. Ao lado dele, muito provavelmente, ali de cabelos encaracolados meio aloirados devia ser a sua esposa. Ela usava All Star. Glória admirava muito as mulheres com maridos bonitos que usavam All Star. Era a demostração de uma auto-estima elevada. Glória jamais usaria All Star numa situação dessas. Infelizmente. Ficar no hospital, baixinha e com esse homem lindo brincando de bexigas pra lá e pra cá não dá, seria exigir de mais de si-mesma.
Ao entrar na sala do médico, Glória começou:

GlÓRIA - É verdade que na maioria dos hospitais, oitenta por cento dos casos não são verdadeiros, são de pessoas carentes inventando doença?
MÉDICO SUCINTO - Sessenta por cento dos casos.
GLÓRIA - Na maioria são velhos, né?
MÉDICO SUCINTO - Sim. Gente idosa.
GLÓRIA - O engraçado é que eu entendo eles... São abandonados pela família, se tornam um estorvo e não tem com quem conversar...
MÉDICO SUCINTO - Eles inventam que perderam a receita e voltam.
GLÓRIA - Por isso que eu não quero ficar velha. Assim, muito velha.
MÉDICO SUCINTO - Nem eu. Existe alguma possibiliade de você ter ido pra algum lugar onde tivesse Dengue?
GLÓRIA - Ai não, eu não estou com Dengue, não é doutor?
MÉDICO - Acho improvável, mas vamos fazer os exames.

Depois de enfiar aquele palito grosso desagradável goela abaixo de Glória, ele prescreveu os exames. Glória passou a tarde no hospital, fez amizade com duas meninas que sofriam de enxaqueca e ainda com a mãe de uma delas. Ficou com inveja da menina que estava acompanhada da mãe. Quis roubar a mãe da menina. Gostou dela, parecia uma boa mãe. Companheira, divertida e forte. E aparentemente não competia com a filha. Glória ficou esperando alguma deixa pra ver se isso acontecia, mas achou realmente que não. Ela estava feliz no papel de mãe e não era a amiguinha gente boa que saía pra tomar chopp com a filha e paquerar os amigos dela. Odeio essas meninas que ficam falando: "Minha mãe é a minha melhor amiga." Que coisa chata! Mãe é mãe. Amigo é amigo.
Glória queria muito ter tido uma mãe com cara de mãe e não de irmã mais nova.
Pegou o telefone das mulheres do hospital, mãe, filha e a professora de crianças especiais que também sofria de enxaqueca. Num flash imaginou a Mãe com M maíusculo, fazendo um grande bolo de carne com purê de batatas e recebendo Glória para um jantar em família. Todos estavam felizes e sem enxaquecas e Glória derrubava o vinho na mesa quando ia se servir de um pouco mais de purê. Ela não estava acostumada com tanta felicidade, então precisava de uma toalha de renda manchada de vinho e umas caras descontentes em volta pra atestar que ela ainda era ela mesma e não um extra-terrestre.
Nesse momento e num susto, Glória tirou a cara do inalador e olhou pra frente, o olho fixo na parede vazia e descascada da sala e sentiu que algo se movimentava do lado de fora. Foi então que virou-se. E ali estava ela.
Sempre depois de fazer inalação ela descobria alguma coisa óbvia e ignorada.
Viu a árvore do terreno vizinho. Estava escuro e a árvore balançava de forma tão doce seus galinhos finos. Ia de lá pra cá. Daqui pra lá... Glória pela primeira vez sentiu uma paz imensa vindo da paisagem. A paisagem já não era algo estranho e hostil: era a grande árvore fina e amena. Ela amansava a arquitetura tão rígida dos prédios vizinhos. A árvore era um pouco aquele pai lindo que brincava de bixiga com o filho e amenizava assim, o clima de horror que sempre exala dentro de um hospital. Mesmo equipado de telas planas e desenhos animados, desanimadores.
Glória também ouviu de uma enfermeira bem novinha, enquanto lhe dava a injeção, que a sua veia era difícil. Não gostou disso. Nunca ninguém tinha reclamado de sua veia. Pelo contrário, ela parecia bem simpática. Enfermeiras muito novinhas não sabem de nada. Deve ser estranho SER um FETICHE. Porque enfermeira, aeromoça e professora de ballet soam sempre como um fetiche.
A árvore continua seu doce balanço à caminho do mar. Glória observa e pára de pensar em coisas como: injeção e abandono. Por alguns segundos Glória deixa ser Glória para ser... mar. Essa árvore era o próprio Oceano Atlântico inteirinho. Assim como as ondas que se intercalam de ressaca em ressaca à uma longa calmaria, ela também oscilava dentro de uma existência contínua e desigual. Era o grande ballet da natureza.
E Glória escreveu, orientada pelo pulmão fraco e a árvore forte e tímida.

A ÁRVORE DO TERRENO DA FRENTE

"Essa árvore tem vontade de chorar, mas não pode.
Ela me alivia, paira nela um frescor, a juventude das coisas que queremos abraçar, mas não podemos.
Ela é a minha melhor amiga e eu havia ignorado isso até esse momento.
Sempre quando faço inalação descubro algo desse tipo.
É só olhar pra ela e já me sinto melhor, amparada por seu balanço meditativo. O vento balançando seus galhos, tão à vontade um estão com o outro.
Ela balança de lá pra cá. Parece que vai cair.
Mas não cai.
É obstinada dentro de sua leveza e tem a aparência de uma menina magrela e míope.
Mas de raízes fartas e generosas, uma sensível lealdade com o vento ora amigo, ora algoz.
Esse vento que estimula ao mesmo tempo que desestrutura.
Que violenta ao mesmo tempo em que lhe dá a mão.
Ela é a árvore da permanência, das coisas que ficam mesmo oscilando.
Das coisas eternas que guardamos em nós.
É a árvore que cresce dentro de um terreno abandonado, cheio de gatos e detritos que são atirados diariamente pelos moradores dos prédios vizinhos.
Ela não perde sua leveza. E esse constante balancinho. Ora pra cá, ora pra lá.
É o pêndulo da minha história.
A mágica que me faz existir e acordar todas as manhãs.
Essa árvore, ela não esmorece.
Até eu já joguei lixo em seu terreno.
Até eu já dei aquela velha cuspida de desdém.
Mas ela permanece e nem implora.
A velha amiga e talvez única, que a gente têm.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O coração das trevas

"… a maioria dos marujos leva, por assim dizer, uma vida sedentária. Eles sempre se sentem em casa, pois sua casa sempre os acompanha - o navio; bem como seu país - o mar. Um navio é muito parecido com outro, e o mar é sempre o mesmo. Num ambiente imutável, os litorais estrangeiros, as fisionomias estrangeiras, a variada imensidão da vida - tudo passa imperceptível, velado não por um misterioso sentido, mas por uma ignorância levemente desdenhosa; pois não existe mistério para um homem do mar, a não ser o próprio mar, que é senhor de sua existência e inescrutável como o Destino. Quanto ao resto, nas suas horas de folga, uma caminhada casual, ou uma eventual bebedeira em terra bastam para revelar-lhe o segredo de todo um continente - e geralmente acha que o segredo não vale a pena ser conhecido. As histórias dos homens do mar têm uma simplicidade direta, cujo significado cabe inteiramente na casca de uma noz partida."

Joseph Conrad "O coração das trevas"

[ burburinho - o coração das trevas ]

[ burburinho - o coração das trevas ]

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

CONSTRUIR DESTRUIR CASTELOS

Dia 06 de Janeiro.
Glória ainda está se recuperando do Ano Novo. Depois de arrastar seu vestido novo (longo e rosa) pelas areias molhadas do Arpoador - foi lá onde finalmente aterrizou sua carcaça - que Glória, depois de muito rodar, enfiou o pé salgado e cheio de mazelas do ano que se extinguia, bem em cima de um castelo de areia erguido laboriosamente pelas mãos de uma criança.
Antes de achar os amigos que supostamente a esperavam, cega e perdida, trafegando por entre os escombros da solidão que a rondava já nos primeiros minutos do ano que entrava, Glória corria em busca de uma alma humana que a reconhecesse apesar de tudo, da distância que a separava de seus contenrrâneos e do tempo que se perpetuou em oito longos anos por seu afastamento da terra natal. Alguém que a descobrisse ali dentro, que conseguisse juntar as duas: a menina que se afastava dos amigos e parentes para estudar em outro estado e a mulher que ali havia se desenvolvido. Alguém que erguesse a mão para essa menina, agora mulher e a perdoasse por isso, por haver crescido, por ver nela todo o sofrimento e dor que essa metamorfose implica, por ela ter se transformado em alguma outra coisa que nem ela mesma sabia ainda o que era. Um conhecido qualquer já seria uma benção incomparável a qualquer grande acontecimento de sua vida, até aqui tão precavidamente estruturada. Ela precisava dessa presença afável e amiga. Agora. Precisava ouvir um: "Feliz ano novo" de uma daquelas bocas. Era urgente. Era preciso. Era vida ou morte. E ela morria. Cega dentro da transparência de seu desamparo, ela rodava e rodava por aquelas areias em busca de um olhar minimamente cúmplice. Quando já não enxergava mais nada e nem ninguém, afundou seus inchados pezinhos na construção medieval de uma criança, quanta sorte pra 2009! Assim que pisou, ouviu um grito de mãe: Olha o castelo!! Glória não viu e enterrou os pés com toda a brutalidade de um adulto que chega sozinho em festas de reveillon na praia e anseia urgentemente encontrar alguém para aplacar sua miserável condição de um ser à deriva. Todo um Castelo posto areia abaixo, depois da entrada triunfal de Glória. Uma construção erguida com o suor de um menino que ainda inaugurava os Anos Novos da existência, e que com uma diligência incansável o construía à beira mar. Aquilo foi a morte pra Glória e o pior de tudo foi quando virou a cabeça e reconheceu a mãe do menino. Era uma atriz, filha de uma grande amiga de sua mãe e elas haviam convivido durante toda a infância e não se viam há muito tempo. Tanto tempo para se reecontrarem assim: A construtora de castelos e de meninos e A destruidora de castelos e sem meninos. Ana festejando, ancorada à sua família, à sua sorte. Gloria só, procurando algum amigo, qualquer um que fosse, e destruindo tudo o que via pela frente, ou melhor, o que não via pela frente, principalmente castelos de meninos, na ânsia extrema de uma mão amiga qualquer. Tanto tempo. Tanta distância e um grande abismo entre elas. E o abismo era o menino. O grande construtor de Castelos.
Glória era o terremoto. Os anos passaram e Glória continuava a menina desajeitada e titubeante. Ana cheia de família, sorrindo à passagem de Glória, possuindo ainda aquele jeito meigo, mesmo diante de sua passagem desajeitada e cheia de consequências desastrosas. Ana, muito sutilmente e com certa generosidade, lhe enviou um olhar cúmplice, na rápida virada de cabeça de Glória, que por sua vez, fingiu não reconhecê-la e apenas pediu desculpas meio distraídamente e seguiu em frente ainda mais trôpega e vazia que antes. Agora, com menos castelos.
Era só o que faltava, seu primeiro encontro de Reveillon foi a destruição do Castelo de uma criança, filho de uma amiga de infância! E isso era só o começo. Depois de revirar as areias do Arpoador, Glória encontrou alguns conhecidos, mas que não possuía a menor intimidade, logo havia de continuar procurando e rodando. Viu o mar e pensou em sentar e ficar ali, observando as rodinhas de amigos ao redor e vendo os mais animados ou os mais bêbados que se atiravam ao mar. Mas não, Glória estava obcecada por companhia, ainda mais depois do castelo. Precisava de alguém, precisava de um único abraço ou aperto de mão. Rodava, temendo pisar em outros castelos ou reeencontrar a mãe do menino; Ana. Só depois de muito tempo e quando já estava quase indo embora, a avistou ao longe e correu em seu encontro. Sonia estava deitada numa canga agarrada ao namorado, perto da barriquinha de som. Muito bronzeada e dentro de um vestido branco com um decote imenso onde se vislumbrava o biquine por baixo, Sonia abraçou afetuosamente a amiga e Glória pôde finalmente respirar.
Sonia meio cambaleante, leva Glória e o namorado pra dançar. Glória está animadíssima dançando, nem consegue sair do lugar. Ela não dança, ela contorce o maxilar. A caixa de som está exatamente dentro de seu crânio, próxima ao hemisfério esquerdo, aquele ponto super arrependido de não ter ficado em casa. Elas dançam umas músicas anos 80 e Sonia divide um churrasquinho com o namorado. Glória pede licença e vai dar uma volta. Encontra um amigo de São Paulo. Ali, na roda deles, todos se beijam. "Ah, não. Não estou afim de beijar meus amigos, não." Volta a procurar Sonia e vamos lá dançar e vamos lá deitar na canga e vamos dar uma volta e vamos beber mais cerveja. Glória me olha desesperada, quer porque quer ir embora. Eu não posso fazer nada. Nessa altura do campeonato está tudo parado e conseguir um táxi vai ser talvez mais difícil do que encontrar Sonia. Então ela resiste bravamente, toma umas cervejas, fuma uns cigarros, Sonia mostra uns amigos da época de escola, Glória fica num nervoso temendo não ser reconhecida ou lembrada. Sequer percebida. Alguns se lembram mais dela, outros menos, estão todos animados, bebem e fumam, tomam ácidos, então isso não importa muito, o que importa é festejar. Só pra Glória importa. E sente que por mais que se esforce não consegue entrar na dança. Tenta desenvolver uns papos que não deslancham, a dor de cabeça aumentando e Mia, amiga em comum dela e de Sonia, só quer ir embora às cinco horas da manhã depois de tomarem um banho de mar.
Ai, ai. "Senhor, tenha piedade de nós". Quando começou a rezar baixinho e a se esconder da mãe do menino do castelo - que estava logo ali, agora sem o castelo, mas com o menino desiludido ao seu lado - eis que um gigante se aproxima. Ele está de sunga e todo molhado, Glória olha, não sabe se está tonta ou se ele é bonito. Fica com a segunda opção. Dá uma olhada geral no homem, ele percebe e se aproxima, coloca um chapéu de cowboy na cabeça dela. De repente a puxa e a engole viva. Quando já ia embora foi atacada por um gigante de sunga e ali ficou.
Beijar um gigante ou não beijar um gigante? Beijar um gigante ou não beijar um gigante? Não dá tempo de abrir o I Ching agora Glória, você já foi engolida.
Assim que se viu tragada pelo gigante dos mares, todo molhado e ornado de algas e mouriscos, Yemanjá deu uma golfada de censura e invadiu as areias quase levando Glória consigo. Agora o vestido está todo molhado. Ainda bem que eu estava lá para impedir esse naufrágio. Amparada por duas amigas de infância, Glória com muito custo, conseguiu se desvencilhar do monstro marítimo e correu atrás de Mia que havia desaparecido. "Tanta dificuldade pra encontrar alguém conhecido, depois que encontrei a Sonia não desgruda desse namorado chato e finalmente Mia chega e agora some! O que que deu em mim pra ficar com um homem nu?" Glória vai andando e se culpando até reencontrar a amiga mais na frente.
MIA - Amiga, é melhor irmos embora, você acabou de beijar o gigante da praia!
GLÓRIA - Ai meu Deus, ele é o gigante da praia?
MIA - Não fala nada que ele está vindo, está atrás de você.
GLÓRIA - Ai meu Deus, vamos embora, socorro. Por que você não me impediu?
MIA - Ué, sei lá, é o seu ano novo, e eu lá vou saber se você gosta de gigante ou não?
As duas se distanciam do Gigante.
GLÓRIA - É que eu estava ali, não fazendo nada, olhei pro lado, ele estava todo ali grande e de sunga, sei lá, parecia um...
MIA - Gigante. Olha, ele é até bonitinho, mas deve ser um "cala a boca e beija logo", por isso, vamos embora.
GLÓRIA - Vamos amiga, ai meu Deus lá está vindo ele, de novo!!
O Gigante se aproxima e segura Glória pelo braço, com certa violência.
GIGANTE - E aí?
GLÓRIA - E aí? Beleza? Tchau.
Nesse momento, Glória se desfaz do Gigante com certo esforço, encara Mia e a puxa pelo braço, as duas saem correndo pela beira do mar, Yemanjá que não invente de invadir as areias agora. Uma dor de cabeça impagável atravessava o crânio de Glória e ainda havia um gigante atrás dela. Ela havia reclamado tanto que desejava uma vida mais movimentada, cheia de mistérios e improvisos, mais surpreendente, como num filme do Steven Spilberg e vejam no que deu. Nunca imaginou que a sua vida se transformaria no "Jurassic Park 2". Agora, estavam ela e Mia correndo pelas areias do Arpoador querendo alcançar o calçadão e o Gigante atrás. Ele era aquele tipo: "bonitinho e grudento", só que suas pernas tinham mais de três metros de comprimento e ele corria. Meu Deus, era insuportável, um reveillon com o espírito do "Forrest Gump" e enquanto Glória corria pensava: "Ai meu Deus, será que esse reveillon foi um sinal do que vai ser o meu ano de 2009? Pelo amor de Deus, será um ano cheio de figuras bizarras, no estilo 'O Labirinto do Fauno'?"
Finalmente, já na calçada avistaram um táxi e seguiram rumo às suas casas. O motorista do táxi queria fumar, Glória não deixou, explicou que tinha uma dor de cabeça infernal e ele foi falando daqui até o Cosme Velho sobre todos os assuntos mais chatos do mundo. O homem era um mala e engatou numa terceira que não tinha fim. A cabeça de Glória explodia!
Os assuntos dele: Porque ele parou de fumar e voltou, que alguns passageiros não se importavam dele fumar, que afinal era ano novo, que ele estava trabalhando em plena virada, que Copacabana estava insuportável de cheio e ele nem viu os fogos, que os motoristas de táxi trabalhavam fora da bandeirada nessa época e que ele não concordava com isso, mas afinal era reveillon e ele não estava com a família, então no fim era justo, etc.
Havia ali todo o tipo de ladainha do mais típico malandro carioca taxista folgado.
O cara era um estereotipado. E Glória pegou justamente esse motorista em sua virada de ano. "Ai Senhor, ano que vem vai ser uma merda! Por que não fiquei em casa como no ano passado?"
Bêbada, cheia de areia, sal e um gosto horrível de gigante na boca (ele deve ter passado uma manteiga de cacau vagabunda, sei lá, era um gosto estranho o desse homem, se é que ele era um homem e não um submarino).
Glória entrou em casa, tirou as sandálias, seus pés estavam em carne viva de correr do Gigante, além de uma dor imensa nas costas, pois aquilo não era uma bolsa, era uma mala que havia levado para a festa, com todas as mandigas e santos e sapatos altos e havaianas que haviam no mundo. Finalmente, entrou no banho.
Vomitar ou não vomitar? Eis a questão. Ela só não abre o I Ching para obter essa resposta porque não tem forças suficientes pra isso. No banho, pensa que as aventuras da vida não valem um estômago embrulhado e uma dor de cabeça dessas! Ela está na dúvida se vai ao hospital tomar uma injeção pra enxaqueca. Que fígado podre, hein, Glória?
Ela deita-se na cama e toma mais um paracetamol. Será que seu ano vai ser assim? Paracetamol? Do que adiantaram tantas mandigas, uvas, rezas, romãs, imagens de Santo, pular ondinhas, folha de louro na carteira, gritos de "uuool!!" pros fogos e abraços e mais abraços nos amigos, enfim toda a sorte de superstições possíveis, até beijo na boca em gigante, se no final ela está se revirando na cama, um trapo de gente e sem conseguir dormir? Será que foi por causa do castelo? Revira e revira e não dorme. Agora, está mastigada em arrependimentos e culpas e essa é a pior parte de Glória.Pensou no menino e seu castelo em ruínas e o que era Glória senão uma construtora de castelos que se auto destruíam? Na fagulha da existência rememorava o que ia vivendo e sentindo através das palavras e dos olhos e o instrumento primordial nessa intermediação eram as mãos. As mesmas que construíam os castelos. Glória investigava e recolhia as palavras que lhes chegavam pelos olhos, as encontrava e escolhia com o mesmo cuidado com que o menino construía seu castelo. O que era Glória senão a extensão desse menino? Desse castelo que se desmanchava nas areias do Arpoador? Glória e o menino, construindo castelos que não cabiam no mundo, castelos invisíveis, abortados desde o início, urgentes e desnecessários à existência e seus Anos Novos. Pois que o mundo estava cansado de castelos nascidos das mãos do menino e queria apenas festejar e destruir.
Glória estava tão ocupada se procurando, o ano inteiro, o dia inteiro, todos esses meses que esqueceu de se encontrar. E ali, talvez vindo pelas mãos crisálidas da mãe de Ana que já morreu, a vida lhe entregava um pequeno diamante bruto. Em estado germinal.
Glória não era mais Glória do que o menino era menino ou o castelo era castelo, pois que o três eram a mesma trindade, a mesma tríade da existência. Os três querubins, os três reis magos. A mãe era apenas a mãe. A nossa mãe. A que trazia os avisos, a que gerava, a que cuidava. Os três: Glória, o menino e o castelo eram um corpo-a-corpo com a vida. Sempre em dúvida, sempre titubeante, até que a água do mar ou um chute adulto qualquer os recolhessem de volta pro estado bruto das coisas visíveis.
E era Glória quem chutava.
E estava Glória chutando o próprio impulso de que era feita? O mesmo castelo de que tanto precisava e ansiava construir com as próprias mãos, era ao mesmo tempo odiado por ela, silenciosamente e irreversivelmente, todo esse tempo?
Os pés traíam as mãos.
As mãos precisavam voltar a construir e estar lado a lado com o menino.
Talvez a melhor coisa fosse começar o ano desobedecendo todas as regras, jogar fora todos os I Chings e partir para a briga menos armada e mais livre. Com menos havaianas na bolsa. Sem guarda-chuva. E mais castelos.
Irresponsavelmente. (Lembrou de um amigo que tem sempre o rosto de quem acabou de acordar e já está indo dormir. Esse é o cara).
Pensou que o melhor era começar o ano, olhando ao redor com mais atenção e zelo, até com um certo carinho. Olhar ao redor com um amor imenso pelas coisas, todas elas: as frígidas e as solares, as grandes e as pequenas, os ensaios e as estréias, o que está à deriva e o que ancora. Sem desperdiçar a paisagem, sem economizar o alcance da vista, as coisas mais fecundas podem morar embaixo dos seus pés. E ansiando menos as benções dos Céus, os beijos dos gigantes ou os abraços dos desconhecidos íntimos, sem desejar dançar sem vontade, continuando apenas por estar acompanhada, tentando sempre acertar todos os alvos, não errar na escolha, decidir certo ou se abrindo demais às risadas ocas, aquelas que não engrandecem o espírito.
Talvez assim, olhando mais pra dentro, Glória consiga não pisar em Castelos que estão em pleno alvorecer, começando a ser construídos.