"Em conjunto, estas páginas falam, talvez, de uma tentativa de convivência literária: divagações e reações do cronista, no exercício sem método, misturadas ao eco de obras alheias, recolhido com a necessária simpatia. E como este sentimento se vai tornando escasso, gostaria de transmiti-lo ao leitor. Vale por um convite à ilha - não deserta, embora pouco povoada".
Carlos Drummond de Andrade
CENA I
PERSONAGEM: A MULHER DO VIGÉSIMO ANDAR
LUGAR: UM PRÉDIO QUALQUER DESBOTADO
ANO: ?
TEMA: ENCRUZILHADA
Sentada no parapeito da janela da minha ilha-casa, no décimo quarto andar de um edifício que é uma espécie de Carandiru repaginado, vou tecendo dúvidas sobre.
Vou tecendo dúvidas.
O título desse blog seria:
"Antes do Sono"
mas não estava disponível.
Nunca está...
Disponível.
Esse título seria como uma janela aberta de uma casa térrea, de pedra-Infernal, desenhada em rua ladrilhada, acessível e clara. Um risco de sol atravessaria o vidro fosco e desceria até a entrada da casa, todas as manhãs, quando eu ainda estivesse na cama, desavisada, entregue aos uivos do sonho recente, ainda amansada por sua corrente sanguínea que transborda no mar, na praça ou em ruas paradas e sem retorno, em lugares sem nome, fatigadas de infância. Insensível ainda ao risco alaranjado que entra por essa janela, eu relutaria insistentemente em continuar dormindo, zelosa pelos prenúncios dos sonhos, somente me tornando intratável aos poucos, mantida nessa luta entre o dormir e o acordar.
Que esperanças me restariam naquele começo de dia?
Nenhuma.
Porém, penso...
imagino,
estou vislumbrando apenas,
que esse risco seria como a última força, a grega,
a da fêmea negra,
parindo,
ansiando um filho quase morto,
quase cego,
um maldito filho pequeno como uma cruz de um rosário,
ele vêm,
ele invade, a luz alaranjada entra e eu tenho que.
devo,
não, eu tenho que.
Levantar.
Esse risco alaranjado seria motivo suficiente, seria na verdade, o único motivo, para esfregar os olhos e encarar aquela mancha arquinimiga no teto, e finalmente pisar em tacos de madeiras com xícaras de café na mão e sorrir um pouco sem jeito porque se acordou e isso por si só já basta.
Esse continuar atravessado. A contra-gosto. Ela bebe o café sem açucar.
Me interrompo agora e penso: Preciso lavar roupas. Colocar o lixo para fora e comprar comida para o gato. Preciso ser objetiva, prática e pensar no essencial. E é justamente quando penso no essencial a caminho das aulas que vislumbro uma digressão no cotidiano ao ver na vitrine de um antiquário; um pato.
O PATO
Lá esteve ele, estéril de tão rouco, mudo e nervoso embaixo de sua transparência, me pedindo socorro, enquanto eu passava...
Era um pato de cristal. E eu tive amor por ele, pena, medo, aflição, nervoso, compaixão, queria aquele pato pra mim, queria cuidar daquele pato, ele tinha o rosto bravo, porém, erguia-se no mais alto de seu cristal, num piscar de olhos e se desmancharia em cacos e ele bravo quebrando, morrendo, lá se ia um pato.
Vou comprar esse pato. Sou eu, esse bicho nervoso e exaurido, exigindo pra si uma existência grandiosa, dentro de sua frágil transparência, sou eu!
Entro e vejo em uma de suas patas, uma etiqueta onde se lê: R$ 1, 450,00
O Pato era meu aluguel, condomínio, luz, gás, telefone, enlatados e Ades, pão e jujuba, ele era todo o meu mês! E eu quase cometo uma loucura, estava prestes a... iria me endividar pelo resto da vida, mas aquele pato era um sinal, só podia ser, logo agora que eu estou quase chegando em... mim mesma. Estou sentindo, falta pouco pra descobrir quem eu sou... É só mais uns passos em direção a ... e eu chego. Pelo menos alguma coisa de mim eu descubro ainda esse ano, e agora esse pato me atravessando o dia, ali, bem perto das minhas mãos, ele é a própria claridade, vi trechos da minha infância em seus olhos, das minhas músicas preferidas, dos filmes, namorados, papai, mamãe e o galo que morreu, Juiz de Fora, meus livros, areia, sal e mar, vovô abrindo a garrafa de coca-cola furando a tampinha, o cachorro do tio Simundo me cheirando e eu fazendo xixi nas calças. Tudo ali no Pato!!! Finalmente eu teria um resumo de mim mesma, da minha vida, uma sinopse. É só isso que faltava pra eu ser feliz, um pequeno sinal. Um reflexo idiota qualquer. O Pato continua me olhando e pede socorro, ele odeia esse velho que usa roupas de inverno em pleno verão brasileiro, pelo amor de Deus, alguém avisa pra ele que não dá pra usar meias de lã e cachecol num sol de quarenta graus. Até o pato está suando. Ele está me deglutindo inteira, e agora já me vejo, vomitada pelo Pato e I-N-T-E-G-R-A-L.
Sem ele, continuarei sendo esses fragmentos, acordando sem rastros de luz alaranjados, um quebra cabeças onde as peças centrais foram recolhidas pela Comlurb no último Carnaval! Devolva-me a mim mesma, por favor, mundo, mundo, vasto mundo.
Calma. O velhote dono da espelunca está lá atrás. Vazio e rabujento, lendo algo em francês.
Os franceses são grossos, seja razoável, pensa no Pato e no que a sua vida será daqui por diante com ele. Vocês dois tem um futuro lindo pela frente. Fica firme. Acredita.
Vamos combinar um sistema de créditos, talvez ele divida em seis vezes, dez, quatorze, em mil vezes. Abaixa esse decote, respira funda e faz aquela voz rouca, a voz aguda afasta.
Voz grave e sombria, intergalática.
Estou decidindo quem de fato sou eu, estou tentando descobrir meu bicho nesse mundo, agora finalmente resolvi me resolver, então velho, vê se não me atrapalha, estou em plena transição, não seja um boicotador de destinos, não queira levar esse karma pra sua outra vida! Faça um precinho razoável pelo Pato e saíremos ilesos dessse encontro.
Mas pensa bem, Glória - esse foi o nome que resolvi ter desde então, desde o encontro com o Pato - pensa bem, se você comprar esse Pato, talvez, é bem provável, sua vida toda mude. Sua vida vai mudar, vai ser só olhar pro Pato, para você se reconhecer, pronto, algo que te defina em uma piscada, algo que você olhe e está lá; tudo o que erra em você, os antigos acertos, as encolhidas, as omissões, as frias, os medos, feridas abertas, tudo naquele olhar enviesado do pato: bravo e de cristal.
Resolvi comprar, tinha que comprar, quinze anos de terapia não revelariam uma visão como aquela, o mundo inteiro escondido naquela transparência, escoltado por ela, vigiado.
Pato, pato, pato! Eu quero esse Pato! O velho de meias xadrez e andar sorumbático chegava, me olhou espantado, meu Deus, eu gritei? Eu gritei três vezes, ele disse: TRÊS VEZES: QUERO ESSE PATO! QUERO ESSE PATO! QUERO ESSE PATO!
Preciso tomar meu remedinho fitoterápico, estou um pouco ansiosa. Soube hoje que sou histérica, preciso parar de repetir que eu quero esse pato. Será que alguém na rua me viu? Será que tem câmeras gravando, qualquer coisa eu digo que estou menstruada e saio.
Não, eu não posso sair sem o Vistante, esse é o nome dele, falei na hora pro vovô: "Quero o Vistante", ele continuou me olhando intrigado. Corrigi. "Quero esse patinho, tá bom? Aqui aceita cartão de crédito, não aceita?" Ele não respondeu.
Ele continuava me olhando e não respondeu. Meu Deus, eu querendo esse pato com urgência e esse vovô fica paralisado no meio do meu dia, no meio do meu destino, boicotando esse encontro?
"O senhor pode embrulhar esse pato pra mim?"
Ele continuou me olhando.
"Por que você quer esse pato?"
Não entendi. Ele estava me perguntando por que eu queria aquele pato ou era impressão minha? Agora eu precisava encontrar argumentos plausíveis para comprar um objeto em uma loja que vende objetos? Por que na minha vida tudo é assim? Difícil? Agora eu preciso fazer vestibular pra comprar o Pato, preciso falar francês também?
Eu - Por que... o que?
VELHO - Esse pato não está a venda minha filha, é enfeite da loja.
Como não está a venda e esse preço absurdo, e isso aqui em sua pata, essa etiqueta, o que é isso?
Ele olhou.
VELHO - Isso está errado, quem colocou isso aqui? Deve ter sido a nova funcionária, esse pato é de estimação, não podemos vender.
Era só o que me faltava, uma porra de um Pato sem graça, quase escorregando e quebrando, morrendo de reumatismo de tão lascado e esse velho dizendo que é um Pato de estimação!
Eu disse enfurecida:
"Não pode errar, não! O senhor nunca ouviu falar disso, se eu entro numa loja e o preço de algo está errado, problema é de vocês. O cliente não tem nada a ver com isso."
"Olha, minha filha, se você quiser chamar o Procon pode chamar, faça o quiser, mas o Pato eu não vendo. Seu Firmino é nosso desde a abertura da loja em 1930, tem nos dado muita sorte, dele eu não me desfaço."
Velho maldito! Pato maldito!
Por que é sempre assim? Quando eu descubro uma solução, ela é desativada na mesma hora?
Seu Firmino... Isso é nome de Pato? Só porque eu gostei, ele resolveu hipervalorizar esse pato, também, quem mandou gritar dentro da loja? Agora estou aqui, perdida outra vez. É só eu me achar um pouquinho que já aparece um velho de meia xadrez e boina pra estragar a festa.
"Esse é um pato muito valioso, valor inestimável, desde 1930, vêm trazendo sorte pra loja".
Ele poderia ter sido mais generoso, quem está precisando de sorte agora sou eu! O senhor já se aproveitou bastante desse Pato não foi não? Não dá pra dividir um pouquinho as suas bençãos? Velho nojento. Ainda cuspia enquanto falava e tinha cheiro de guardado.
Ando pelas ruas chutando pedrinhas...
volto pra minha antiga e recente realidade.
Sem nome, sem títulos, sem patos e em pleno desatino.
Acho que vou comprar um chiqlete. Mascar chiqueles desmoraliza a existência.
Por causa desse Pato, fiquei plantada num antiquário do centro da cidade por quase duas horas e lá se foi meu dia. Assim tem sido. A objetividade parece tão distante quanto essa ilha-casa onde envelheço.
"Antes do Sono"
Esse título colocaria um teto na casa que chove. Que tem goteiras. Esse dar nome as coisas, me preenche de algum modo incerto. Colocar um nome, um endereço, dar uma carteira de identidade, foi o único modo vil de sobrevivência que encontrei, pois desconheço outro.
Então vou dando nome as coisas que vejo ou pressinto.
Os nomes que coloco nas coisas estão sempre de ponta à cabeça. Por isso eu colo.
Eu ouço o nome que o passageiro ao lado disse que deve se chamar aquilo: árvore, grama, igreja, homem, criança, mocinha, vermelho e copio.
Eu colo.
Se as palavras não existissem e eu tivesse que nominar as coisas eu simplesmente não conseguiria porque me é impossível escolher apenas uma coisa. Por exemplo o vermelho:
Eu iria ficar em dúvida quando visse a cor vermelha entre palavras como:
quente, pérpetuo, oblíquo, música, porta
Pra mim essas palavras também são vermelhas. Seria uma eterna dúvida e a comunicação impossível.
Esse prólogo é para dizer o quanto me é dificil dar nome a este blog.
DAR NOME__________ ESCOLHER UM NOME ENTRE MIL ___________
FICO COM AS RETICÊNCIAS.
De qualquer forma a procura pela palavra que vai traduzir aquilo que me escapa e que eu anseio transmitir já me é essencial.
O QUE EU ANSEIO TRANSMITIR?
Isso. Essas indagações são as únicas coisas que anseio dividir. Compartilhar. Ainda não sei se essa palavra realmente existe. Compartilhar.
Ela acende uma cigarrete.
Cigarrete é mais sonoro que cigarro.
ANTES DO SONO
Essa tentativa de organizar a serpente que escapa, as impaciências insones que saltam ferozes entre as folhinhas do calendário... Preciso escolher palavras para continuar a existir. Talvez a escolha desse título nesse espaço virtual público, seja uma tentativa de engolir melhor esse pequeno espaço privado, nada virtual, essa casa, essa ilha.
Seria
- quem sabe -
essa possibilidade de dar nome a uma coisa, uma espécie de salvação-título, um nome acolhedor para o que vem transbordando, algo que me guiasse junto à correnteza de volta para a terra firme.
Estou procurando.
Essa terra firme.
Esse nome, esse blog, talvez sirva - não gosto dessa palavra, desde criança, não gosto de palavras que começam com S. Senhor, senhora, servil, serviço, sacrilégio, sapo. De qualquer forma ele - o nome, o blog - não servirá para nada, mas talvez, quem sabe me ajude como uma espécie de dama de companhia. Eu sempre quis ter uma dama de companhia. Agora eu tenho.
Uma dama de companhia cibernética.
Enfim - esse nome, esse blog, essa espécie de dama de companhia - servirá como um antídoto de uma insônia crônica onde o Rivotril só não basta.
Tenho medo de escrever Rivotril. Páro. Penso melhor. Olho o meu gato, Y. Ele não diz nada. O nome dele deveria ter sido X. Talvez o X e não o Y me enviasse sinais mais claros, foi um erro esse nome, erro grave. Um erro de cálculo quase fatal. Se ele fosse o X seria um salva-vidas e responderia as minhas perguntas com um simples olhar. Das metafísicas as mais banais. Esse gato Y não me dá uma indicação, esse gato não é um sacerdote oriental. O da vizinha é. O Velho Sábio.
Voltando...
Está muito na moda o Rivotril, a insônia, enxaquecas e depressões. O senso-comum da infelicidade contemporânea é fastidioso.
Fui contaminada. Tenho todas as reações e confusões e ecos dessa enfermidade chamada mundo contemporâneo ou seria mundo pós-moderno?
Dúvidas. Um blog onde só há dúvidas, só perguntas e nehuma resposta.
O interfone toca. Ela atende.
VIZINHO ASSEXUADO - Diz para ela que ela TECLA ALTO.
Meu Deus, alguém já ouviu falar disso?
É melhor escrever tudo aqui. Organizar esse excesso de palavras, ter uma companhia para a insônia, minha dama de companhia puta e cibernética blogueira que é, vai organizar esse caos interno, vai fazer com que eu me controle e não exploda no meio da rua com o primeiro terno-azul-marinho-discursso-burocrático-não senhora-sim senhora-sinto muito, senhora, está em manutenção - que aparecer.
Porra o caixa-eletrônico não está em manutenção. Eu estou em manutenção.
Escrever tudo aqui para amanhã quando eu for barrada pela porta giratória do banco, estar livre de excessos, calminha, controlada, um Rivotril só não basta. Eu não vou mais estapear o guarda, eu vou aceitar as regras da vida, ser menos exigente, falar baixo, sair mais da minha caverna-casa-útero-prisão-solidão-bunker-biblioteca-saguão hospitalar, meu pronto-socorro.
Preciso de uma companhia que seja concreta, palpável que me ajude a não gritar sempre que sinto sede, que ajude no meu controle psíquico maníaco-obsessivo compulsivo. Compulsão por palavras, jogos mentais, explicações, descrições, palavras e mais palavras que estão me soterrando, uma porção delas, enfileiradas, todas caçoando de mim - malditos cães de guarda- ninguém me entende, querem acabar comigo, preciso diminuir essa paranóia de perseguição mesmo quando ouço o Woody Allen dizer: "Não é por que eu sou paranóico que não tem ninguém me perseguindo". Tem sim, olha só atrás da árvore, atrás da vidraça, do espelho, da janela anterior a mim.
EU
estou me perseguindo. Vinte e quatro horas por dia eu me sigo. Estou atrás de mim como uma sombra encarcerada em sua condição de sombra. Me sigo, me constranjo, falho, sempre o erro à espreita. O medo do outro, do invasor, o eterno medo de ser invadida.
Preciso sempre me lembrar porque eu me enfio nas coisas. Estou sempre me enfiando nas coisas erradas como forma de castigo. Acredito que eu tenho muito a pagar.
Muitos telefonemas não dados, muitos almoços fiado, muita desconcentração, esqueci muitos aniversários, aluguel de orelhas, punições no macho, egoísmos e mais egoísmos.
Então me puno. Mas é sempre uma punição sutil.
É um desejo algo assim como um velho cão manco tentando coçar a parte
decepada.
Horrível essa palavra. Bate na madeira um, dois, três, isola.
Ou Isola um, dois, três.
... horrível, preciso me proteger de mim, dessas palavras, da minha presença velada e tão constante. O meu cérebro é uma cilada. O meu cérebro é uma cilada. Uma máquina registradora, eu registro tudo, constantemente, estou sempre pronta: lápis apontado, caderno em mãos. Eu quase não penso, eu peso. Eu peso o ambiente, a minha mãe já dizia eu devia ter uns cinco anos. Ela pesa o ambiente. Essa menina. E eu sou lenta. As coisas acontecem lentamente para mim. Um
peixe-cego. Estou aqui a teclar, o que mais eu poderia fazer? Para quem queria...
E o que isso tem a ver?
Meu lado B me pergunta.
O C responde: "É melhor perguntar para o D porque esse papo me dá sono" Então meu lado C vai dormir e o meu lado D fica acordando o C o B e o E.
Simplesmente eu queria ser uma pessoa só. Como aquelas que vestem um uniforme de manhã, saem para trabalhar, voltam, tiram o uniforme e já está na hora de dormir. E dormem. Eu não queria ser tão compulsiva. Na rua pergunto pra alguém:
EU - É aqui que passa o Praça Ramos?
DESCONHECIDO CANSADO - É.
EU - Sabe, hoje eu ia até o veterinário para examinar meu gato mas aí o veterinário disse que era melhor eu pagar a última dívida...
Pronto. Lá vai eu. Estou contando a minha vida só porque enxerguei uma orelha, eu não posso ver uma orelha. Podia ter uma profissão assim: Alugo orelhas para ouvir dúvidas e dívidas de pessoas carentes. Ficariam ricos comigo e eu pobre. Mais pobre.
Preciso de uma companhia além do Adolfinho - meu ventilador.
O nome do blog seria : "Como latir sem pôr em dúvida o latido"
OU
"Free Digressão"
OU
"Eu amo digressões"
Mas aí não é mais um blog, é um manifesto.
Todos os manifestos já foram feitos, todas as palavras já foram ditas e eu não beijei todas as bocas...
De qualquer forma esses nomes também não estavam disponíveis.
Com quem estou falando? Tenho a nítida sensação de que estou falando com alguém. É estranho.
Isso é uma ilha e eu estou dentro dela no vigésimo quinto andar de um edíficio que é um Carandiru repaginado onde um vizinho assexuado me multa porque eu faço barulhos... não posso dizer quais.
Antes. Eu quase não falava. Só o essencial. Agora não. Agora tudo é essen-cial! Comecei a falar numa noite e só parei três dias depois. Eu não dormia porque precisava falar e se eu parasse e não me distraísse com as palavras, viria um buraco, um imenso buraco negro que me devoraria para sempre.
O silêncio era o buraco.
Eu precisava me distrair de mim.
Do meu pânico.
Do meu pântano.
E foi então que fiquei assim.
Magra.
Num blog a gente não fala de si-mesmo, não é confessionário. Você tem que falar sobre o mundo, a sua visão de mundo, a política, a reforma agrária, dívida externa, a solidão do homem contemporâneo, a legalização do aborto, drogas, violência, abuso infantil.
Foda-se. Já tem muita gente falando sobre tudo isso, o que não falta no mundo hoje são opiniões.
Eu estou salva.
Sim.
Outro nome do blog seria: Toda essa minha/nossa destruição plugada no décimo primeiro andar sem óculos que proteja do frio.
?
Talvez tenha sido melhor o primeiro título:
"Fugindo de mim antes que alguém me ache e devolva".
Esse título era mais propício. Não.
Aqui é um espaço para os insones, solitários, ilhados em seus vigésimos andares com dores de cabeça sem fim e que sabem que estão sendo mumificados pela moda contemporânea da depressão que gera essa dor de cabeça sem fim e tão real e simbólica.
Para os que acham elevador uma coisa corriqueira e tão transcendente, que sonham que sobem num elevador que não pára nunca mais e que atinge Deus que solta um palavrão assim que te vê, enquanto o caminhão de gás toca aquela musiquinha deprimente e você acorda sem ninguém ao seu lado para te dizer:
"Foi só um sonho, meu bem".
Para os que acham delicioso ter alguém dizendo isso no ouvido de manhã e que ao mesmo tempo, pensando bem, aquele hálito dormido, a cara amassada, a cerveja anterior, o ronco a noite inteira, e esse "meu bem", assemelham-se mais a um pesadelo.
É melhor o sonho sem o "meu bem" depois.
Enfim esse é um espaço para quem sonha obsessivamente com mar e não vai nunca a praia, para quem quer compartilhar dúvidas, as mais imbecis como por exemplo
Hoje - um sábado - eu saio de casa ou é melhor não sair?
Para quem joga I Ching para responder essa pergunta e se revolta quando este responde:
Hexagrama 4. A insensatez juvenil "Há muita insistência em obter respostas que, quando conseguidas, não são assimiladas nem aceitas".
No mesmo dia esse hexagrama saiu para mim quatro vezes.
Esse espaço é para quem já passou por isso e também para quem tem tantas dúvidas que é incapaz de se mover. Para quem a dúvida não é uma visita mensal ou diária, como quando surge um momento decisivo na vida. É para quem tem dúvidas em todos os minutos e segundos e pergunta para o porteiro se deve ou não ligar a batedeira e fazer um bolo, se deve ou não aceitar aquele emprego, se deve ou não mudar para outro bairro, se deve ou não ter mais um gato...
Eu queria casar com um Pai de Santo.
Ter um I Ching real, uma autoridade da premonição diariamente na minha casa, na minha cama. Não, na minha cama não. No quarto ao lado.
Esse blog deveria se chamar:
"Funeral de um sol barrigudo"
Eu preciso dormir. Tomar meu Rivotril e dormir. Mas eu ainda não fechei a questão. Eu sou supersticiosa, se eu não fechar a questão não durmo.
Que questão?
O NOME. OU: O QUE ESTOU FAZENDO AQUI? NESSE ESPAÇO PÚLICO CONTANDO UMA MALDITA VIDA PRIVADA DE UMA CADELA NO CIO QUE AMA ELEVADORES?
Esse espaço existe para os insones que acham elevador uma coisa assim como um elo entre o profano e o divino, para aquele que se sente um eterno estrangeiro subindo num elevador incompreensível.
Para quem não gosta de compartilhar elevadores e quando sente que alguém está indo na direção do mesmo bloco que o seu, sai correndo e sobe as escadas para não ter aquela conversinha insuportável de elevador.
Para quem adora um cochicho no ouvido mas prefere que depois do cochicho a pessoa que cochichou "vaze", "dê área". Melhor dizendo: "Caia fora"
Para quem é multado pelo vizinho assexuado, que ao invés de pegar uma carona em sua lua-de-mel, te passa uma multa de cem reais e toca a campainha quando você está naquela fase beta, alfa, gama com aquele ex-beta-alfa-gama-Romeu-de-botequim.
Para aqueles que não gostam de se expor mas se expõem. Para quem promete que vai fazer uma coisa e faz outra. Para quem protela a vida o tempo inteiro e não segue os manuais de instrução. Para os que cometem gafe e tentam
consertar.
Para quem sente frio e medo e desamparo quando apaga a luz do quarto antes de dormir e o desamparo é tão grande que dá dor de barriga e você tem que acordar e ir ao banheiro.
Para quem o desamparo é tão grande que Edgar Allan Poe é fichinha e para quem ama Corvos e Nosferatus e sente no desamparo uma espécie de purificação idiota, para quem tem a síndrome do vítima-salvador nas relações amorosas. Para quem tem medo da morte, horror da morte, da inexistência, pensa muito nisso, quando virá, como será, com quem será, e pensa na passagem que é o que mais amedronta e reza baixinho pra não sentir dor.
Todos os sonhos tem morte e sal. Cheiro de mar e um gato caindo da escada, elevadores subindo e trens que não páram na estação.
A minha sensação é que a minha vida é um trem que não pára, que não pára, que não pára na estação. Nenhuma estação.
Esse deveria ser o nome, o título do blogue:
" Nenhuma estação ".
Eu quero descer mas o trem não pára. Eu querendo descer, conhecer alguém, conversar despretensiosamente, descansar, esticar as pernas para cima e não pensar em nada, para aqueles que não querem pensar em nada e sentem falta de palavras antigas como "cousas" ou "dous".
Para quem não acha Machado de Assis chato.
E pra quem divide a existência com personagens como o Migulim de "Campo Geral" de Guimarães Rosa - pra quem chorou na morte do Dito.
Para quem teme a morte e quer morrer na primeira crise. Para quem diz que não acredita em nada e reza. Para quem pensa que a vida talvez seja apenas aquele corrimão da infância na casa da avó. Para quem acha que a vida é um pensamento estilhaçado assim como a MEMÓRIA DE UM GATO.
Para quem duvida de si, para quem ama os mais velhos, quer ouvir histórias, quer ser embalado na rede por uma história antiga de avó e que ao mesmo tempo ferve de raiva no metrô porque precisa levantar para ceder espaço para esses velhinhos que deveriam estar em casa e não me fazer levantar cheia de sacolas, malditos anciões com cara de cachorro abandonado.
.
Para aqueles que sabem que escrever não é ser politicamente correto.
Para aqueles que escrevem uma coisa politicamente incorreta e se culpa em seguida, para quem cria um blog e depois se arrepende. Para aqueles que sempre se arrependem. Do que fizeram e do que não fizeram e do que ainda vão fazer.
Para quem tem medo de palhaço e de mágico. Para quem não sabe bater palmas ao cantar "Parabéns para você".
Para aqueles que amam gatos.
Para os que querem amar e não sabem como.
Para quem não vai revisar o texto pensando que talvez se revisar, apagará.
Para os filhos-da-puta.
Para os que não foram amados por falta de tempo.
E espaço.
Esse espaço, de escrever, a palavra que treme, mas não sai.
Ela nunca sai.
É um crime.
terça-feira, 22 de julho de 2008
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5 comentários:
ADOREI...SIMPLESMENTE...UMA PALAVRA...TALVEZ...MAGNIFIO...^^
Muito bom, Priscila. Segue em frente, segura na mão de Deus e vai.
Já vou indo , sabe como é, "vestibular pra comprar o pato", na quinta.
Bjs Candida
Nossa Pri...
gostei muito de seu texto... alias ele até me inspirou para escrever também...
te adoro!
Bruna
pri...agora sim consegui ler o texto na integra...adorei...lindo,lindo,maravilhoso...eu me identifiquei com muitas coisas relatadas...vc me inspirou tb para fazer um,mas acho q nao daria certo...pois acabaria falando demais...rsrs...um bjao minha linda...
Jane
Acho que encontra-se em seu blog todas as mulheres sendo do vigésimo, nono,quarto ou no primeiro andar dentro de um quarto que por alguns instantes é seu, mas por outro de seus pais, que não a deixa por um momento escrever o que sente nem ler o que conseguem sentir e escrever por ela em um blog de nome estranho " Passeio na ilha", que me chamou muita a atenção.
O nome poderia ser: "Trancada em um quarto" se fosse meu seria esse o nome,ou não, seria "Grandes quatro paredes brancas de um quarto".Que coisa, pra mim tudo se resume em um quarto ou mesas, mas tudo tem de ser branco...
Bom,acho que vou indo.Termino meu pensamento em um Blog quem sabe.
Com o meu nome " As quatro paredes brancas de um quarto" acho que será esse o nome. Claro,se um dia eu conseguir ficar sozinha no meu quarto,que não é meu e sim dos meus pais. Nos encontraremos lá quem sabe...
Beijoos Andressa Habyak!
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