sábado, 24 de abril de 2010
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
A voz
http://www.youtube.com/watch?v=AOLg_XY2cWA
Lhasa De Sela.
Tem gente que nasce, ilumina nossos recantos mais escuros e morre, deixando-nos perplexos, boquiabertos diante do precipício, hipnotizados pela féerica luz. De volta à escuridão, não reagimos. Ainda magnetizados pelo pequeno feixe de um sol que passou. Essa nesga, ela perdura. É a voz.
Lhasa De Sela.
Tem gente que nasce, ilumina nossos recantos mais escuros e morre, deixando-nos perplexos, boquiabertos diante do precipício, hipnotizados pela féerica luz. De volta à escuridão, não reagimos. Ainda magnetizados pelo pequeno feixe de um sol que passou. Essa nesga, ela perdura. É a voz.
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
AULAS SOBRE TRAGÉDIA
Um amigo meu dramaturgo, ator e diretor talentoso, vai dar um curso sobre TRAGÉDIA aqui em São Paulo e me pediu sugestões de pauta.
Não consegui dar as tais dicas, mas refleti um pouco sobre o tema e aqui está.
Curso de tragédia?
Bom, se quer sugestões de pauta, caminhe pelas ruas de São Paulo amanhã quando a chuva descer.
Foi o que fiz hoje. Tive que ir até o Butantã.
São Paulo fede. Da Pompéia, passando por Pinheiros, chegando na Vital Brasil... Fede.
Que nos perdoem nossos cineastas tão limpinhos, com seus filmes tão reluzentes, puro verniz, mas o nosso país tem cheiro.
A favela não é um camafeu.
Graças a Deus, por um lado. Só faltava morarmos dentro do Projac. Dentro da casa do BBB.
E moramos. Essa é a tragédia.
O que temos aqui embaixo,no sotão do mundo, chama-se água, lama e muita sujeira.
Uma tragédia.
Não precisamos ir muito longe, né?
Não precisamos nem chegar no Haiti. Lá é outra história. É o flagelo de Deus.
(Como diria Nelson Rodrigues, nos idos de 68:
"Parem de chorar por Cuba. E o Brasil? Não precisamos nem ir até o Nordeste como quer o Doutor Alceu, basta ir até Magé. Magé já é uma boa cólica, não?")
A nossa tragédia diária é sempre mais apocalíptica do que imaginamos - ou sequer, suportamos.
A tragédia é sempre diária. São as pequenas mortes do dia-a-dia, pequenas omissões, um olhar descuidado e ferino que nos atravessa.
A tragédia é aquele detalhe que passa despercebido e de repente se transforma em morcego e cresce na gente e numa noite escapa, desarvorado, pra longe, nos deixando com saudade.
A tragédia é não dormir, não acordar, virar do avesso.
É ser abandonado.
É ter um psicanalista (como eu) que surta, nos deixando perplexos, sem receita!
É perder um dente no país dos banguelas.
É querer descansar e não ter onde. E escapar pela orla, beirando a lagoa sem enxergar nem uma nem outra, porque tudo dói e a dor é maior do que qualquer beleza.
É fugir e não conseguir escapar, é o calor de cem graus do Rio de Janeiro, que durante a noite nos expõe aos olhares de todas as baratas passistas e tão descoladas que saltam famintas pra fora dos ralos fumegantes da cidade.
É a repetição. O eterno círculo vicioso. É estar consciente e não acender a chama da mudança;
É quando a família apodrece e você se dá conta e está impotente.
é o suor encharcado da impotência.
E resumindo toda essa divagação de enchente: você tem muito humor - por sinal, brilhante - pra falar sobre tragédia!
Como se o verdadeiro humor não fosse trágico.
Leia Rilke. Ele aborda muito bem a trágica condição do homem. Acometido pela "coisa grande", inominável.
Ah, não saber amar é uma puta tragédia!
Talvez a maior de todas. E provavelmente,
a única.
Não consegui dar as tais dicas, mas refleti um pouco sobre o tema e aqui está.
Curso de tragédia?
Bom, se quer sugestões de pauta, caminhe pelas ruas de São Paulo amanhã quando a chuva descer.
Foi o que fiz hoje. Tive que ir até o Butantã.
São Paulo fede. Da Pompéia, passando por Pinheiros, chegando na Vital Brasil... Fede.
Que nos perdoem nossos cineastas tão limpinhos, com seus filmes tão reluzentes, puro verniz, mas o nosso país tem cheiro.
A favela não é um camafeu.
Graças a Deus, por um lado. Só faltava morarmos dentro do Projac. Dentro da casa do BBB.
E moramos. Essa é a tragédia.
O que temos aqui embaixo,no sotão do mundo, chama-se água, lama e muita sujeira.
Uma tragédia.
Não precisamos ir muito longe, né?
Não precisamos nem chegar no Haiti. Lá é outra história. É o flagelo de Deus.
(Como diria Nelson Rodrigues, nos idos de 68:
"Parem de chorar por Cuba. E o Brasil? Não precisamos nem ir até o Nordeste como quer o Doutor Alceu, basta ir até Magé. Magé já é uma boa cólica, não?")
A nossa tragédia diária é sempre mais apocalíptica do que imaginamos - ou sequer, suportamos.
A tragédia é sempre diária. São as pequenas mortes do dia-a-dia, pequenas omissões, um olhar descuidado e ferino que nos atravessa.
A tragédia é aquele detalhe que passa despercebido e de repente se transforma em morcego e cresce na gente e numa noite escapa, desarvorado, pra longe, nos deixando com saudade.
A tragédia é não dormir, não acordar, virar do avesso.
É ser abandonado.
É ter um psicanalista (como eu) que surta, nos deixando perplexos, sem receita!
É perder um dente no país dos banguelas.
É querer descansar e não ter onde. E escapar pela orla, beirando a lagoa sem enxergar nem uma nem outra, porque tudo dói e a dor é maior do que qualquer beleza.
É fugir e não conseguir escapar, é o calor de cem graus do Rio de Janeiro, que durante a noite nos expõe aos olhares de todas as baratas passistas e tão descoladas que saltam famintas pra fora dos ralos fumegantes da cidade.
É a repetição. O eterno círculo vicioso. É estar consciente e não acender a chama da mudança;
É quando a família apodrece e você se dá conta e está impotente.
é o suor encharcado da impotência.
E resumindo toda essa divagação de enchente: você tem muito humor - por sinal, brilhante - pra falar sobre tragédia!
Como se o verdadeiro humor não fosse trágico.
Leia Rilke. Ele aborda muito bem a trágica condição do homem. Acometido pela "coisa grande", inominável.
Ah, não saber amar é uma puta tragédia!
Talvez a maior de todas. E provavelmente,
a única.
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Como se tornar uma vaca
Eu não sinto inveja das pessoas que dormem bem.
É só um princípio de antipatia, nada muito grave. Quase um ressentimento, tendendo mais para a desconfiança.
Essas pessoas matam, é preciso deixar bem claro.
São predadoras.
Gente silenciosa demais e que adormece rápido, geralmente são hostis. Guardam como um tesouro a sua tranquilidade autoritária, essa paz enfática e sebosa, espelho de naufrágios. Nos constrangem diante de nossa covardia de mergulho. Guardamos o lençol rasgado como um segredo abominável, abaixamos a vista e encolhemos o rabo, obedientes diante desses inabaláveis senhores pacíficos. Eles nos acuam com sua elegância altiva, seus gestos calculados, o olhar de peixe-morto, já vagando, recuando, flertando outros mundos. Tem gente que dorme de pé. Por favor, alguém pode se encarregar de sumir com um sujeito desses? Está querendo nos humilhar?
São da mesma espécie dos que dão uma tremidinha antes de adormecer. E assim que pulam em suas camas já começam o espetáculo canalha.
Vermes.
Mal a vêem e já se atiram, boca entreaberta, braços em cruz. Uma ausência de olheiras assim, não deveria ser no mínimo investigada?
No planeta imaginário que bolei numa dessas noites intermináveis, os homens que dormem bem, pagam multa. E ela é bem alta.
Na verdade, eu reservei um outro hemisfério só pra eles. Cheio de sangue, guerra e dor. Eles precisam pagar. Dormem bem durante a noite e pagam por isso durante o dia. É um serviço que eu presto à sociedade. Quão mais insones, mais tropeços, mais hesitações, mais dúvidas, logo, mais humanidade.
Por enquanto, esses monstros que fiquem bem longe de mim. Tenho medo de qualquer espécie de serenidade, de expressões como "à partir do momento que", "sustentabilidade", "em conformidade com", "dentro do prazo estabelecido", "dentro dos conformes" e "o importante é ser feliz". Dessas pessoas eu quero uma distância de no mínimo, dois mil metros.
Esse homem ao meu lado, por exemplo, é um caso típico. Preciso me livrar dele.
Rápido.
Veementes em seu quarto intocado de fantasmas, eles preservam até o último grão suas forças, para um dia - quem sabe? - usá-las de forma irreversível, contra nós.
Eles traem, apunhalam pelas costas, riem de nossas dúvidas e incoerências, estão sempre atrás de qualquer passo em falso, são meticulosos e ardentes.
O homem encosta o braço meticuloso em mim. Vou cuspir nele. Atenção, pelotão de fuzilaria, avançar! Onde eu encontro um guarda nessa estrada?
Tento dormir para esquecer que estou ao lado de um canalha que ronca.
A paisagem, desleal em sua proporção exata, passa como bois correndo.
Fecho os olhos, estou dormindo.
Percebo que um dos olhos, o esquerdo, se esqueceu de fechar e ficou entalado com um boi na retina. Sinto os pêlos do braço do homem raspando meu cotovelo. Vou atirar.
O delinquente sentado ao meu lado resolveu acordar e mexer nessas maquininhas portáteis, cheias de ruídos higt tech, ressoam sobre mim sinos intratáveis e como um míssel, essa sonoridade frenética me acerta em cheio.
Estou tentando cochilar em Tóquio.
Odeio ele. Além disso, ele fede. Tem hálito de cova.
Por que ninguém faz nada?
O celular dele toca e ele não atende. Que novidade é essa agora?
Ele está todo aparelhado, gastou sua pequena fortuna nessa tecnologia esganiçada, todas as inovações coreanas empaturram seus bolsos de plástico e ele não vai atender o celular?
Existe algum código nesse jogo futurista e eu esqueci de pegar as instruções.
Como pode o destino ter reservado um lugar ao lado de um pulha desses, durante quatro horas?
E as pessoas ainda vêm mijar em cima de mim. Como pode? Elas comem fandangos durante a viagem, maxilares nervosos devorando o isopor, compram sequilhos nas paradas e passam gritando umas com as outras enquanto os restos mortais dos seus sequilhos transbordam pelo caminho, cuspidos das regiões mais remotas de suas obturações. Para cair onde? Em cima do meu livro antigo de capa amarela. Estou com a cara enfiada dentro dele há quase duas horas sem concluir uma linha. Elas, as passageiras ignóbeis, se dirigem ao banheiro, com a calça de cintura baixa comprimindo seus orgãos genitais já avacalhados e gastos. As banhas saltam pra fora da roupa.
É abominável tudo isso.
E eu sou obrigada a assitir esse espetáculo caduco nos meus últimos dias de férias? O que é isso? O Circo do Horrores? Olha o prazer dessa aqui. Esturricada de sol, com cheiro de baconzitos exalando de todos os seus poros abertos e uma latinha de cerveja na mão assada. Um leitãozinho prestes a ser devorado.
Elas gostam disso. Existe uma volúpia em chegar ao andar mais baixo da existência.
Gostam de mijar no banheiro dos ônibus de viagem, aquele em que não cabe ninguém. Elas gostam de não caberem nas coisas, de serem expulsas pelos cômodos mais vis, de serem esgotáveis, solidamente empilhadas, umas sobre as outras. Elas desejam com o mais cruel dos sorrisos essa ampla devastação. Estão aqui pra isso. Para serem despetaladas sem piedade. E gratuitamente oferecem seus flancos gordos para a marginália sedenta. Só existem dois lugares onde podemos ficar. No palco ou na platéia. Cara ou coroa. Par ou ímpar.
Eu estou na platéia e não gosto do que vejo. Isso é a diversão pra elas. E também - e isso é o mais fascinante pra essas mulheres barbadas -, elas sabem que tem público nas extremidades, sentados nas últimas poltronas, e por isso fazem de próposito. Elas se amontoam como abelhas em volta do mel. Espremem-se umas contras as outras e esperam aplausos vagos. A mais velha passa por mim e amassa meu rosto contra sua pança inflada. Desejam compartilhar suas ruínas.
Elas dormem bem, são violentas.
São capazes de tudo, pode apostar.
Precisam devolver os sapos mal digeridos de alguma maneira. Olha essa vaca. Ela finge que não consegue abrir a porta do banheiro. Quer chamar atenção. Daqui eu não me levanto. Eu paguei minha passagem, minha senhora. Eu tenho direito de permanecer sentada e calada. E não sou funcionária da Viação Cometa. Elas não se prepararam para viajar? Querem uma ajudinha para se agacharem também?
Por que essa porta é tão difícil de abrir? Já estou suando. O canalha, o pulha das maquininhas portáteis finge que não vê a acrobacia que faço para ajudar essas mulheres, a porta emperrou. Ele é mais um dos setecentos cegos que me perseguem.
Tem que se preparar, minha gente. Eu me preparo. Horas antes, faço o serviço completo. Tenho minhas listas. Sou prática. As viações deveriam distribuir folhetos: Chegar de banho tomado, desentupir os ralos antes de sair de casa e escovar a dentadura.
Que viagem horrível! Estou sentada praticamente no mijo, poltrona número quarenta e dois. Nunca mais sento no fim da linha.
Quarenta e dois dá seis. Seis é um bom número. Talvez me dê sorte. É o meu número, afinal de contas.
Por que eu não apago de uma vez? Se ao menos esse cheiro me anestesiasse...
Ele ronca forte. A máquina de telefone, e-mail, i-pod, central de atendimento, refúgio nazista, compras vinte e quatro horas, net e site de relacionamentos que está em suas mãos, solta os ruídos mais improváveis, vozes entrecortadas e chiados, ouço algo numa língua indecifrável. A máquina menor faz os barulhos mais detestáveis que a modernidade se empenhou em produzir.
Estou sofrendo.
Passo um por um, os episódios da viagem.
Praia, barata, praia.
Irmão trancado na quitinete, andando pra trás enquanto corto as cebolas. Ele pensa que se virar de costas para mim, uma larva vai escapar por entre as cebolas. Viro-me de repente e dou de cara com a cena. Os holofotes gritam, a casa grita, os talheres esperneam. Só nós dois nos mantivemos quietos. É melhor não contrariar.
Adoeci logo depois. Fazia cinquenta graus. A casa suava indiferente aos trovões.
Subi a serra. Mãe biruta, mais barata, rato morto na cachoeira, mãe biruta, chuva.
E agora isso: o mijo.
Por que não me tornei uma vaca?
O nosso século deveria ser o das vacas.
Eu queria muito ser uma, dessas bem tetudas. Eu tenho potencial. Em todos os sentidos. Mas até nisso eu falhei. Não se pode querer tudo;
Eu quis.
Bem-feito.
----------------------------------------------------------------------------------
As pessoas morrem de medo de envelhecer (por isso inventam máquinas, é uma maneira de continuarem jovens, são os novíssimos anciões antenados do futuro).
Eu também já tive esse medo.
Mas hoje, depois do mijo, da barata e do rato da fonte (sem contar toda a espécie de folhetins da família Rivotril), eu percebo que o único sentido é o da queda.
Há uma volúpia nesse avanço.
Eu me vejo caindo cada vez mais. E mais e mais, vertiginosamente.
Caindo assim, dessa altura, me torno mais humana.
E vivo meus últimos dias em plena convulsão.
Cair, morrer, o mijo nas artérias. Putrefação. Tem uma hora na vida em que a miopía se deteriora. E vemos.
Não precisa chegar tão perto.
Há um desmoronamento.
Você olha o pai, a mãe, a casa e a pilha de recados empilhando-se na cabeceira tombada.
Nos distraímos.
Existem também os retratos.
O guarda-louças enferrujado, o cuco mudo, as sombras dos vitrais.
Míseros detalhes.
Um livro torto na estante, uma barata que passa a habitar a área de serviço sem que ninguém note, um rato morto na despensa, um excesso de enfeites e de pintura nas paredes da casa. - O zelo prodigioso não é um bom indício.
A casa está se deteriorando dentro de mim. E não sai do lugar. Isso é o mais cruel.
E eu posso sentir essa queda como se eu fosse a própria massa de concreto que despenca sobre os móveis.
Eu fraquejo no início, quase volto atrás. Mas não fui eu quem deu a largada.
A queda, se instaurou na surdina.
Ninguém que lá habita, nota. Ninguém que lá dorme, vê.
Setecentos cegos me perseguem.
Mas por entre as frestas, saída do subterrâneo, ofuscada pela noite que encendeia o pequeno lustre com seu clarão de morte, ela entra.
E toma a casa para si.
E viola um por um, os objetos descartáveis.
Ela é a dona da casa agora.
Senhora Esgoto.
É só um princípio de antipatia, nada muito grave. Quase um ressentimento, tendendo mais para a desconfiança.
Essas pessoas matam, é preciso deixar bem claro.
São predadoras.
Gente silenciosa demais e que adormece rápido, geralmente são hostis. Guardam como um tesouro a sua tranquilidade autoritária, essa paz enfática e sebosa, espelho de naufrágios. Nos constrangem diante de nossa covardia de mergulho. Guardamos o lençol rasgado como um segredo abominável, abaixamos a vista e encolhemos o rabo, obedientes diante desses inabaláveis senhores pacíficos. Eles nos acuam com sua elegância altiva, seus gestos calculados, o olhar de peixe-morto, já vagando, recuando, flertando outros mundos. Tem gente que dorme de pé. Por favor, alguém pode se encarregar de sumir com um sujeito desses? Está querendo nos humilhar?
São da mesma espécie dos que dão uma tremidinha antes de adormecer. E assim que pulam em suas camas já começam o espetáculo canalha.
Vermes.
Mal a vêem e já se atiram, boca entreaberta, braços em cruz. Uma ausência de olheiras assim, não deveria ser no mínimo investigada?
No planeta imaginário que bolei numa dessas noites intermináveis, os homens que dormem bem, pagam multa. E ela é bem alta.
Na verdade, eu reservei um outro hemisfério só pra eles. Cheio de sangue, guerra e dor. Eles precisam pagar. Dormem bem durante a noite e pagam por isso durante o dia. É um serviço que eu presto à sociedade. Quão mais insones, mais tropeços, mais hesitações, mais dúvidas, logo, mais humanidade.
Por enquanto, esses monstros que fiquem bem longe de mim. Tenho medo de qualquer espécie de serenidade, de expressões como "à partir do momento que", "sustentabilidade", "em conformidade com", "dentro do prazo estabelecido", "dentro dos conformes" e "o importante é ser feliz". Dessas pessoas eu quero uma distância de no mínimo, dois mil metros.
Esse homem ao meu lado, por exemplo, é um caso típico. Preciso me livrar dele.
Rápido.
Veementes em seu quarto intocado de fantasmas, eles preservam até o último grão suas forças, para um dia - quem sabe? - usá-las de forma irreversível, contra nós.
Eles traem, apunhalam pelas costas, riem de nossas dúvidas e incoerências, estão sempre atrás de qualquer passo em falso, são meticulosos e ardentes.
O homem encosta o braço meticuloso em mim. Vou cuspir nele. Atenção, pelotão de fuzilaria, avançar! Onde eu encontro um guarda nessa estrada?
Tento dormir para esquecer que estou ao lado de um canalha que ronca.
A paisagem, desleal em sua proporção exata, passa como bois correndo.
Fecho os olhos, estou dormindo.
Percebo que um dos olhos, o esquerdo, se esqueceu de fechar e ficou entalado com um boi na retina. Sinto os pêlos do braço do homem raspando meu cotovelo. Vou atirar.
O delinquente sentado ao meu lado resolveu acordar e mexer nessas maquininhas portáteis, cheias de ruídos higt tech, ressoam sobre mim sinos intratáveis e como um míssel, essa sonoridade frenética me acerta em cheio.
Estou tentando cochilar em Tóquio.
Odeio ele. Além disso, ele fede. Tem hálito de cova.
Por que ninguém faz nada?
O celular dele toca e ele não atende. Que novidade é essa agora?
Ele está todo aparelhado, gastou sua pequena fortuna nessa tecnologia esganiçada, todas as inovações coreanas empaturram seus bolsos de plástico e ele não vai atender o celular?
Existe algum código nesse jogo futurista e eu esqueci de pegar as instruções.
Como pode o destino ter reservado um lugar ao lado de um pulha desses, durante quatro horas?
E as pessoas ainda vêm mijar em cima de mim. Como pode? Elas comem fandangos durante a viagem, maxilares nervosos devorando o isopor, compram sequilhos nas paradas e passam gritando umas com as outras enquanto os restos mortais dos seus sequilhos transbordam pelo caminho, cuspidos das regiões mais remotas de suas obturações. Para cair onde? Em cima do meu livro antigo de capa amarela. Estou com a cara enfiada dentro dele há quase duas horas sem concluir uma linha. Elas, as passageiras ignóbeis, se dirigem ao banheiro, com a calça de cintura baixa comprimindo seus orgãos genitais já avacalhados e gastos. As banhas saltam pra fora da roupa.
É abominável tudo isso.
E eu sou obrigada a assitir esse espetáculo caduco nos meus últimos dias de férias? O que é isso? O Circo do Horrores? Olha o prazer dessa aqui. Esturricada de sol, com cheiro de baconzitos exalando de todos os seus poros abertos e uma latinha de cerveja na mão assada. Um leitãozinho prestes a ser devorado.
Elas gostam disso. Existe uma volúpia em chegar ao andar mais baixo da existência.
Gostam de mijar no banheiro dos ônibus de viagem, aquele em que não cabe ninguém. Elas gostam de não caberem nas coisas, de serem expulsas pelos cômodos mais vis, de serem esgotáveis, solidamente empilhadas, umas sobre as outras. Elas desejam com o mais cruel dos sorrisos essa ampla devastação. Estão aqui pra isso. Para serem despetaladas sem piedade. E gratuitamente oferecem seus flancos gordos para a marginália sedenta. Só existem dois lugares onde podemos ficar. No palco ou na platéia. Cara ou coroa. Par ou ímpar.
Eu estou na platéia e não gosto do que vejo. Isso é a diversão pra elas. E também - e isso é o mais fascinante pra essas mulheres barbadas -, elas sabem que tem público nas extremidades, sentados nas últimas poltronas, e por isso fazem de próposito. Elas se amontoam como abelhas em volta do mel. Espremem-se umas contras as outras e esperam aplausos vagos. A mais velha passa por mim e amassa meu rosto contra sua pança inflada. Desejam compartilhar suas ruínas.
Elas dormem bem, são violentas.
São capazes de tudo, pode apostar.
Precisam devolver os sapos mal digeridos de alguma maneira. Olha essa vaca. Ela finge que não consegue abrir a porta do banheiro. Quer chamar atenção. Daqui eu não me levanto. Eu paguei minha passagem, minha senhora. Eu tenho direito de permanecer sentada e calada. E não sou funcionária da Viação Cometa. Elas não se prepararam para viajar? Querem uma ajudinha para se agacharem também?
Por que essa porta é tão difícil de abrir? Já estou suando. O canalha, o pulha das maquininhas portáteis finge que não vê a acrobacia que faço para ajudar essas mulheres, a porta emperrou. Ele é mais um dos setecentos cegos que me perseguem.
Tem que se preparar, minha gente. Eu me preparo. Horas antes, faço o serviço completo. Tenho minhas listas. Sou prática. As viações deveriam distribuir folhetos: Chegar de banho tomado, desentupir os ralos antes de sair de casa e escovar a dentadura.
Que viagem horrível! Estou sentada praticamente no mijo, poltrona número quarenta e dois. Nunca mais sento no fim da linha.
Quarenta e dois dá seis. Seis é um bom número. Talvez me dê sorte. É o meu número, afinal de contas.
Por que eu não apago de uma vez? Se ao menos esse cheiro me anestesiasse...
Ele ronca forte. A máquina de telefone, e-mail, i-pod, central de atendimento, refúgio nazista, compras vinte e quatro horas, net e site de relacionamentos que está em suas mãos, solta os ruídos mais improváveis, vozes entrecortadas e chiados, ouço algo numa língua indecifrável. A máquina menor faz os barulhos mais detestáveis que a modernidade se empenhou em produzir.
Estou sofrendo.
Passo um por um, os episódios da viagem.
Praia, barata, praia.
Irmão trancado na quitinete, andando pra trás enquanto corto as cebolas. Ele pensa que se virar de costas para mim, uma larva vai escapar por entre as cebolas. Viro-me de repente e dou de cara com a cena. Os holofotes gritam, a casa grita, os talheres esperneam. Só nós dois nos mantivemos quietos. É melhor não contrariar.
Adoeci logo depois. Fazia cinquenta graus. A casa suava indiferente aos trovões.
Subi a serra. Mãe biruta, mais barata, rato morto na cachoeira, mãe biruta, chuva.
E agora isso: o mijo.
Por que não me tornei uma vaca?
O nosso século deveria ser o das vacas.
Eu queria muito ser uma, dessas bem tetudas. Eu tenho potencial. Em todos os sentidos. Mas até nisso eu falhei. Não se pode querer tudo;
Eu quis.
Bem-feito.
----------------------------------------------------------------------------------
As pessoas morrem de medo de envelhecer (por isso inventam máquinas, é uma maneira de continuarem jovens, são os novíssimos anciões antenados do futuro).
Eu também já tive esse medo.
Mas hoje, depois do mijo, da barata e do rato da fonte (sem contar toda a espécie de folhetins da família Rivotril), eu percebo que o único sentido é o da queda.
Há uma volúpia nesse avanço.
Eu me vejo caindo cada vez mais. E mais e mais, vertiginosamente.
Caindo assim, dessa altura, me torno mais humana.
E vivo meus últimos dias em plena convulsão.
Cair, morrer, o mijo nas artérias. Putrefação. Tem uma hora na vida em que a miopía se deteriora. E vemos.
Não precisa chegar tão perto.
Há um desmoronamento.
Você olha o pai, a mãe, a casa e a pilha de recados empilhando-se na cabeceira tombada.
Nos distraímos.
Existem também os retratos.
O guarda-louças enferrujado, o cuco mudo, as sombras dos vitrais.
Míseros detalhes.
Um livro torto na estante, uma barata que passa a habitar a área de serviço sem que ninguém note, um rato morto na despensa, um excesso de enfeites e de pintura nas paredes da casa. - O zelo prodigioso não é um bom indício.
A casa está se deteriorando dentro de mim. E não sai do lugar. Isso é o mais cruel.
E eu posso sentir essa queda como se eu fosse a própria massa de concreto que despenca sobre os móveis.
Eu fraquejo no início, quase volto atrás. Mas não fui eu quem deu a largada.
A queda, se instaurou na surdina.
Ninguém que lá habita, nota. Ninguém que lá dorme, vê.
Setecentos cegos me perseguem.
Mas por entre as frestas, saída do subterrâneo, ofuscada pela noite que encendeia o pequeno lustre com seu clarão de morte, ela entra.
E toma a casa para si.
E viola um por um, os objetos descartáveis.
Ela é a dona da casa agora.
Senhora Esgoto.
domingo, 10 de janeiro de 2010
Feliz? De aluguel. E tudo o que eu não pude - ou não consegui - dizer a você
Júnior,
(um dia eu queria parar de falar);
Eu não acredito em felicidade.
Só um idiota é feliz.
Tem que ter uma capacidade de abstração absurda pra ser feliz. E é preciso ser um pouco alienado, não?
Felicidade não existe. Quem você conhece que é feliz? Ninguém é.
Talvez o Manuel, porteiro do prédio do nosso pai, seja. Ele vive rindo e é meio bobalhão. Tem cara de duende urbano.
Essa propaganda de alegria e felicidade a qualquer custo me cansa e aí você tem que comprar, comprar, comprar, pra ser mais e mais e mais feliz.
Que papo é esse? É exautivo.
É vão.
Como se entulhássemos um buraco na parede, um buraco estreito, ordinário, um buraco que serviria apenas para um aperto de mãos, sim para isso serviria muito bem. Seria alías estúpido dizer que por ali não passassem dois braços, que mãos saudáveis, com o mínimo de esforço físico não pudessem se encontrar.
Como esse tipo de desejo está cada vez mais raro, armazenamos coisas no buraco entre uma parede e outra.
Enchemos esse vil buraco, seria um buraco menos ordinário se acontecesse de; por exemplo, como posso dizer? Se acontecesse de alguém morrer, é isso, alguém morrer exatamente entre a fenda dessas duas paredes que não se falam. Um ataque fulminante do velho funcionário de uma fábrica de amendoins entre os dois lados, na passagem entre os dois cômodos. Na rachadura um corpo tomba e dignifica o vão.
Ressaltada pela antipatia de um marimbondo que ali se instalou com sua família, as paredes se distanciam uma da outra, dia após dia. E ali, de repente, um homem dá seu último suspiro de vida. Como se alguém morresse em cima da fachada de um prédio baixo, atrapalhando a harmonia das ruas, avacalhando os vizinhos e impedindo a promoção da síndica. Morrer entre. Morrer sobre. Morrer atrapando a paisagem.
Nesse buraco, nessa pequena fresta entre dois cômodos de um pequeno cortiço, entulhado com traquitanas de toda ordem, esse excesso de bugigangas, falhas, recados, bilhetes atravessados na noite e já engordurados pela massa do pastel, os dias passam e o buraco cresce, alarga. Tralhas que não servem pra mais pra nada, nunca serviram, mas nos dão a falsa impressão de ordem, ali depositadas, artifício infantil e apaziguador de consciências pesadas. Todo dia o montinho é acrescido por novidades, um palito de fósforo por exemplo. Quer algo mais edificante que um palito de fósforo? A fenda com as mil coisas espremidas, amaciam a vida. É o anti-despejo os moribundos objetos. Nossos bens comuns.
(Como se existisse algum bem. Comum.)
Como se só vivêssemos para armazenar gordura em cima da esferográfica do papel. E através desses pequenos entulhos, obras infieis, silenciosos cadernos, vigas emprestadas, canos e amortecedores, ressoasse por trás, como uma voz na surdina, um sopro de glória.
De compaixão.
Felicidade não existe, Júnior. Mesmo se conseguíssemos armazenar todas aquelas coisas que nos traíram anos atrás, lembra?
A felicidade morreu quando o mais ínfimo grão de areia surgiu sobre a terra.
- Na verdade não é nem que a tal felicidade não exista. Eu a vejo na cara de um cão que dorme. É que qualquer espécie de felicidade mata.
"Mas atraves da fenda, eu posso ver, é muito claro isso pra mim. Tão claro que sorrio com gosto, como no outono quando as cores se misturam em cima do telhado, com aquelas folhas mortas. Sim, o buraco, o vão, racha, nela guardo todo meu tesouro, possuimos algo sim, bebê. Sou grato pelas coisas que consigo obter, as minhas coisinhas, pequenas distrações, agulhas da existência, felicidades portáteis.", diz o segundo rosto, aquele que nos dão voz.
As coisas nos possuem e não o contrário. - O terceiro rosto intervêm -
Elas mandam em nós.
Sempre foi assim,
veja esse apartamento.
Nada aqui é meu,
Nem o gato.
A vida é de aluguel.
Pedimos a prazo, engolimos sapos, criamos crediários e mais crediários, nos endividamos, pra quê?
Os objetos que amontoamos aqui dentro nos dão uma surra diariamente.
Mas tudo isso é porque desejamos demais. Ou porquê, talvez; precisamos de alguma garantia. Uma prova. É isso. Precisamos provar que nossa vida não foi em vão.
Esses pequenos lenços riscados de chuva e as fatais manchas de suor embaixo do braço desse paletó, nos dão a falsa impressão de que sobrevivemos.
E que um dia, existimos.
- Aqui tem um rastro, criança. Vem. Siga esse rastro. Eu deixei pra você saber que um dia eu estive aqui. Mesmo que você só consiga enxergar isso atraves da ponta desse cigarro ou atraves do odor de suor misturado com lavanda sob a manga do vestido, está vendo esse capuz? Um dia eu chorei sob ele. O pequeno engradado vazio foi presente do meu avô e o bolo está assim deteriorado, sugado por vermes, porque esquecemos de comer. E dividir. E mastigar com força. Não importa.
Veja.
Saiba.
Durma bem aqui na extremidade esquerda onde um dia, vários dias, eu tentei dormir e não consegui.
A criança vai. Obedece a voz do seu interior nascendo.
E sonha que morre. E sonha que é outra. E vomita na colcha íngreme.
Dormir é abismo. Uma entrega sem fim. Só para os corajosos, destemidos, sanguinolentos. Maníacos do parque.
Pessoas que dormem bem são assassinos em potencial.
Preciso intoxicar o buraco entre as duas paredes do meu cortiço com todos estes objetos para sobrar;
Algum sorriso para a hora da foto, retrato de documento. Passaporte chinês.
Júnior,
O buraco na parede é uma pista falsa. Não durma ainda, irmão. Falta eu arrancar uma ponta de confissão dessa noite finíssima, quase de seda, que estampa um desenho claro sobre nós.
Talvez um dia tenhamos coragem para arrancar um por um todos os biodegradáveis, retratos sem molduras e esse velho baú, para, quem sabe? Atingir com o máximo de silêncio e um cuidado alvíssimo de delicadeza a mão que nos espera do outro lado.
E elas consigam finalmente, se tocar.
Tenho a sina da esperança.
E apesar disso, eu sei, que a gente passa a vida almejando uma coisa que não existe, Júnior.
Não seria melhor arrancar essa mania de claridade em nós e encarar a realidade e dentro dela, viver da melhor forma possível? Com alguma dignidade?
Vanda por exemplo, nossa mãe.
É o tipo que acha que é feliz. Faz pose de feliz. E ái de você se contrariar ou questionar essa pose. Até o espelho fica constrangido quando ela chega com sua fantasia de odalisca. E emudece. Deixa de ser espelho para ser cúmplice.
E olha que horror! É uma máscara hedionda, triste a da felicidade. Porque é falsa.
E tem prazo de validade. As pessoas gastam a máscara, ela cai e depois saem por aí sem um rosto. No meio da rua e sem rosto.
São como foliões tardios que esqueceram de tirar a fantasia de carnaval e ignoram a chegada da quarta-feira de cinzas.
Eles não querem ver.
E pra não ver, colocam mais um carro na garagem, fazem peeling e cantam no karaoke.
Quer coisa mais bizarra do que kara o quê?
Me diz, Júnior.
Existe?
(um dia eu queria parar de falar);
Eu não acredito em felicidade.
Só um idiota é feliz.
Tem que ter uma capacidade de abstração absurda pra ser feliz. E é preciso ser um pouco alienado, não?
Felicidade não existe. Quem você conhece que é feliz? Ninguém é.
Talvez o Manuel, porteiro do prédio do nosso pai, seja. Ele vive rindo e é meio bobalhão. Tem cara de duende urbano.
Essa propaganda de alegria e felicidade a qualquer custo me cansa e aí você tem que comprar, comprar, comprar, pra ser mais e mais e mais feliz.
Que papo é esse? É exautivo.
É vão.
Como se entulhássemos um buraco na parede, um buraco estreito, ordinário, um buraco que serviria apenas para um aperto de mãos, sim para isso serviria muito bem. Seria alías estúpido dizer que por ali não passassem dois braços, que mãos saudáveis, com o mínimo de esforço físico não pudessem se encontrar.
Como esse tipo de desejo está cada vez mais raro, armazenamos coisas no buraco entre uma parede e outra.
Enchemos esse vil buraco, seria um buraco menos ordinário se acontecesse de; por exemplo, como posso dizer? Se acontecesse de alguém morrer, é isso, alguém morrer exatamente entre a fenda dessas duas paredes que não se falam. Um ataque fulminante do velho funcionário de uma fábrica de amendoins entre os dois lados, na passagem entre os dois cômodos. Na rachadura um corpo tomba e dignifica o vão.
Ressaltada pela antipatia de um marimbondo que ali se instalou com sua família, as paredes se distanciam uma da outra, dia após dia. E ali, de repente, um homem dá seu último suspiro de vida. Como se alguém morresse em cima da fachada de um prédio baixo, atrapalhando a harmonia das ruas, avacalhando os vizinhos e impedindo a promoção da síndica. Morrer entre. Morrer sobre. Morrer atrapando a paisagem.
Nesse buraco, nessa pequena fresta entre dois cômodos de um pequeno cortiço, entulhado com traquitanas de toda ordem, esse excesso de bugigangas, falhas, recados, bilhetes atravessados na noite e já engordurados pela massa do pastel, os dias passam e o buraco cresce, alarga. Tralhas que não servem pra mais pra nada, nunca serviram, mas nos dão a falsa impressão de ordem, ali depositadas, artifício infantil e apaziguador de consciências pesadas. Todo dia o montinho é acrescido por novidades, um palito de fósforo por exemplo. Quer algo mais edificante que um palito de fósforo? A fenda com as mil coisas espremidas, amaciam a vida. É o anti-despejo os moribundos objetos. Nossos bens comuns.
(Como se existisse algum bem. Comum.)
Como se só vivêssemos para armazenar gordura em cima da esferográfica do papel. E através desses pequenos entulhos, obras infieis, silenciosos cadernos, vigas emprestadas, canos e amortecedores, ressoasse por trás, como uma voz na surdina, um sopro de glória.
De compaixão.
Felicidade não existe, Júnior. Mesmo se conseguíssemos armazenar todas aquelas coisas que nos traíram anos atrás, lembra?
A felicidade morreu quando o mais ínfimo grão de areia surgiu sobre a terra.
- Na verdade não é nem que a tal felicidade não exista. Eu a vejo na cara de um cão que dorme. É que qualquer espécie de felicidade mata.
"Mas atraves da fenda, eu posso ver, é muito claro isso pra mim. Tão claro que sorrio com gosto, como no outono quando as cores se misturam em cima do telhado, com aquelas folhas mortas. Sim, o buraco, o vão, racha, nela guardo todo meu tesouro, possuimos algo sim, bebê. Sou grato pelas coisas que consigo obter, as minhas coisinhas, pequenas distrações, agulhas da existência, felicidades portáteis.", diz o segundo rosto, aquele que nos dão voz.
As coisas nos possuem e não o contrário. - O terceiro rosto intervêm -
Elas mandam em nós.
Sempre foi assim,
veja esse apartamento.
Nada aqui é meu,
Nem o gato.
A vida é de aluguel.
Pedimos a prazo, engolimos sapos, criamos crediários e mais crediários, nos endividamos, pra quê?
Os objetos que amontoamos aqui dentro nos dão uma surra diariamente.
Mas tudo isso é porque desejamos demais. Ou porquê, talvez; precisamos de alguma garantia. Uma prova. É isso. Precisamos provar que nossa vida não foi em vão.
Esses pequenos lenços riscados de chuva e as fatais manchas de suor embaixo do braço desse paletó, nos dão a falsa impressão de que sobrevivemos.
E que um dia, existimos.
- Aqui tem um rastro, criança. Vem. Siga esse rastro. Eu deixei pra você saber que um dia eu estive aqui. Mesmo que você só consiga enxergar isso atraves da ponta desse cigarro ou atraves do odor de suor misturado com lavanda sob a manga do vestido, está vendo esse capuz? Um dia eu chorei sob ele. O pequeno engradado vazio foi presente do meu avô e o bolo está assim deteriorado, sugado por vermes, porque esquecemos de comer. E dividir. E mastigar com força. Não importa.
Veja.
Saiba.
Durma bem aqui na extremidade esquerda onde um dia, vários dias, eu tentei dormir e não consegui.
A criança vai. Obedece a voz do seu interior nascendo.
E sonha que morre. E sonha que é outra. E vomita na colcha íngreme.
Dormir é abismo. Uma entrega sem fim. Só para os corajosos, destemidos, sanguinolentos. Maníacos do parque.
Pessoas que dormem bem são assassinos em potencial.
Preciso intoxicar o buraco entre as duas paredes do meu cortiço com todos estes objetos para sobrar;
Algum sorriso para a hora da foto, retrato de documento. Passaporte chinês.
Júnior,
O buraco na parede é uma pista falsa. Não durma ainda, irmão. Falta eu arrancar uma ponta de confissão dessa noite finíssima, quase de seda, que estampa um desenho claro sobre nós.
Talvez um dia tenhamos coragem para arrancar um por um todos os biodegradáveis, retratos sem molduras e esse velho baú, para, quem sabe? Atingir com o máximo de silêncio e um cuidado alvíssimo de delicadeza a mão que nos espera do outro lado.
E elas consigam finalmente, se tocar.
Tenho a sina da esperança.
E apesar disso, eu sei, que a gente passa a vida almejando uma coisa que não existe, Júnior.
Não seria melhor arrancar essa mania de claridade em nós e encarar a realidade e dentro dela, viver da melhor forma possível? Com alguma dignidade?
Vanda por exemplo, nossa mãe.
É o tipo que acha que é feliz. Faz pose de feliz. E ái de você se contrariar ou questionar essa pose. Até o espelho fica constrangido quando ela chega com sua fantasia de odalisca. E emudece. Deixa de ser espelho para ser cúmplice.
E olha que horror! É uma máscara hedionda, triste a da felicidade. Porque é falsa.
E tem prazo de validade. As pessoas gastam a máscara, ela cai e depois saem por aí sem um rosto. No meio da rua e sem rosto.
São como foliões tardios que esqueceram de tirar a fantasia de carnaval e ignoram a chegada da quarta-feira de cinzas.
Eles não querem ver.
E pra não ver, colocam mais um carro na garagem, fazem peeling e cantam no karaoke.
Quer coisa mais bizarra do que kara o quê?
Me diz, Júnior.
Existe?
sábado, 9 de janeiro de 2010
2010
Início de ano, esperanças renovadas, planos improváveis, banhos de mar e aplausos (?) prum pôr-de-sol satírico e cabisbaixo. Depois você chega em casa e dá de cara com uma barata - herança úmida do calor da cidade. Barata, diga-se de passagem, vencida. Uma antiga e cínica inquilina. Visita prolongada de um ano que passou.
Completamente desatualizada, ela me encara. Estou suja de areia. Não existo. Alheia à todos planos de renovação, ela perdura. Dos seus olhos salta uma ambígua indiferença. A felicidade só é possível quando perde-se de vista, essa vertigem cor de ferrugem chamada esperança. Viva Gregor e Gh! Viva 2010!
PS: Essa barata foi a única testemunha da minha tentativa de alegria.
Completamente desatualizada, ela me encara. Estou suja de areia. Não existo. Alheia à todos planos de renovação, ela perdura. Dos seus olhos salta uma ambígua indiferença. A felicidade só é possível quando perde-se de vista, essa vertigem cor de ferrugem chamada esperança. Viva Gregor e Gh! Viva 2010!
PS: Essa barata foi a única testemunha da minha tentativa de alegria.
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